TIO NERGES E DOM PEDRO, por Frutuoso Chaves

Dom Pedro II em frente à Casa de Comércio e Cadeia de Pilar (Imagem copiada do livro 'A chegada de D. Pedro II à Pilar e outros Poemas Pilarenses', de Antônio Costta)

Dom Pedro II em frente à Casa de Comércio e Cadeia de Pilar (Imagem copiada do livro ‘A chegada de D. Pedro II à Pilar e outros Poemas Pilarenses’, de Antônio Costta)

Deram o nome de Pedro II à pracinha inaugurada na saída de Pilar. Ou na entrada, se o percurso for feito desde Café do Vento, na BR-230, em direção ao Baixo Vale do Paraíba.

Com a denominação, os pilarenses trataram de homenagear o primeiro governante do País, no exercício do cargo, a pôr os pés na cidadezinha que teve o progresso sepultado pelo transcurso dos anos. Não menos, pelo descaso que dela afastou a estrada entre João Pessoa e Campina Grande e, de quebra, ainda matou os trens de carga e passageiros.

O segundo foi Bolsonaro, na campanha sem êxito para a reeleição. Desceu do helicóptero, apertou umas tantas mãos, acenou para o povo e se mandou. Também, ali, a contagem dos votos, meses depois, daria a vitória ao outro. Mas essa é outra história.

Nos idos de 1859, Pilar detinha importância suficiente para a visita imperial. Era uma espécie de Capital da Zona Canavieira numa Paraíba que em muito contribuía com o fabrico do açúcar, então o produto de maior peso da pauta de exportações do Nordeste.

O Imperador chegou antes do esperado, na tarde de 26 de dezembro. A Casa de Câmara estava fechada e as pessoas ainda se preparavam para recepcioná-lo quando a comitiva irrompeu lá para as bandas do “Compra Fiado”, trecho mais pobre da Vila, com o nome assim justificado.

A Rua Grande, quase deserta, viu passar o cortejo a cavalo e uma só carruagem: aquela na qual a Imperatriz, dona Teresa Cristina, seguia o marido, tomando poeira. Participavam do grupo numeroso o Comandante da Guarda Nacional, um Ministro do Império e, é claro, o Presidente da Província Ambrósio Leitão da Cunha.

A saída da Capital dera-se ao nascer do Sol com parada para o café no Engenho São João, do Barão de Maraú. Conta-se que o Barão, longe do padrão intelectual que o título sugere, ladeava Dom Pedro no momento em que este, próximo a um pé de fruta-pão em plena carga, olhou para o céu nublado e observou: “A atmosfera está carregada”. Ao que o anfitrião retrucou: “Vossa Majestade não viu nada. Carregada estava no ano passado. Era cada atmosferão desse tamanho”.

Acho que é em “Meus verdes anos”, seu livro de memória, que José Lins do Rego fala de uma velha professora de Juripiranga orgulhosa do vestido usado na recepção ao Imperador e ainda preservado, com jeito de novo.

Estive na pracinha há poucos dias. Canteiros florescendo, bancos pintados e postes com lâmpadas de neon mais vivas e radiantes do que as das ruas centrais. Ali, não pensei em Dom Pedro, como penso agora. O que me veio à lembrança foi a bodega do Tio Boanerges, na esquina da Rua do Silva. Imperador algum nos faz sentir a falta que sentimos dos entes queridos. Um só Boanerges me vale mais do que mil reis e rainhas.

A fachada é a mesma. Mudou a cor e, também, a disposição dos artigos expostos à venda não mais em prateleiras atrás do balcão com a clássica balança de pratos e, sim, em gôndolas percorridas pela freguesia para as compras do tipo “pegue e pague”. O supermercado, de fato, veio para fazer moda.

À pequena distância, a casa da querida Lourdes, a jovem em quem meu tio pôs os sentidos. Lembro do dia em que ele carregou a moça, para desespero da minha mãe temerosa da raiva daqueles que o irmão viria a ter como sogro e cunhados. Mas tudo, felizmente, logo se pacificaria. Do casamento nasceram três meninas branquinhas tão belas quanto a mãe o foi no esplendor da juventude.

Sangue bom o desse Boanerges gerador de mulheres bonitas que, aliás, também vieram para botar no mundo seres bem próximos dos anjos. Clarissinha, a primeira neta, é uma festa para os olhos. Bia, a outra, ainda muito novinha e a quem apenas vi nos seus primeiros passos, aparece-me no Facebook com ares de princesa, dessas dos contos de fada. Dom Pedro II? Pois sim. Uma visita a Pilar vale mesmo é por essas lembranças.

O SABOR DO PERIGO, por Frutuoso Chaves

Imagem do sindal.org.br • Credito: Isabelle Ribeiro

Para começo de conversa, um conselho de amigo. Não tente reproduzir em casa o tempero das ruas. Creia-me, não conseguirá. Digo mais: você nem chegará ao pão na chapa de boteco, aquele das seis da manhã com café pingado, se o preparo acontecer no santo recesso do lar.

Desista. Certos condimentos somente alcançam a plenitude quando feitos de mistérios e riscos, ingredientes geralmente faltosos às panelas domésticas em cozinhas assépticas como salas cirúrgicas.

Um velho amigo definiu à perfeição o sarapatel que lhe ia à boca numa barraca de higiene duvidosa, antes do nascer do sol: “Tem o sabor da emoção”. Com as licenças da juventude, ele havia saído morto de fome daquilo que a minha e a avó de vocês, entre a esconjuração e o sinal da cruz, tratariam por casa de tolerância.

Por falar nisso, aquele sobrado da rua de comércio então vibrante à luz solar, mas um templo noturno da boemia, ganhou seu respeito quando a proprietária insatisfeita com o calote institucionalizado afixou o cartaz na parede: “Proibido o ingresso de cachorro, menor de idade, jornalista e político”.

Como tantas ruas antigas, aqui e lá fora, aquela, de fato, tinha duas caras e duas almas, umas para o sol e outras para a lua. Os de passadas gerações, provadores de seus quitutes, bem o sabem.

Agora, responda, antes que percamos o rumo da conversa: o frango assado em casa tem o mesmo sabor do galeto das esquinas? Duvi-dê-odó, com o perdão dessa outra expressão das avós. E o cachorro-quente doméstico? E o pernil caseiro compara-se ao fatiado num pão francês chapado e oferecido pela garçonete depois da meia-noite e de uns cinco chopes?

Pois é, minhas e meus camaradas. Faltam aos pratos domésticos o molho e o segredo dos bares, lanchonetes e tendas do comércio ambulante. Coxinhas, pastéis, bolinhos de bacalhau, casquinhas de caranguejo, batata frita, ovos cozidos (até eles) têm o santuário das ruas. Sei de muita gente para a qual nem a hotelaria de cinco estrelas consegue reproduzir a contento os pratos e aperitivos típicos das barracas e botequins de pequena grandeza com chapa e fogão ocultos, misteriosos, mal percebidos.

A convocação para reforçar a equipe da Sucursal d’O Globo, no Recife, antes e depois da visita de João Paulo II, obrigou-me a viver de restaurante por duas semanas. Ao cabo da primeira eu já não mais suportava o que me vinha à mesa, apesar do bom e amplo serviço a la carte do então conceituado Pedro I. Fui salvo pelo colega Inaldo Sampaio que me apresentou ao Chambaril de Dona Maria, uma palhoça em terreno baldio próximo da Faculdade de Direito aonde se chegava por um buraco enorme aberto no muro. A superlotação do lugar bem falava daquela mão de fada.

Tempo depois, ao visitar duas antigas vizinhas da minha mãe, moças viajadas com experiências de Ásia e Europa, fui surpreendido com suas boas referências àquele prato. Desculpadas a pose e a afetação que não conseguiam conter quando no trato dessas viagens, espantaram-me ao dar ao ossobuco pernambucano o tempero de um restaurante da Lombardia. Pronto, foi o que me faltava para perceber que as palhoças também podem ter o apego dos esnobes.

Ah, o caldo de camarão da recifense Rua do Riachuelo… Não mais do que um balcãozinho de fórmica embaixo do lance de escada no térreo de um sobrado aos pedaços. No caixa, a mulher com sete meses de barriga. No fogão de uma só boca, às voltas com o caldeirão, o marido recém-demitido em razão do fechamento do Banco do Estado de Pernambuco por obra e graça de Miguel Arraes.

A raiva e o propósito do tiro no governador já haviam sido substituídos pela satisfação daquele moço com a fila enorme na calçada. Funcionava assim: você entrava, comprava dela uma ficha, buscava a cachaça contida em um filtro de barro tendo à mão um copinho de plástico feito para café e, finalmente, o caldo servido por ele em semelhante copo, divinamente saboroso. De quebra, a azeitona num palito e, graciosamente, também, uma fatia de limão. O toque ácido seria o símbolo da superação e da resistência. Afinal, o casal fizera uma limonada do fruto que colhera da sorte madrasta.

Acho que assim tem sido com muitos dos que hoje vivem de pães assados, sarapatéis, caldinhos e petiscos diversos. A vida severina que deles subtraiu o estudo, o bom emprego e a boa sina não impediu que de melhor forma se houvessem com seus fogões e chapas, muitas delas lavadas não se sabe com quais cuidados nem com que frequência. Os sabores incomparáveis que nos oferecem talvez advenham disso: do suor, do esforço e do propósito de servir, no mais das vezes, aos perdidos nas noites.

Seria uma irresponsabilidade afirmar que todos não primam pela limpeza nem pelo bom acondicionamento daquilo que fritam, assam ou aferventam. Ninguém, em seu bom senso, é capaz de tamanho disparate. Há deles muito bem asseados, do mesmo modo como há restaurante bem estabelecido na mira ocasional da Vigilância Sanitária. Quem disso não sabe?

Mas o jovem que um dia eu fui ainda teima, eventualmente, em dar ouvidos à avaliação de um velho companheiro de batente para quem a melhor feijoada seria aquela com ambulância à porta. Eventualmente, repito, pois de uns tempos para cá me tem falado mais alto o septuagenário que agora foge das intoxicações como o diabo da cruz. Ainda bem.

DIA DO OBRIGADO, por Frutuoso Chaves

Postagens sucessivas nas redes sociais lembram o transcurso, neste 11 de janeiro, do Dia Internacional do Obrigado. Aprendemos que o termo é um belo traço da alma e da língua portuguesas. Coisa de séculos.

Enquanto outros mortais se limitariam a expressar o sentimento de gratidão com meras interjeições (thanks, danke, merci, gracias) os herdeiros da língua de Camões, em quatro sílabas apenas, dispõem-se a retribuir, obrigatoriamente, a atenção, a gentileza, o serviço, ou o favor então recebidos de alguém.

O obrigado, ou obrigada, teria este significado: “Sinto-me obrigado(a) à retribuição”. Quem já não leu crônicas, ou ouviu mensagens saborosas com esse tema? E todas com louvores à concisão e à pureza da língua que herdamos.

Eis que leitura recente me conta outra história e me corta o barato. A palavra, com origem indo-europeia (leyg, de ligar), tinha uso formal no fim das cartas de antigamente, com termos exageradamente rebuscados aos olhos de hoje. Coisa do gênero: “Muito venerador e obrigado (ligado) a Vossa Mercê”. Viria daí, também, o “merci” francês.

Com o tempo, o “obrigado” pulou de categoria e reinventou-se, ao que leio no Vortex Magazine, um portal de língua portuguesa dedicado a temas relacionados à sociedade, à cultura, às viagens e à tecnologia, tal como se apresenta.

A VortexMag bebe nas fontes de linguistas e pesquisadores portugueses, a exemplo de Marco Neves e Fernando Venâncio, para garantir que o termo “obrigado” somente tem registro escrito, com o sentido atual, a partir do Século 19. Ou seja, Camões nunca agradeceu a ninguém desse jeito. Quanto a mim, com as minhas carências emocionais e culturais, prefiro o sentido moderno da palavra. Afinal de contas, o uso consagra, não é?