Dia de festa no buzú. O aniversariante em pé no meio do corredor, todo contente, arrodeado de um bocado de amigos identificados por chapeuzinhos de papel. Uma garotinha vinha sentada, carregando o bolo no colo; dois rapazes serviam o refrigerante que trouxeram no isopor a todo mundo do ônibus, e outro distribuía sacos de pipoca – uma festa completa. Já estava tudo preparado quando passaram pela parada em que o menino subiu e cantaram os parabéns assim que ele passou pela catraca, os passageiros todos acompanhando em coro.
Rita estava perto do motorista, um pouco distante do núcleo da comemoração, que se concentrava na metade do ônibus. Ambas as mãos ocupadas com o refrigerante e a pipoca, se segurando como podia nas barras de ferro, as ancas apoiadas no encosto do banco. Se ela queria bolo? Claro que sim. Tratou de comer ligeiro a pipoca para desocupar uma das mãos e receber logo o seu pedaço, que o bolo até era grande, mas o ônibus como sempre estava cheio e ninguém queria perder um lanchinho bom daqueles.
“Ah, eu adoro aniversário!”, comentou o rapaz que lhe passou o bolo. Uma senhora ali perto respondeu: “É porque você é novo. Já eu não gosto nadinha, que graça tem ficar mais velha todo ano? Prefiro me esconder nessa data e não dou conversa a ninguém, para não virem atrás de saber da minha idade que nem eu sei direito mais”. Rita achou graça no resmungado da senhora porque ela também andava perdendo as contas da própria idade, depois dos trinta havia dado para esquecer. E já que se esquecia mesmo, aproveitava geralmente para arredondar bastante para baixo; já ia pelos quarenta e sete, mas prestava conta, no máximo, dos quarenta e dois.
Pensava nisso tudo entre um gole e outro de refrigerante quando, num solavanco do ônibus, todo o líquido derramou-se no vestido da senhora resmungona. A mulher, mesmo reclamando, aceitou as desculpas de Rita e aproveitou para falar mal da carreata que parou o trânsito de repente, sacudindo todo mundo dentro do ônibus. “Esses vagabundos atrapalhando o trânsito, infernizando a vida do cidadão de bem. Maldito protesto! Coitado do Presidente, um homem tão bom!”
Rita procurou uma janela para ver melhor aquelas pessoas de máscara nos carros e nas ruas, segurando cartazes e bandeiras em defesa do SUS e da vacina, pelo aumento do auxílio emergencial, e, principalmente, contra o Presidente. A turma do aniversariante começou a apoiar a manifestação com palavras de ordem lançadas para a rua pelas janelas do ônibus. A senhora reclamona começou uma discussão com o garoto que servira os refrigerantes. A confusão foi aumentando, um passageiro deu um soco no outro e Rita achou melhor descer do ônibus.
Ainda se recuperando do susto, sentou-se no banco de uma praça e ficou um tempo vendo o protesto passar. Os carros enfeitados, frases escritas de batom sobre as vidraças, cartazes pregados nas portas, bandeiras tremulando ao vento. Motoqueiros, ciclistas, pessoas a pé em pequenos grupos. Três manifestantes passaram por ela caminhando e ofereceram-lhe uma máscara que ela aceitou com um sorriso. Ao dar-se conta de sorrir, reparou que perdera a sua máscara na confusão dentro do ônibus. “Fora Bolsonaro”, estava estampado na nova máscara de Rita, com a qual ela seguiu adiante em mais um dia de luta.
FESTA E LUTA, por Ana Lia Almeida
DIVÃ LITERÁRIO, por Babyne Gouvêa
Três senhoras resolvem fazer terapia em grupo, sendo observadas às escondidas por seus respectivos criadores. Nesse cenário, o Dr. Sigmund Freud conduz a assistência às suas pacientes num aprazível consultório, situado às margens da Baía de Todos os Santos.
Sessões nas tardes das terças-feiras foram reservadas àquelas senhoras – Aurélia, Capitu e Gabriela. Elas se apresentaram ao terapeuta como ícones e musas do Romantismo, Realismo e Modernismo que marcam a obra de três dos mais consagrados escritores brasileiros de todos os tempos.
Primeira Sessão
Iniciada a sessão, o Dr. Freud fez uma breve introdução ao processo terapêutico e passou a palavra à Aurélia, que afirmou ser esposa de Fernando Seixas, que o seu casamento foi um negócio, proposto por ela e por ele aceito, sujeitando-se ao poder do dinheiro. Adiantou que está tudo registrado no livro ‘Senhora’, de José de Alencar.
A próxima a se pronunciar foi Capitu, de espírito livre e independente, esposa de Bento Santiago, marido ciumento e desconfiado. Deu ênfase ao espaço comercial do casamento, como se fosse mais um negócio a ser realizado. Salientou que tudo está bem explicado em ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis.
Na sua vez de falar, Gabriela, sertaneja que respirava liberdade, enalteceu o seu marido árabe Nacib, que a levou para o seu bar, casando em seguida com ela. Lembrou que estava tudo muito bem descrito em ‘Gabriela Cravo e Canela’, de Jorge Amado.
Segunda Sessão
Recepcionando as suas pacientes rapidamente, Dr. Freud deixou-as à vontade para associações livres.
Mantida a sequência da primeira sessão, Aurélia confessou que o seu casamento foi uma questão de vingança. Seu único objetivo, apesar de amar Seixas, era humilhá-lo e submetê-lo a seus caprichos, usando o dinheiro para tanto, motivo pelo qual ele a havia deixado.
Capitu, por sua vez, revelou que o seu casamento era cheio de desconfiança, com insinuações de uma possível traição entre ela e o melhor amigo do seu marido, provavelmente por ter comportamento que contrariava os costumes dos seus contemporâneos.
Já Gabriela admitiu os seus desejos e vontades. Disse que foi flagrada na cama com outro e, como consequência, Nacib anulou o casamento, mas que a mantinha como cozinheira do seu bar e amante como antes, conformando-se com a situação e aceitando a sua liberdade.
Terceira Sessão
Dr. Freud resolveu inovar nessa sessão, introduzindo um método dinâmico para quebrar a monotonia do tratamento. Esclareceu não poder ser o facilitador, por contradizer a sua formação de psicanalista, mas ficaria acompanhando a performance das clientes. As pacientes concordaram em desvendar melhor o perfil das suas personagens nesse novo recurso terapêutico, exaltando a firmeza de suas personalidades.
Aurélia, jogando a almofada ao chão, chama as amigas para darem início à dinâmica. Fala se define como feminista. Mostra que, apesar de sofrer as consequências de seu próprio plano de vingança, age como tal para se posicionar como dona de si e contra a hipocrisia da sociedade da sua época.
Capitu, em seguida, diz que não se deixou abalar pela insegurança de Bentinho, mantendo sua personalidade forte e não cedendo às pressões de uma sociedade machista que a rotulava como ‘solícita demais’ para uma moça de família.
Falando por último, como sempre, Gabriela diz personificar as transformações de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária em pleno Nordeste brasileiro.
Dr. Freud aprova a atuação das pacientes e dá encerrada a sessão.
Última Sessão
O terapeuta sugere às senhoras uma pausa nas sessões, já que tinham sido introduzidos temas literários, inéditos ao seu método psicanalítico; pediu licença, então, para um tempo de estudo diante do inusitado no seu trabalho.
Propôs, em seguida, todos seguirem para o Pelourinho, onde Jorge Amado e sua esposa Zélia Gattai estariam à espera deles, na Fundação.
Nesse ambiente, esteve reunida a cúpula da literatura brasileira, com um convidado especial – o músico Dorival Caymmi – recepcionando todos com a ‘Modinha para Gabriela’, na voz de Gal Costa. Especialmente elas – Aurélia, Capitu e Gabriela -, todos sentiram-se lisonjeados e representados com tão bela homenagem.
MAMAS OU TUBERCULOSE? por Eurípedes Mendonça
Caro leitor, apesar do título, não será discutida a tuberculose mamária e sim uma consulta médica na qual uma importante característica sexual secundária e uma doença pulmonar estão imbricadas. É um caso verídico, com salpicos de comicidade e potencialmente trágico. Ou nem cômico nem trágico? Leia e ao final decida.
***
O então consultório do autor era na rua Manoel Deodato, bairro da Torre, em João Pessoa. Além da atendente, nele “trabalhava” a Relações Públicas Adélia Mendonça de Souza, minha saudosa mãe. Ela fazia o meio de campo enaltecendo as qualidades e ocultando os defeitos. Vocês sabem, mãe é mãe!
Um dia qualquer, anterior ao ano de 2013, adentra ao consultório um paciente, beirando os 60 anos de idade. Trazia um resultado de exame de tórax – não lembro se a solicitação fora do autor, mas a ação de levar os exames para o médico, mesmo não especialista, é recomendável. Até por que os exames básicos estão ao alcance interpretativo de todo médico.
Como todos sabem, um exame de tórax engloba uma película – também chamada de filme ou chapa – e o laudo. Fiel à lição “primeiro a chapa, depois o laudo”, coloquei a película no negatoscópio (equipamento obrigatório – nos consultórios – que ilumina a chapa, facilitando sua adequada observação).
“Como quem não tem cão, caça com gato”, na sua ausência a chapa é analisada contra a luz. Convém torcer para que os fiscais do Conselho Regional de Medicina não apareçam. Poderia ter advertência e, na recorrência, até uma interdição.
Com a película devidamente posicionada, conforme ensinava dr. Beltrão Paiva Castelo Branco, professor de Pneumologia, foram identificadas duas imagens “suspeitas”: uma típica caverna tuberculosa. Mas, além das cavernas, havia duas gigantes imagens brancas e circulares, simetricamente dispostas, do tamanho de um melão! Mamas? Sim. Imponentes mamas naturais.
Alguns minutos se passaram, intercalando-se a observação da chapa e a inspeção do tórax do paciente. Ressabiado, ele perguntou: “O que deu, Doutor?” Foi respondido que ficasse calmo, que seria lido o laudo. O diagnóstico batia com o do autor, mas havia divergência quanto aos círculos brancos. Afinal, o radiologista não valorizou as montanhosas mamas num paciente masculino, tampouco registrara uma possível ginecomastia, que vem a ser o crescimento anormal de mamas em um homem.
Por sua vez, muito apreensivo, o paciente cobrou de novo: “E aí, Doutor?”. O tórax do paciente não apresentava aquelas elevações compatíveis com mamas gigantes; pelo contrário, parecia uma “tábua”. E a qualidade da chapa era impecável, inquestionável. Ficou constatada a falha, houve troca nas radiografias. O que ele me trouxe pertencia a uma mulher.
Não dava mais para adiar o anúncio da conclusão do médico. “Tenho uma notícia boa e outra ruim. Quer ouvir qual primeiro?”, perguntei ao paciente. Não lembro qual foi a opção dele, mas emendei: “A notícia ruim é de que o portador dessa chapa de tórax tem uma avançada tuberculose pulmonar; a boa, que essa radiografia não é sua, é de uma mulher”.
***
Caso o erro não fosse percebido, o paciente seria impactado psicologicamente, quem sabe poderia até perder o emprego, devido ao estigma da tuberculose pulmonar. Claro que antes do paciente, desnecessariamente, tomasse antibióticos por seis meses, o obrigatório e acessível exame de escarro daria um ponto final ao erro.
E quanto ao desfecho do caso? Houve retificação do laudo? Apresentadas denúncias? E a verdadeira dona da chapa radiológica? Foi identificada? Tratou? Ficou curada? São tantas interrogações, leitor amigo, que o desfecho vai ficar por conta da imaginação de cada um. Meus idosos neurônios teimam em não lembrar.
E que Deus nos proteja de um caso assim em nossas vidas.
- Eurípedes Mendonça é Médico
ZAP: ÁUDIO OU TEXTO? por Eurípedes Mendonça
Indubitável: hoje, praticamente não há vida sem zap (a identidade mais popular do WhatsApp) como meio de comunicação. Usando esse aplicativo, podemos fazer ligações telefônicas, vídeo-chamadas e, principalmente, interagir via texto ou áudio. Mas… Qual meio o leitor mais usa? Áudio ou texto?
A motivação para redigir este artigo ocorreu durante uma exploração do zap, na busca de conhecer recursos disponíveis. Ao visitar a coluna Status do WhatsApp, por exemplo, fui surpreendido com a diversidade de advertências ou indicações de atitude coladas às fotos de perfil de usuários diversos.
Tem de tudo. “Sem status”, “Filho, razão da minha vida”, “No trabalho”, “se for urgente, ligue”, “tudo é possível naquele que me fortalece”, “o Senhor é meu pastor e nada me faltará”, “não posso falar, somente whatsApp”, algumas em inglês e “EU NÃO ESCUTO ÁUDIO, telefone ou escreva”.
“EU NÃO ESCUTO ÁUDIO, telefone ou escreva” foi encontrada no zap do advogado, professor e pesquisador das ciências jurídicas dr. Igor de Lucena Mascarenhas. Escrita assim mesmo, a primeira parte destacada em caixa alta. Indagado sobre razões da recomendação, ele enviou print de áudio que recebeu às 4h30 da madrugada.
Por concordar plenamente com a “objeção sonora”, arrisco abaixo outras suposições para a rejeição. O emissor teria ou causaria:
- a) dificuldade em expor o assunto com clareza, objetividade e concisão;
- b) desperdício de tempo para o receptor ao ter que (re)ouvir toda a gravação para uma possível resposta;
- c) forçar o receptor a fingir que ouviu e responder com um OK! ou um emoji;
- d) dificuldade de identificar a autoria do áudio, que pode veicular conteúdo inapropriado ou até golpes;
- e) possível violação do sigilo durante a audição sem fone de ouvido.
VANTAGENS DO ÁUDIO SOBRE O TEXTO
Com a ajuda de D. Elisa, esposa do autor, PhD em zap, foram identificadas pelo menos seis vantagens do áudio, entre as quais:
- 1) entonação e emoção em geral perceptíveis na voz;
- 2) similar eficácia à comunicação de texto;
- 3) possibilidade de resposta conciliada com outras tarefas;
- 4) maior agilidade na resposta;
- 5) maior facilidade para os portadores de presbiopia/hipermetropia;
- 6) evita expor o emitente a erros vernaculares, como os ortográficos.
TODA REGRA (QUASE SEMPRE) TEM EXCEÇÃO
Como se fosse uma fobia, o autor passou a rejeitar indiscriminadamente os áudios, embora sem afixar no seu ícone de perfil o alerta utilizado pelo Dr, Igor. No dia 3 deste mês, contudo, o autor recebeu um texto via zap, com áudio anexado, enviado por Dona Elisa Abella Cavalcante de Souza, nos seguintes termos: “Sei que você não ouve áudio, mas esse é da nossa faxineira que não sabe ler e nem escrever”.
Vitoriosa a tese de que quase toda regra tem exceção, que na vida tudo é relativo – “um fio de cabelo na cabeça é pouco, na sopa é muito!” – e que seria uma discriminação inaceitável contra aqueles que não tiverem a oportunidade de serem alfabetizados recusar-se a ouvir aquele áudio…
Anteriormente, a certeza da exceção à regra ocorreu em 23 de abril passado, quando o autor recebeu um áudio, via zap, do seu ex-professor de Medicina e de Gastroenterologia, dr. Guilherme Gomes da Silveira D’ávila Lins. Aos 80 anos incompletos de idade, ele justificou o uso exclusivo do áudio: “(…) Você ouviu minha voz (…) e é uma decorrência obrigatória de quem tem dedos maiores que o teclado do celular, apesar de ter feito curso formal de datilografia”.
Com sua “memória de elefante”, Dr. Guilherme lembrou o ano de 1952 e a Escola Remington Padre Azevedo e como testemunha ocular da evolução das telecomunicações fez um reparo: “Pelo zap não há conversa (essa, só frente a frente) e sim uma troca de telegramas”.
Confrontando-se os exemplos da faxineira analfabeta e de um culto professor e historiador, evidencia-se que o uso exclusivo do áudio, via zap, desconsidera a escolaridade.
O CURSO DE DATILOGRAFIA DO ANACLETO FRANCISCO DOS SANTOS
A propósito do curso de datilografia citado pelo professor Guilherme, o meu colega de turma do Colégio Santa Júlia (1969 a 1972), Anacleto Francisco, também demonstrou orgulho pela conclusão do seu curso em 1969, na escola datilográfica Henry Mill, em Catolé do Rocha, e fez questão de apensar o diploma legal.
Infelizmente, este autor não pode se orgulhar do seu curso de datilografia. Graças à uma atabalhoada reforma curricular, o então 2º. grau passou de científico à profissionalizante. Para resumir, o ano letivo de 1974, no Liceu Paraibano terminou e nenhuma máquina de datilografia foi disponibilizada! Um ano só de teoria e previsível aprendizagem zero.
CONCLUSÃO
Espero que essas reflexões ajudem ao leitor na escolha mais racional da comunicação através do zap. Alerte-se ainda para as exceções à regra. Não discrimine quem usa o áudio, mas, ao fazê-lo, que seja com moderação!
EM TEMPO
No status do autor no WhatsApp, a ‘palavra de ordem’ é “Não vacile, vacine-se”.
- Eurípedes Mendonça é Médico
RISCO DE MORTE, por Aderson Machado
A princípio, gostaria de dizer que, não raro, costumamos afirmar que quando uma pessoa está prestes a morrer, por motivo de algum tipo de acidente, doença etc., ela está correndo risco de vida. Contudo, no meu entender, se essa pessoa ainda não morreu, na verdade ela está correndo risco de morte. É apenas uma opinião, muito embora há quem diga que as duas formas estão corretas.
Todos nós, no dia a dia de nossas vidas, em maior ou menor escala, corremos risco de morte. É por isso que sempre temos que agradecer ao Todo-Poderoso por cada dia vivido. Quanto a mim, só tenho agradecimentos a fazer ao Criador de Tudo por ter chegado até aqui, e, porque não dizer, por estar escrevendo estas linhas para quem interessar possa.
A propósito, gostaria de relatar, da forma mais cronológica possível, fatos que comigo aconteceram e que puseram a minha vida em xeque. Com efeito, quando tinha 12 anos, levei um coice de um asno, na boca, que ‘extraiu’ dois dentes e suas respectivas raízes! Por pura sorte o meu maxilar não foi afetado. Por outra, se esse coice tivesse acertado o meu tórax ou minha cabeça, talvez eu não estivesse mais contando esta história.
Era um domingo ensolarado do ano de 1975. Eu estava na casa do mano Ademar Machado, na praia de Camboinha, município de Cabedelo/PB, tomando umas cervejinhas, quando me aventurei a ir andando de água adentro, com a maré baixa, até alcançar a ilha de Areia Vermelha, que fica a um quilômetro da areia da praia em questão.
Demorei aproximadamente uma hora para chegar à ilha sem que a água cobrisse a minha barriga. Ao chegar ao destino, fora advertido de que a maré estava enchendo. Incontinenti, entrei na água e comecei a retornar para o litoral. Quando andei uns 150 metros, a água já estava quase me cobrindo! Resumo da ópera: tive que fazer o restante do percurso nadando, e nessa incursão marítima eu quase me afoguei, chegando à praia bastante exausto. Nesse dia, praticamente eu nasci de novo.
No ano de 1978, quando estava aprendendo a dirigir, em plena capital paraibana, e sem instrutor, cometi uma lambança que quase, quase, ceifou a minha vida. É que, ao tentar cruzar uma rodovia federal, apenas havia olhado para o lado direito, quando do lado oposto, do nada, surgiu em minha direção um carro em alta velocidade. Por um segundo fiquei indeciso se freava ou continuava a travessia. Optei pela primeira decisão, para minha sorte, porque, caso contrário, o citado veículo teria colidido com o meu, atingindo exatamente a porta do meu lado. Aí as consequências teriam sido catastróficas.
Já trabalhando em Floresta/PE, em 1979, eu morava numa antiga casa, cuja cumeeira era bastante alta, e o seu madeiramento era por demais mal conservado. Pois bem, num certo final de semana os colegas que moravam comigo nessa casa viajaram e eu fiquei sozinho. Num dia de domingo, por volta de 11 horas, fui para um bar tomar algumas cervejas para depois almoçar.
Quando estava tomando a segunda cerveja, chegou um colega de trabalho, desesperado, à minha procura. E ele foi logo dizendo: “Graças a Deus, doutor, que o encontrei aqui. É que a casa que o sr. mora caiu, e eu pensei que o senhor estivesse no meio dos escombros. Cheguei lá, gritei, e ninguém respondeu nada, por isso vim procurá-lo pelas ruas da cidade”.
Por essas e outras é que o velho meu pai sempre dizia “a gente só morre na hora”, “o nosso destino está traçado” e outras frases semelhantes.
Pelo exposto, podemos inferir que, em certas circunstâncias, nem dentro de casa a gente está seguro. E que, também, uma cervejinha gelada, às vezes, faz bem à saúde e à vida. Na verdade, na verdade, a nossa segurança mesmo reside em Deus. Por isso é que temos que Nele acreditar e ter fé. Muita fé.
Mais alguns fatos posso ainda relatar, pois os acho relevantes. Um deles foi quando mandei consertar a câmara de ar do meu carro. Depois que a câmara foi consertada e colocada dentro do pneu, ao enchê-la, o pneu estourou, e foi arremessado a uma altura de quase dez metros. Por pouco, mas muito pouco mesmo, o pneu não caiu na minha cabeça. Assim, escapei de morrer por mais uma vez. Porém é importante frisar que esse incidente aconteceu por culpa exclusiva do borracheiro, que colocou a câmara de ar, dobrada, dentro do pneu.
Outros fatos me aconteceram quando me deslocava em rodovias federais, jurisdicionadas à Unidade Local (UL) do DNIT onde trabalhava, na cidade de Floresta/PE. Pois bem, mais ou menos no ano de 1993, na BR-110/PE, nas proximidades da cidade de Petrolândia, eu passei por um grande susto. E bota susto nisso! É que, a certa altura do caminho, me deparei com uma grande rocha “voando” por sobre a rodovia, passando logo à frente do meu automóvel. Se estivesse andando mais rápido, a rocha poderia ter atingido o meu carro.
Na verdade, a rocha foi arremessada por intermédio da explosão de dinamites, e aí houve uma total imperícia por parte dos detonadores, que não sinalizaram nem interromperam o tráfego momentos antes da explosão de grande monta. A diferença, nesse caso, é que, além de mim, toda a minha família correu risco de morte!
Já na BR-316/PE, entre Petrolândia e Floresta, no ano de 2002, estava a serviço de minha repartição, dirigindo um carro oficial quando, de repente, me deparei com um carro vindo na contramão. Para evitar uma colisão frontal, tive que fazer uma manobra brusca e arriscada, o que fez com que o carro oficial atravessasse a pista de rolamento, de forma transversal, e em seguida descesse um aterro, vindo, finalmente, a colidir com uma algaroba. Como consequência, levei apenas um pequeno arranhão na testa, apesar de o carro ter ficado bastante avariado. Agora, caro leitor, imagine se tivesse havido uma colisão frontal!
Por fim, a partir de 2020, com o surgimento dessa malfadada pandemia, não só eu, mas todos nós corremos risco de morte… E como!
- Aderson Machado é Engenheiro Civil e Bacharel em Letras
O QUE TERIA UMA CRIANÇA A CONFESSAR? por Babyne Gouvêa
A criança estudava em colégio religioso e seguia rigorosamente o regulamento imposto por seus superiores. A chegada à escola não podia exceder o horário estabelecido. O uniforme escolar tinha que estar impecável, da farda bem composta aos sapatos sempre lustrosos. Essa era uma exigência da qual a aluna não podia se eximir; caso contrário, corria o risco de baixar a sua avaliação no item polidez.
As disciplinas eram ministradas por professores católicos. A matéria Religião direcionava a criança para as preliminares da sua Primeira Comunhão, momento aguardado com enorme expectativa. Nos preparativos, entre aulas de catecismo e ensaios no confessionário, acontecia de tudo: choros, risos nervosos e até colegas sem conseguir sustar a bexiga. Vinham as reprimendas das religiosas que tentavam ajustar o comportamento das aprendizes, que manifestavam a precocidade para receber a Primeira Eucaristia.
Chegou, enfim, o dia da menina se confessar, e foi chamada a se ajoelhar na parte externa do confessionário auricular onde falaria os seus pecados ao sacerdote, sentado na parte interna do cubículo, havendo uma divisória de madeira com orifícios permitindo a audição entre o pároco e a ‘pecadora’, enquanto as demais alunas aguardavam a vez sentadas lado a lado em bancos enfileirados da capela.
Começa o rito, o padre silencioso sem nada perguntar, e a menininha aguardando o interrogatório, mesmo sem ter discernimento sobre o que estava sendo acusada. Foi então que o sacerdote num ato impulsivo deixou o confessionário, dirigiu-se à janela pigarreando, voltando em seguida para se sentar abruptamente olhando pelas aberturas da divisória, e dizer, em tom incisivo: “Fala, menina!”.
A confessante, aflita, responde indagando: “Falar o quê, Padre?”. Ele, impaciente e intolerante, ordena: “Diga o que você fez de mal”. A pobre menina, atordoada com o cheiro acre da batina, diz que não fez mal a ninguém. O padre reage de forma áspera e impiedosa. Impõe em voz alta e sem reservas que a menina saia, afaste-se do confessionário e “vá aprender a se confessar”.
O natural constrangimento ruborizou a face da criança, que tentou esconder o pranto num envoltório de cabelos trançados e mantilha, fugindo de uma cena que nela criaria ojeriza ao ato de se confessar. Ajoelhou-se num banco mais à frente das coleguinhas, com gestos de suposto cumprimento da penitência, enquanto as lágrimas lhe molhavam a farda. Entre um soluço e outro percebeu um murmúrio vindo de dois ou três bancos atrás, de um grupinho que naquele momento deveria estar cochichando sobre qual punição receberia a “coitadinha que não sabia se confessar”.
Consequência do tratamento recebido pelo padre, no correr do tempo ela passou desde muito cedo a questionar aquele ritual. Chegando à fase adulta, em conversa com um padre, seu professor de Teologia, pediu um conceito de ‘pecado’. Dele ouviu uma concepção inesperada, alentadora. Ali mesmo uma mulher se fez e adormeceu ad aeternum a criança pseudo pecadora que nela habitava. Só não livrou-se do mau cheiro de certa batina que a memória do olfato guarda até hoje.
VACINAÇÃO: ATESTADO OU LAUDO? por Eurípedes Mendonça
A pandemia da covid-19 vem causando significativas mudanças nos costumes, nas normas de vacinação, provocando duas corridas paralelas: às vacinas e aos documentos médicos. Ineditamente, passou-se a exigir o aval médico para comprovar comorbidades para incluir o vacinável num grupo de prioridades. “Pode ser um atestado ou um laudo”, divulgou a mídia televisiva. Indaga-se ao leitor, afinal, há diferenças documentais? Qual o ideal?
Os documentos médicos são importantes no dia a dia da sociedade por seus impactos sociais, econômicos, epidemiológicos, sanitários, jurídicos e éticos. Evidências reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina ao dedicar-lhe um capítulo inteiro no Código de Ética Médica (res. 2217/2018). São documentos com normas éticas consolidadas os atestados de doença, óbito e os laudos laboratoriais. Já os laudos periciais e os laudos clínicos – uma opção para comprovação das comorbidades, tem respectivamente, regras incompletas e ausentes.
O Conselho Regional de Medicina da Paraíba é vanguardista no tema e foi o primeiro entre seus congêneres a instituir um modelo de atestado médico, otimizando o ato médico e garantindo o fiel cumprimento da norma ética. Já a vivência do autor inclui a produção de sete artigos , 15 palestras e quatro entrevistas em rádios/TVs.
PROPOSTA DE DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOS DOCUMENTOS MÉDICOS
1) Quanto à conceituação: atestados e laudos são documentos que descrevem – sumária no atestado e detalhada no laudo – um ato médico e suas consequências. Matematicamente, ver “Teoria dos Conjuntos”, o laudo clínico seria o “conjunto”, e atestado seria o “subconjunto”.
2) Quanto à classificação, os documentos são categorizados de acordo com o:
2.1) tempo e estado evolutivo atual da doença. Os atestados priorizam seu estado presente e atual enquanto os laudos analisam toda a evolução da doença desde o seu início
2.2) natureza do requisitante. O médico, no caso dos laudos laboratoriais. O paciente nos laudos clínicos e terceiros, nos laudos periciais, os quais auxiliam autoridades policiais, jurisdicionais, trabalhistas ou previdenciárias na tomada de decisão, ao serem fornecidas respostas objetivas aos quesitos previamente formulados pelo peticionário.
3) Estrutura da técnica redacional. Há variação quanto ao número de laudas e de parágrafos.
4) Tipos de laudos: laboratorial, clínico e pericial.
O ATESTADO MÉDICO
É o mais normatizado, conciso, objetivo, redigido em uma lauda, foca seu registro no estado presente da doença., mediante a descrição do seu diagnóstico (por extenso ou CID – 10) e do tempo necessário para a recuperação da saúde.
ESTRUTURA DO ATESTADO MÉDICO – SEIS ELEMENTOS
1) Técnica de redação. O documento é redigido sem deixar espaços vazios, num único parágrafo, sob a forma de ata de reunião (proteção contra fraudes);
2) Identificação do beneficiário e registro de sua prova de identidade; (mecanismo anti-fraude batizado de “cara-crachá”, em homenagem ao humorista Paulo Silvino);
3) Descrição do ato médico (consulta ou procedimento) que fundamenta a atestação, especificando o local, data, nome e horário de realização;
4) Registro do diagnóstico (nome por extenso ou CID-10), caso haja autorização;
5) Consequências. A norma do CFM referencia a estimativa do tempo de afastamento necessário para a recuperação da saúde do paciente. Pode ter outras implicações como alteração significativa na vida diária ou contraindicações à vacinação anti-covid;
6) Cláusula de autorização, caso ocorra divulgação do diagnóstico, a ser assinada pelo beneficiário no próprio atestado. (produção de provas contra quebra do sigilo).
LAUDOS CLÍNICOS
Requisitados pelo paciente ao seu médico assistente, abrangem a descrição e completa análise evolutiva de uma doença desde seu início até o momento presente. Visam justificar uma petição ou defesa. Sem normatização. Pode ter anexação de imagens.
DECLARAÇÃO OU ATESTADO?
É outra confusão. O Posto de Vacinação poderia acatar uma declaração? Recorro ao mestre Genival Veloso que ensina: “Na descrição do ato profissional, médico atesta e não declara”. Mas e a Declaração de óbito? Seria uma exceção?
RECOMENDAÇÕES PARA O DESTINATÁRIO
O médico incumbido de acatar o atestado observará sinais de fraudes (rasuras e fotocópias) e no caso da diagnose não constar no Programa de Imunização, ainda que válido e verdadeiro, será recusado por ser ineficaz.
CONCLUSÃO
Na vacinação, os atestados e os laudos clínicos são adequados para comprovação da comorbidade. Mas ao se limitar ao diagnóstico da comorbidade, ser o mais regulado, seguro e ágil para o emitente, beneficiário e receptor é o atestado o documento ideal.
Não vacile, vacine-se!
- Eurípedes Mendonça é Médico
A BIENTÔT, ARLETTE por Francisco Barreto
Neste final de maio, quando vicejam as cores da primavera de todas as flores com distinção para o fino aroma e as cores brancas do “muguet” conhecido também como “Lis de Vallée” é um precioso e lindo ícone que vem da milenar tradição céltica.
O suave e intenso perfume que exala a todos desse conjunto espargem sentimentos de felicidade e “bonne chance”. É um amuleto simbólico que se espraia por toda a França, anunciando que o inverno cedeu lugar aos ensolarados e alegres cálidos dias em que as pessoas e a natureza desabrocham e florescem.
Como um lindo e esplendoroso ramo de “muguet”, Arlette Martin Espínola retorna à sua amada Normandia. A sua bela Normandia que seduziu Monet, Flaubert, Prévert e Guy de Maupassant, dentre os mitos e dos muitos que a amaram perdidamente.
Arlette sofridamente parte deixando Humberto, o seu grande companheiro, e Benoît Henri, o seu amado filho (meu afilhado) a sua paixão fruto de uma formidável gênese franco-brasileira. Parte, certamente feliz “à la recherche du sol sacré de la France” para a sua “destinée finale”.
Retorna, nestes 27 de Maio, à sua terra natal Normande, ao Village de Dozulé em Calvados, como uma filha pródiga da felicidade e do afeto levando em suas mãos ramos de “muguet” augurando que a sua eternidade será uma eterna primavera.
Antevejo Arlette entrando no céu, alegre, tímida, generosa, silente, toda de branco, como se estivesse envolvida na própria alma. E, na Conciergerie do Paraíso, ouve alguém dizer: “Entre, Arlette, você não precisa dizer ‘Ni P ardon, ni s´il vous plaît’, seu lugar está reservado”.
Obriga-nos a leveza e a grandeza de Arlette a vê-la caminhar tranquila, como era, sobre uma senda emoldurada por flores e ramos de “muguet” perfumados.
Arlette era como um botão primaveril que desabrochava para todos os que a cultivaram: um olhar solidário e generoso, um sorriso largo encilhado no seu afeto, gestos calmos e delicados e a surpreendente grandeza de uma alma em paz com a vida.
Tinha um distinguida sensibilidade artística à flor da pele. Era mímica por vocação, artista plástica habilidosa em suas aquarelas e em seus arranjos florais de ikebana. Amava a música. E Brassens sempre morou no lado direito do seu peito.
Não lembro em nenhum momento de lhe ter visto abatida e entristecida. Falava com discrição e sem hesitações, pronunciava com comedimento as suas opiniões a “a bout portant” os seus precisos dizeres.
Deixou a Comuna de Montmartre, em Paris, pelas mãos venturosas de Humberto. Abraçou e amou o Brasil e não mais olhou para trás nem abandonou a sua paixão pela França. Nunca hesitou em se sentir uma enraizada brasileira com seu marido e filho.
Dói a todos que viveram o tempo de Arlette entre nós a sua partida prematura. Muita tristeza que deve nos inspirar momentos da paz que certamente desejaria aos seus. Ela lutou bravamente, no extremo da sua coragem. Sabia que tinha que partir, certamente. Palmilhou os seus últimos passos iluminando os seus e certamente, de onde estiver, acena-lhes desejando muita felicidade.
Não esqueçam nunca na existência de vocês, companheiro e filho, que a vossa felicidade tem um nome: Arlette. Permitam-me, lado a lado, ombro a ombro, ecoar com muito afeto: A bientôt, minha querida Comadre Arlette.