Bananeiras vai reabrir o seu cinema. Estarei lá, na fila do gargarejo

A União trouxe ontem (19) matéria bacana de página inteira, assinada por Ítalo Arruda, sobre provável revitalização do Cine Teatro Excelsior, de Bananeiras. Tudo graças a um projeto dos Guardiões da Serra, grupo de escotismo local que concorre a financiamento do Fundo de Direitos Difusos do Ministério Público da Paraíba.

A excelente perspectiva recarregou-me esperanças e melhores expectativas de retornar em breve a Bananeiras só para assistir à sessão de reinauguração do Cine Excelsior. E vibrar com um novo diferencial do lugar da minha saudade: ser a primeira cidade paraibana a reinstalar o seu cinema de rua.

Mas tenho um pedido a fazer aos autores do projeto: botem aquela corneta difusora de volta no frontispício do prédio e toquem ‘Corintiano’ com o velho e bom Saraiva, o rei do sax soprano. Era a música que anunciava o começo do filme para todos aqueles que estivessem nas calçadas e bancos da Praça Epitácio Pessoa, bem na frente do ‘Cinema do Padre’.

A lembrança me leva ao final dos anos 60 do século passado, um tempo em que o Professor Vicente, meu pai, também músico, fornecia a trilha sonora de espera dentro e fora do cinema. Fornecia mediante troca de LPs de Saraiva e Bob Fleming (Moacir Silva), entre outros virtuoses do sopro, por ingressos para os filhos adolescentes – este que vos escreve e o mano Robson.

Não perdíamos uma fita, desde que permitida aos meninos de nossa idade. Mas, ainda que a censura não permitisse, não raro Rubinho de Vicente, como me chamavam, escalava o telhado de casas vizinhas ao cinema para ver alguns proibidões por uma das janelas abertas e quase coladas ao teto, bastante alto, da sala de exibição.

Pesando igual sibite, não quebrava uma telha sequer nem fazia zoada para chegar até aquelas brechas que tanto arejavam o ambiente como me deixavam ver ‘filmes 18 anos’, de projeção que certamente passava à revelia ou omissão conveniente do Padre José Diniz, o irascível e temido pároco de Nossa Senhora do Livramento, padroeira local e verdadeira dona do Excelsior.

Fissurado em cinema, o Mago de Vicente, alcunha alternativa com que também me identificavam, um dia fui vítima fácil de Ivan, filho de Zé do Padre, sacristão, projetista e bilheteiro do Cine Excelsior. Foi assim…

Esgotada a cota de ingressos a que meu pai tinha direito, estava na praça desolado por não ter como assistir a um Durango Kid prestes a sair de cartaz. Faltando pouco segundos para Saraiva tocar a última nota do ‘Corintiano’, Ivan me socorreu. Entregou-me ligeiro um pedaço de papel da mesma cor do ingresso. “Corre que já vai começar”, instigou-me. Não contei conversa…

Entreguei rápido o bilhete ao porteiro e mais ligeiro ainda fui procurar uma cadeira vaga na fila do gargarejo, onde mais gostava de assistir. Não deu quatro minutos, o segundo trailer estava perto de acabar quando acabaram com a minha graça.

Puxando-me pelo braço, o porteiro devolveu-me à calçada do cinema, onde me aguardava um comitê de vaia mobilizado pelo mesmo Ivan, o terrível. Chorando e morrendo de vergonha, só lembro ter apanhado uma pedra que arremessei com toda força possível na direção da cabeça do meu algoz.

Não acertei o alvo. O alvo me acertou. Derrubou-me com um murro, ganhei um olho inchado, levei uma pisa em casa e fiquei uma semana de castigo. E só voltei a assistir filme quando o Professor Vicente resolveu se descartar de mais um LP da sua coleção de saxofonistas e clarinetistas em mais uma troca por ingressos para o Cinema do Padre.

(Foto: Cine Teatro Excelsior em imagem cedida pelo jornalista e escritor Ramalho Leite, liderança e referência de Bananeiras)

APERTADA, por Ana Lia Almeida

Imagem copiada da revista Galileu

Estava muito inquieta a moça de vestido amarelo na parada de ônibus. Consultava as horas compulsivamente, resmungando um tal de ai meu Deus, cadê esse busú, que não chega, a maior agonia. E balançava as pernas para lá e para cá, sem sair do canto, contorcendo o corpo numa aflição danada. Rita discretamente se aproximou dando conta do banheiro no mercadinho ali perto. Pedindo direitinho, a deixariam usar, bastava entrar no beco à direita, atravessar a rua e caminhar umas três ou quatro casas.

Agradeço, viu, senhora, mas vou segurar, mesmo. Estou muito atrasada e periga eu perder esse ônibus, já tem quarenta e cinco minutos que estou esperando aqui, a senhora acredita? Como é que pode um negócio desses? Eu fico para não viver! Porque patrão, patrão não quer saber se o transporte passou do horário. A gente é que se vire, não é verdade? Agora, se a senhora me der cobertura, eu tenho coragem de fazer xixi ali na esquina, atrás daquela caçamba.

Rita não titubeou, indo com a moça até o outro lado da rua, sob os olhares indiscretos de todos que estavam no ponto. Algumas mulheres balançavam a cabeça e cochichavam umas com as outras em tom de reprovação, enquanto dois meninos desataram a rir, se sacudindo de tanto achar graça.

Detrás da caçamba, Rita procurava a melhor posição para cobrir a moça, que rapidamente foi se acocorando, suspendendo o vestido comprido, afastando a calcinha e finalmente se aliviando. Já mais calma, agradeceu pelo apoio e se apresentou: Jucilene. Começava a se ajeitar quando Rita avistou a condução chegando. Elas correram de volta à parada e subiram, com a ajuda dos meninos gaiatos, que pediram ao motorista para esperar.

De tanto ter demorado, o ônibus vinha lotadíssimo. Rita e Jucilene mal tinham onde se segurar, espremidas antes da catraca, perto dos meninos. Que sufoco, hein, tia? E as duas riram, junto com outros passageiros que haviam testemunhado a situação e também se amontoavam na parte traseira do busão. Se não fosse essa aqui, ó, Jucilene apontava com o queixo pra Rita, nessa hora vocês tavam tudinho aguentando a catinga, num imprensado desses.

Rita começou então a contar de quando ela passou mal a viagem toda, segurando o xixi. Era a primeira vez que ela ia na casa de dona Laura, pra ver se conseguia o serviço. Estava muito nervosa e por isso teve a ideia de levar uma garrafinha repleta de chá de camomila, para ajudar a se acalmar.

Rita precisava muito do trabalho, desempregada há mais de ano, mas não fazia ideia do que era pra dizer numa Entrevista de Emprego, assim com esse nome chique, como dona Laura tinha falado ao telefone. Além do mais, tinha medo de se atrasar ou se perder porque não conhecia o bairro do Altiplano, era muito longe de Mandacaru, onde morava, tendo que descer na Integração e pegar outro transporte.

O ônibus também demorou muito a passar naquele dia e nessa espera ela foi tomando ansiosamente a garrafa inteira de chá. Resultado: Rita se espremendo o caminho todo, rezando para o motorista desviar dos buracos e passar devagar nas lombadas. Chegou na casa de dona Laura e pediu logo para ir ao banheiro, morrendo de vergonha.

E a senhora conseguiu o emprego, tia?

Eu não me lembro o que disse na tal da entrevista, mas faz quinze anos que estou lá. Só não sei se chego hoje, porque vai demorar uma vida para atravessar esse busú.

Ô, motô, abre aqui atrás pra tia descer, por favor.

CUPIDO SUSTENTÁVEL, por Babyne Gouvêa

Cassino da Lagoa. Nos anos 60, Restaurante Estudantil

Na fase da vida em que os hormônios chegam chegando, não há limites para quem almeja soltar todo tipo de amarras. Imaginem para uma adolescente mimada, criada no cós do papai.

Na estrada da vida seguia Ana Lúcia, lépida e fagueira. Era uma menina-moça graciosa, mas se sentia esplendorosa. Considerada pelos amigos um anjinho inocente, não sabiam eles que por trás daquela candura existia uma ânsia de autonomia.

Num arroubo de extravasar-se, a mocinha revelou-se. Certo dia, depois da aula na Aliança Francesa, seguiu em direção ao Cassino da Lagoa, então Restaurante Estudantil, no centro de João Pessoa.

Aconteceu em 1968, quando lá estudantes se reuniam, discutiam, mobilizavam e planejavam manifestações contra a ditadura. 

Ela passou os olhos na estudantada e só viu ‘pão’, sinônimo de rapaz bonito naquele tempo. Voltaria mais vezes ao restaurante, onde Ana Lúcia ficava num pé e noutro, procurando forma de chamar atenção.

Em uma dessas visitas, ela usava minissaia e meias arrastão. E não tinha a menor ideia sobre o que estava sendo discutido naquela assembleia quando chegou a notícia de que um carro estava pegando fogo no Ponto de Cem Réis.

Foi um Deus nos acuda. Assim como tantos outros presentes, Ana Lúcia saiu dali correndo, desesperada e sem saber do que se tratava, mas intuindo que seria perigoso permanecer naquele lugar.

Na fuga, a moça rasgou suas meias.  Quando percebeu a tragédia, cuidou de buscar abrigo seguro. Encontrou. Certa de estar fora do alcance de possíveis olhares impróprios, apoiou-se no tronco de uma árvore e discretamente livrou-se do incômodo.

Enquanto isso, a polícia, na tentativa de identificar os responsáveis pelo incêndio, espalhou-se do Ponto de Cem Réis ao Parque Solon de Lucena, onde estão a Lagoa e seu Cassino. Ao ver de longe a movimentação dos meganhas, a menina, receosa, não contou conversa. Subiu na árvore para se esconder.

Estava atônita sem saber direito o motivo de tanta confusão. Afinal, o seu objetivo era flertar e ser observada por quem lhe interessava. A pauta daquelas reuniões estudantis chegaria ao seu conhecimento tempos depois.

Assunto de política era tabu tanto em sua casa como na escola. Nesta última, até se justificava – a idade das alunas era pouca para entender o que o momento exigia.

A árvore que serviu de esconderijo para Ana Lúcia se mantém frondosa e guarda segredos de um inesperado encontro com um secundarista que nela também se escondia.

A luta de cada jovem tinha direções distintas, mas não incompatíveis. Tanto que comprovariam: a sedução amorosa independe de ideologia ou opção política. E foi o que ocorreu. Sob as bênçãos da natureza.

ALMA E SANGUE CAMPINENSES, por Francisco Barreto

Confluência das avenidas campinenses Floriano Peixoto com a Maciel Pinheiro (foto copiada de gretalhos.blogspot.com, sem informação sobre autoria ou data)

Durante muitos anos fiquei sem entender, e muito depois comecei a ver, o porquê de meu pai ter me concedido a cidadania civil de filho de Campina Grande, embora nascido em João Pessoa. Estava feito, era o seu desejo.

Depois da morte dele, prematura aos 51 anos, passei a ter a certeza de que eu estava predestinado a ser o seu único filho homem: um campinense. Havia me dado a extrema honraria de continuar a genealogia campinense da nossa ascendência,  enraizada desde 1780.

O orgulho e o imperativo afetivo paterno se debruçaram sobre mim para sempre sob o manto da Rainha da Borborema. Disciplinado à vontade paterna e ao seu extremado afeto por Campina Grande. Afinal, vinha de uma descendência de sete gerações fincadas em Vila Nova da Rainha. Abracei com afeto o meu legado de campinense e abdiquei sem nenhum constrangimento à condição de natural da cidade que me viu crescer.

Meu pai era politico campinense, com vários mandatos legislativos até a morte, em 1959. Certamente, anteviu com precisão o destino do único filho homem. Tornei-me campinense de peito aberto e tentei a vereda política, confesso que sem muito êxito. E assim, à sua sombra segui o desejo e os passos dele. Curvei-me ao olhar político paterno.

As origens de minha família contam quase dois séculos e meio. Tudo começou com o Capitão José Nunes Viana, português, em (1780), Comandante de Ordenanças que viera de Minas Gerais e tinha importante força política. Era casado com D. Inácia Barbosa Barreto, índia convertida ao cristianismo.

Os importantes elementos contidos no livro de Epaminondas Câmara, os ‘Alicerces de Campina Grande’, fez-me mergulhar na minha ancestralidade. O competente historiador faz o registro de três famílias de comerciantes e fazendeiros das mais antigas do lugar: a de Teodósio de Oliveira Ledo, a do Capitão José Nunes Viana (meu hexavô) e a de Bento José Alves Viana.

Segundo Câmara, os Oliveira Ledo eram orgulhosos e desconfiados; os Nunes Viana, que ocuparam a área das Tabocas, Cacimbas, o Ligeiro e os domínios do Zabelê e Loango, tidos como pessoas instruídas e bem relacionadas com os humildes, embora fossem abonados.

O Capitão José Nunes Viana, casado com D. Ignacia Barbosa Barreto, fez, inclusive, a doação da área para a construção da Igreja do Rosário em data do final século 18.

Relata ainda o historiador que o primeiro Mercado do Comércio Velho, na Rua do Sertão,  no Largo da Matriz, foi da lavra de Baltazar Gomes Pereira de Luna (heptavô), português, homem de posses, instruído, anti-monarquista de militância liberal e republicana. Casou-se com Margarida Maria de Jesus, filha de José Nunes Viana.

Eram pais de Baltazar Pereira Luna (tataravô) e tiveram um filho de nome Francisco de Paula Barreto (trisavô), sendo este o pai de Miguel Arcanjo Luna Barreto, meu bisavô, e finalmente, chega-se a vovô José Geminiano de Luna Barreto, conhecido como Cazuza Barreto.

Daí em diante, são descendentes do velho Cazuza: meu pai, Francisco de Paula Barreto Sobrinho, e os irmãos Paulo, Júlia, Lídia, Angelina, Tuta, Anélia, Ambrosina e Elisa, que se multiplicaram em dezenas de netos, bisnetos e trinetos.

No inicio do século 19, os revolucionários e liberais, os quais, por serem anti-monarquistas e adesistas ao Movimento da Confederação do Equador, reivindicaram a mudança de nome para Vila Nova da Rainha em homenagem a mãe de D. João VI, D. Maria, a Louca.

Juntamente com Frei Caneca do Amor Divino, foram presos meus dois avós, o 6º e o 5º, que com vários outros foram levados ao Recife, por terem instalado em 27.04.1814 a Junta Governativa da Paraíba. Retornaram a Campina Grande e aderiram à Confederação do Equador. Em 1814,  prevaleceu o nome de Campina Grande.

Essas raízes fincadas na Serra desde 1780 deve ter contribuído para o extremo atavismo de meu pai e deste seu filho desde o Comandante José Nunes Viana e D. Ignácia Barreto. Não tinha como não continuar.

Nada mais campinense do que honrar o orgulho dos antepassados que sempre viram o sol nascer nos Trás-Montes da Borborema, alumiando a coragem, a inteligência arrebatada, o empreendedorismo e o espírito resistente com que sempre combateram todas as formas de tirania e submissão e passaram ao largo do escravismo.

Sou e sempre serei campinense, por origem e por afeto, sem nunca renegar a Parahyba, hoje João Pessoa, que haverá de compreender o registro em minha certidão de nascimento, imposição de sangue transfundido na minha alma campinense.

A CASA DO MEU AVÔ, por Babyne Gouvêa

O casal Cidinha e Inácio Gouvêa e Eugênio Neiva, pais e avô de Babyne, fotografados na Cascatinha do Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro (RJ), no início dos anos 40

…“A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade”…
(Manuel Bandeira)

Em ‘Evocação do Recife’, os versos do extraordinário poeta modernista pernambucano despertam-me lembranças do meu avô materno, Eugênio de Lucena Neiva, e do sítio onde morava, localizado em extensa área verde que nos anos 50 e 60 margeava a Epitácio Pessoa, principal avenida da capital paraibana.

A propriedade ocupava uma área que se estendia do local onde hoje funciona a Usina Cultural da Energisa até a clínica de radiologia Nova Diagnóstica, cujo terreno foi vendido por meu avô ao usineiro Renato Ribeiro Coutinho. Já a parte de trás do sítio pegava do muro do Asilo Santa Catarina ao prédio do antigo Ipep, aí incluído o Hospital Edson Ramalho.

A morada ampla e seus vários compartimentos acomodavam bem meu avô e três filhos solteiros, dos onze que teve com Maria Teresa (Nini), avó que não cheguei a conhecer. Guardo na memória os mínimos detalhes da casa grande e seu entorno, lugar de tantas alegrias da minha infância. Da entrada principal à despensa onde os mantimentos eram armazenados, tenho tudo bem gravado na minha saudade.

Na sala de estar, o piano onde minha mãe tocava divinamente ‘La cumparsita’ para o deleite de quem estivesse presente, atento e enlevado pelos acordes de Dona Cidinha. E a radiola Phillips, adornada por lindo móvel de madeira na saleta contígua, pronta para tocar os discos de vinil de maravilhosa coleção? No mesmo ambiente, um telefone preto com discagem em anel de metal reluzente, afixado na parede. O aparelho era seguramente um dos pioneiros da cidade.

Os demais cômodos – quartos, salas, corredores etc. – eram todos enormes na visão de uma criança como eu, que também se encantava com o cheiro bom que exalava de todo o interior da residência. E em meio a odores e proporções alentadas na minha percepção, uma imagem particularmente marcante: meu avô deitado na rede, em seu quarto, um cantinho só dele, onde gostava de receber os netos, sempre com palavras carinhosas.

Vô Eugênio tinha o hábito de escrever cartas para os parentes mais distantes, a exemplo do seu primo Epitácio Pessoa, presidente da República no quadriênio 1919-1922. Era algo que fazia no ‘gabinete de leitura’, vizinho ao quarto de dormir. Seu birô era uma escrivaninha de esteirinha bem antiga.

Circulando por outros espaços da casa, passando pelo imponente relógio de coluna com seu pêndulo anunciando as horas, chegávamos à cozinha que atraía a meninada interessada nos quitutes das nossas tias, sempre exibindo os seus dotes culinários em fogão à lenha, posteriormente trocado por um a gás.

Quando a criançada não invadia a cozinha nos intervalos das brincadeiras, corria para debaixo das árvores de onde apanhava ou derrubava frutas muito disputadas em animadas competições pra ver quem comia mais ou arroxeava mais a língua com tinta de oliveira.

Parava de brincar quando via meu avô alimentar suas aves ou, então, ao vê-lo entrar na mata do sítio para inspecionar seus domínios. Ficava preocupada em momentos assim e tranquila quando o via retornar de sorriso largo no rosto, principalmente no instante de reencontrar Cidinha, a filha predileta.

Chegava a tarde e a hora do cafezinho, sagrada. Pão francês quentinho com queijo, acompanhamento mantido pela tradição entre os descendentes de vovô Eugênio. Satisfeitos, enfim, sob as mangueiras nos maravilhávamos com o canto das cigarras anunciando procriação, sem percebermos o passar das horas.

Ao final do dia e da visita, a despedida abalava bem pouco a nossa alegria. Porque voltávamos para nossas casas na certeza de sermos recompensados em breve com o retorno à casa de vovô Eugênio.

SERÁ O COMEÇO DO FIM DAS TAREFAS? por José Mário Espínola

Imagem meramente ilustrativa copiada de salesianoitajai.g12.br

“Vovô, onde é que eu posso recortar estas figuras?”

Dito assim, até poucos anos atrás essa seria uma pergunta fácil de ser respondida. Amanda tinha como tarefa apresentar recortes de figuras e palavras começadas pela letra “h”.

Ora, até há pouco bastava à aluna pesquisar e recortar das revistas e jornais daqui de casa. Simples, né? Não é mais. Pois na era da internet e dos celulares, as revistas e os jornais estão rareando, se tornando avis rara, peças de museu. Está cada vez mais difícil encontrar jornais ou revistas impressos. Caras não vale, pois pràticamente não tem palavras inteligentes, limita-se a exibir figuras.

Com a “notícia” vulgarizada nas tais redes sociais, parece que o jornalismo sério, aquele que se pode ler e conferir, está prestes a desaparecer. Pois ninguém compra mais os noticiosos físicos, de papel.

Ah, o jornal de papel… Saudades do cheirinho desagradável de tinta impressa, cheio de notícias e informações importantes para mim, que a esposa reclamava quando eu esquecia sobre a cama.

Comecei a ampliar as minhas fronteiras além da Paraíba aos sete ou oito anos lendo jornais do nosso Estado e do Rio de Janeiro, que meu pai comprava. Nos anos 1950, ele lia o Última Hora. A partir dos anos 1960, até se desinteressar por tudo na vida em meados dos anos 1980, ele comprava diàriamente o Jornal do Brasil. E também assinava a gaúcha Revista do Globo e a alemã Deutsche Welle.

O JB acompanhou o meu desenvolvimento cultural até chegar à idade adulta. Em 1969, passei a ler O Pasquim, excelente hebdomadário (como eles próprios se intitulavam) que misturava boa dose de humor com política de resistência cultural à ditadura militar de que o Brasil havia sido acometido, desde o golpe de 1º de abril de 1964.

Durante o curso superior passei a ler a Folha de São Paulo, que tornou-se o baluarte dessa resistência político-cultural.

Tomei conhecimento da Folha durante o Projeto Rondon, no Pantanal do Mato Grosso. Eu alternava com o saudoso colega Grimberg Botelho a tarefa de ir comprar um exemplar na cidade de Corumbá, próxima a Ladário, onde estávamos sediados.
Continuei a ler esse jornal quando fizemos residência médica em São Paulo, e depois continuei a lê-lo em João Pessoa.

Recordo-me de chegar ao plantão na UTI do hospital São Vicente de Paula para render o Dr. Lauro Wanderley Filho e encontrar um exemplar da Folha de São Paulo todo despetalado e espalhado pelo chão do quarto dos médicos: Laurinho nunca lia bem-comportado o seu jornal, deixando para o plantonista seguinte o trabalho de juntar as páginas.

A Folha de São Paulo ainda resiste como jornal escrito. Já os nossos jornais, que fizeram e registraram a história do nosso Estado, foram extintos, passaram a freqüentar um longo obituário: O Norte, fundado por Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, que durante muitos anos dominou a imprensa paraibana, e gerou muitos e bons jornalistas. O Diário da Borborema, que era publicado em Campina Grande. O Correio da Paraíba, fundado por Teotônio Neto. O Momento, do bravo Jório Machado, já falecido. O inovador semanário A Carta, do lendário Josélio Gondim, com excelentes entrevistas de capa, como a memorável entrevista com Hosana, a Dama do Cabaré. O Jornal da Paraíba, fundado pelo recém-falecido José Carlos, do Grupo São Braz. E mais recentemente perdemos o Contraponto, de João Manuel de Carvalho.

A lista continua, só interrompida pela brava e heróica resistente A União. !No pásaran!, parece dizer o nosso jornal, porta-voz oficial do Governo do Estado da Paraíba.

A União sempre foi uma verdadeira universidade de jornalismo. Composto de pelo menos seis cadernos, acrescido de uma excelente revista nas edições dos domingos, A União é um jornal noticioso físico muito bem editado e, principalmente, um excelente veículo da cultura paraibana.

O seu viés governista é compreensível e a gente releva, pois é a voz do dono. O que importa é o acervo composto pelas colunas assinadas por excelentes articulistas, a exemplo de Gonzaga Rodrigues e Sitônio Pinto. E as boas reportagens locais e regionais.

Nos domingos, A União traz o Correio das Artes, sempre com reportagens ricas em arte, cultura e literatura. A sua edição é acrescida de uma excelente revista no último domingo de cada mês. Pois foi justamente A União quem me salvou, ou melhor: quem salvou, desta vez, a tarefa de Amanda.

Fica no ar a pergunta: será este o começo do fim deste tipo de tarefa escolar? Como será que os nossos pequenos estudantes irão realizar os seus deveres de casa? É claro que não vai recortar o tablet ou o smartphone. Só o tempo dirá.

A ÚLTIMA PODE SER PRIORITÁRIA, por Babyne Gouvêa

Imagem copiada de sabra.org.br

Sou sempre a última, mas ao contrário do que aparento sou a que mais chamo atenção, sem presunção. Na língua portuguesa sou exigente, coloco regras para a minha acentuação ou não.

Não sou comum na língua italiana, não sou páreo para a proparoxítona naquele vernáculo. Já no francês eu me destaco, sempre exijo um biquinho pra quem quer me usar corretamente.

Nem vou me atrever a citar outros idiomas. Só sei que no inglês sou usada sem complementos gráficos. Não vou atribuir o fato à descendência anglo-saxônica, até porque a real origem germânica data de séculos.

Na verdade, gosto quando a palavra me dá ênfase, parando na última sílaba com grau de força sonora. O aspecto fonético quando registra o timbre em mim sinto-me envaidecida.

Sem desmerecer as colegas proparoxítonas e paroxítonas, observem os adornos gráficos quando param na minha sílaba – a palavra ganha beleza e glamour.

Quem me elege numa escrita sempre encontra harmonia no teor de qualquer redação. Experimentem usar as minhas características de tonicidade quando escreverem. Irão perceber a força do destaque na última sílaba.

Reconheço que passo despercebida no cotidiano oral e escrito. Preciso procurar uma forma eficaz de chamar a atenção daqueles menos sensíveis aos assuntos gramaticais.

Vejam como é fácil me usar: são acentuadas graficamente as sílabas terminadas em a/as, e/es, o/os, e em/ens. As palavras terminadas em i/is e u/us somente são acentuadas se estiverem precedidas de outras vogais.

Ah, ditongos abertos, como éi(s), éu(s) e ói(s) devem ser acentuadas. Essas nuances não são fantásticas? Captaram a riqueza da minha sílaba? Basta estar atento às normas vigentes do nosso idioma.

Não me julguem presunçosa, estou defendendo a minha aplicação. De maneira correta, claro. Preciso ser competente na divulgação do meu uso.

Agradeço àqueles que fizerem opção por mim. Afinal, sou a última sílaba tônica, sou a glamourosa Oxítona.