ESPELHO, ESPELHO MEU, por Juca Pirama

Existe na Alemanha uma revista semanal que é muito popular. E respeitada no mundo todo pela sua linha editorial independente.

Fundada em 4 de janeiro de 1947, menos de dois anos após o final do conflito que destruiu a Alemanha, Der Spiegel surgiu de iniciativa do Comando Militar da Alemanha ocupada. Foi editada pelo major britânico John Challaner.

Demonstrando sagácia e impessoalidade ímpares, o major observou que os jornalistas alemães necessitavam de um veículo que fosse democrático e pudesse praticar a imprensa livre, após décadas sob o jugo de Josef Goebbels. Queriam ter voz.

Challaner decidiu então criar uma revista semanal chamada Die Woche (A Semana)*. Para isso ele convidou vários jornalistas, todos germânicos, para serem redatores. E deixou-os totalmente à vontade.

Mas os jornalistas se soltaram demais. A forma irreverente em suas críticas a todo mundo: políticos alemães, Comando Aliado, e principalmente as forças de ocupação, causou incômodo, e fez com que o seu editor fosse demitido.

O novo editor foi um jovem jornalista alemão de Hannover, Rudolf Augstein, que mudou o nome da revista para Der Spiegel (O Espelho). Augstein manteve a mesma linha editorial independente, até a sua morte, em 2002.

Der Spiegel adotou como linha editorial a independência jornalística acima de tudo, doa a quem doer. Pode-se dizer que tem sido até os dias de hoje um bom espelho para a formação democrática da nação alemã.

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Os espelhos são uma aplicação prática de um fenômeno da física: o reflexo. É estudado no capítulo da ótica. Tem todo tipo de serventia, desde artefato inseparável de narcisistas até super-telescópios. Mas nem sempre é bem-visto.

Existem pessoas que não gostam do que vêem, quando defrontadas com a imagem de si mesmas. As que têm senso crítico aproveitam para dar um retoque em sua fisionomia; ou em sua vida, sua conduta, as suas atitudes.

Outras, diante do espelho, gostam do que veem e podem despertar para uma nova personalidade, assumindo outra vida, que estava dentro de si e não sabiam.

É este o fenômeno sociológico que está acontecendo no Brasil. Porém o que surpreende é o “espelho” que lhe fez despertar: Jair Bolsonaro!

Ao mirar-se em sua figura, em sua personalidade complexa, patológica, pois não é que milhões de brasileiros se identificaram, e assumiram essa personalidade?!

De repente, descobriram-se admiradores capazes de se tornarem mentirosos, pornofônicos, enganadores, arrogantes, fãs de torturadores, odiosos de manifestações e instituições democráticas, indiferentes ao sofrimento alheio e capazes de atitudes canalhas.

Passaram a agir como ele, em suas atitudes, no seu pensamento. Comportam-se como psicopatas, refletindo o espelho.

Soltaram a fera que existia reprimida dentro de si, e passaram a desprezar tudo o que lhe parece ser demonstração de fraqueza: educação, bons modos, gentileza, cortesia, manifestação cultural, pessoas pobres, negras ou homossexuais, ciganos, cotas para minorias, Estatutos de proteção a menores e a idosos. E, não duvidem, serão capazes de combater, brevemente, até faixas para pedestres.

Passaram a aplaudir o seu espelho, a segui-lo incondicionalmente, a acreditar em tudo o que ele diz, e imitá-lo em tudo o que ele faz.

Esse fenômeno já deve estar sendo estudado por sociólogos, antropólogos e psiquiatras. E acho que dificilmente se reverterá.
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*NA: Não confundir com o jornal diário Die Woche, que circulou por Berlim de 1899 a 1944. Era controlado pela censura nazista, como os demais veículos noticiosos da época.

O TRISTE DA PANCADA DO SINO, por Rubens Nóbrega

Novo aviso aos navegantes: o blog não vai mais postar comentários que não  acrescentem nada às nossas conversas | Blog do Chico Maia

Imagem copiada do Blog do Chico Maia

O ser humano é bicho muito interessante. Conheço um que volta e meia tem surtos de homofobia explícita, chama todo mundo de ‘viado’, diz que odeia ‘bicha’ e, se pudesse, matava todos os LGBTQ+ do planeta. Mas, vejam só, há tempo descobri que o cara é gay. Um gay super enrustido.

Suas explosões públicas de preconceito não passam, portanto, de suposta esperteza para esconder orientação ou preferência sexual diversa daquela que o senso comum carimba de ‘normal’, bem distinta de outra que provavelmente seu círculo mais íntimo estranharia ou condenaria.

Eis o tipo que acredita no seguinte: repetindo a todo instante que fulano é ‘viado’ e sicrano é ‘bicha’, quem o ouve proferindo palavras que julga ofensivas não percebe a real dimensão da infelicidade que deve ser a vida do infeliz. E nunca, nunquinha na vida, desconfiará que ele não é o machão que propaga ser.

Conheço outros – poucos, ainda bem – que jogam da mesma forma, mas no campo político. Os espertos desse jaez elegem determinado expoente para chamar de ‘corrupto’. Sistematicamente, em qualquer momento ou espaço, infamam como ‘safados’, ‘bandidos’ e assemelhados quem odeiam de paixão por razões estritamente ideológicas.

Com tal mantra ou bordão, imitando o gay irresolvido que jamais destranca as sete chaves do dilema que o mantém no armário, as criaturas horrendas pretensamente politizadas tentam se convencer, primeiro, de que são puras e castas.

Secundariamente, mas não menos importante, os insultadores da inteligência alheia – toscamente goebbelianos – supõem que a população mundial os emoldura na galeria dos honestos, quando, na verdade, eles apenas reeditam o punguista que bate a carteira e grita “Pega ladrão!”.

É como diria o jornalista Werneck Barreto, meu amigo de fé, irmão, camarada: gente assim é o que a gente pode chamar de ‘o triste da pancada do sino’.

CARNAVAL, por Ana Lia Almeida

Os clarins anunciam a chegada da vacina. Com ela, o próprio Carnaval. Não o cancelado, deste fevereiro, mas a sua essência, a vida pulsante que ele carrega debaixo das sombrinhas de frevo. Ouço de longe o baque solto dos maracatus. Minhas mãos já se dão em ciranda.

“Você vai mesmo se vacinar, moça?”. Estarrecida, quase não compreendo a dúvida.

Quero a vacina como quero a vida com suas prévias, sua apoteose, suas quartas-feiras de cinza. A vida desembestada que nem um dragão vermelho cuspindo labaredas, um elefante virado na folia, um calunga dançando à meia-noite. 

Porque a vida, meu bem, é feito o Carnaval. Ela tem todo ano, mas é curta. Um tal de sobe e desce ladeira, num instante acaba.

Vou tomar, sim. Mal posso esperar por essa injeção de vida. Os clarins já anunciam.

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AH UMA LEI CANANÉA! por Rubens Nóbrega

Simeão Cananéa (Foto: TJPB)

Quero uma Lei Cananéa para botar na cadeia, sem direito a fiança, qualquer autoridade ou cidadão que dificultar, bagunçar ou impedir qualquer brasileiro de se vacinar em qualquer campanha de imunização contra qualquer doença, do sarampo à covid.

Precisamos de uma Lei Cananéa com agravante de pena para quem exerce cargo público, eletivo ou de confiança do eleito, e usa seu poder para sabotar a vacinação enquanto propaga remédio ou tratamento comprovadamente inútil contra a doença alvo da vacina.

É pra ontem uma Lei Cananéa que puna exemplarmente os antivacinas, anticiência, negacionistas e terraplanistas de toda ordem que pregam a desordem em favor da morte, promovendo aglomerações e relaxamento de cuidados que podem salvar vidas em pandemias.

De urgência urgentíssima uma Lei Cananéa que pegue e castigue duramente quem for encontrado em culpa por abandono de dependente incapaz. Crianças e idosos deliberadamente não vacinados por decisão ou omissão de seus responsáveis, por exemplo.

Ah uma Lei Cananéa para jogar no xadrez qualquer governante, de prefeito a presidente, que desrespeitar a vez dos prioritários na vacinação e beneficiar a si próprio ou seus parentes mais próximos, afilhados, compadres, comparsas e apaniguados em geral! 

Por que uma Lei Cananéa?

Porque seria mais um justo reconhecimento a Simeão Cananéa, juiz de Direito nos 60 do século passado, em Bananeiras, onde botava medo de prisão no pai ou mãe que não mandasse filho pequeno pra escola.

Graças àquele combate ao abandono intelectual, três ou quatro anos após Doutor Simeão encerrar sua magistratura bananeirense, um censo nacional colocou Bananeiras em primeiro no ranking de alfabetização da Paraíba.

Santa Luzia, terra de nascença e berço de Vicente, meu pai, deve ter registrado também número reduzido de analfabetos. Foi por lá que Doutor Simeão começou a proteger criança da desídia parental.

Lembro Doutor Simeão, hoje, por dois motivos. Primeiro, o transcurso do seu centenário no recém finado 2020, que o fez merecedor de comovente homenagem do Tribunal de Justiça da Paraíba, do qual foi presidente.

Lembro também Doutor Simeão por laços bananeirenses com o Doutor Márcio Murilo, atual desembargador-presidente do TJPB, filho da Professora Olga Ramos e do também saudoso desembargador Miguel Levino Ramos.

Por generosidade de Márcio Murilo, participei de sessão especial virtual do Pleno dedicada àquele que foi, antes de tudo, um educador. Aconteceu em 16 de dezembro do ano passado. Desde então, fiquei tentado em propor uma Lei Cananéa.

Proponho agora na esperança de algum parlamentar federal ler ou ter conhecimento da proposta e dela fazer projeto de lei. Projeto que em discussão e votação dirá quem é pela vida e quem é de morte nesta ‘página infeliz de nossa história’.

“NÃO CONSIGO RESPIRAR, GENERAL…”, por José Mário Espínola

‘El triunfo de la Muerte’, de Pieter Bruegel el Viejo (imagem copiada da revista eletrônica Touch of Class)

Uma das sensações mais angustiantes que um ser vivo pode experimentar é a da sufocação. Respirar o ar puro é o mais importante fator necessário à condição de vida, mais ainda do que a ausência de água salubre para beber, que leva à sensação da sede. Esta, porém, ainda suporta alguns dias até a extinção da vida. A falta de ar só é suportável durante poucos minutos.

O mágico Houdini provocava a sensação de pânico na plateia que o assistia se livrar das algemas que o prendiam dentro de um tanque d’água. Ou dentro de um barril cheio de água descendo rio abaixo. Então ele surgia triunfante à superfície, trazendo a plateia abaixo.

São pouco frequentes casos de sufocação por obstrução das vias aéreas, principalmente em crianças. Em adultos são menos frequentes, mas acontecem. Anos atrás, perdemos um bom amigo que se engasgou com um pedaço de carne, durante um churrasco.

São casos esporádicos, felizmente. O que estamos assistindo no Amazonas, no entanto, é um verdadeiro morticínio em massa causado pela falta de ar em consequência da Covid 19, sem que os pacientes tenham oxigênio disponível para sobreviver.

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Para manter o organismo vivo, o ar que respiramos percorre um longo trajeto: ao ser inalado pelas narinas, desce para uma câmara, a faringe. Daí, penetra um pequeno orifício, a glote, que é obstruído pela epiglote quando o alimento passa pela faringe em direção ao esôfago ou se abre para a passagem do ar respirado.

O ar atravessa a laringe, acessada logo abaixo pela glote, e onde estão as cordas vocais, que geram os sons com a passagem do ar. Logo abaixo da laringe, o ar desce por um tubo largo, a traqueia, que dá origem aos dois brônquios-fontes correspondentes aos pulmões direito e esquerdo.

O ar desce pelos brônquios, que se estreitam dando origem a tubos cada vez menores e numerosos, os bronquíolos. Estes terminam em minúsculos saquinhos, os alvéolos. Em número de milhões e intimamente ligados à circulação pulmonar, é nos alvéolos que acontece a troca gasosa: o ar rico em oxigênio, que chega, por gás carbônico, lixo gasoso produzido pelos órgãos e trazido até os alvéolos pela circulação venosa. O ar, desta vez rico em gás carbônico, é eliminado através da árvore brônquica percorrendo no sentido inverso à inalação do ar que garante a vida.

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A Covid 19 é uma doença viral muito grave, pois provoca distúrbios de coagulação em órgãos do nosso corpo. Quando afeta os pulmões, esse processo patológico ocorre ao nível dos alvéolos, que sofrem uma inflamação brutal, impedindo a troca do gás carbônico por oxigênio natural do meio ambiente. Falta, então, oxigênio vital para todas as células do corpo.

Para que o paciente sobreviva enquanto as complicações são tratadas, além de medicação intensiva em altas doses é necessário que oxigênio puro seja injetado nos pulmões, através da árvore brônquica.

Na maioria dos casos isso é suficiente utilizando-se uma máscara de alta pressão, a Venturi. Nos casos mais graves, porém, é preciso que o paciente receba um tubo através de sua traqueia, pelo qual se joga oxigênio puro diretamente dentro dos pulmões.

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Para mim é muito angustiante assistir depoimentos desesperados obtidos durante reportagens que vêm sendo exaustivamente veiculadas sobre a imensa tragédia que está se abatendo sobre o Amazonas.

Tragédia anunciada. Há pelo menos nove dias, já se sabia que não haveria oxigênio suficiente para dar suporte ventilatório aos tantos pacientes portadores da forma mais grave e mais letal da doença Covid 19.

Inevitavelmente me vem à lembrança dois episódios recentes: as mortes de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto Silveira Freitas, num supermercado de Porto Alegre. Em ambos os casos, as mortes por sufocação foram anunciadas e, portanto, poderiam ter sido evitadas.

Assim como muitas mortes poderiam ter sido evitadas caso as autoridades de saúde, em seus três níveis (Prefeitura de Manaus, Estado do Amazonas e Ministério da Saúde), tivessem envidado todos os esforços ao seu alcance, necessários para minimizar os efeitos da doença (ou mesmo evitá-la), especialmente o colapso da rede de hospitais.

Concorreram para esse desfecho tenebroso as autoridades, tanto municipais quanto estaduais e federais, ao autorizarem campanhas políticas no mês de novembro; ao permitirem concentrações festivas no mês de dezembro; ao terem desmanchado os hospitais de campanha; ao permitirem o desabastecimento de medicamentos e equipamentos essenciais ao tratamento da Covid 19 e ao terem negligenciado diante das evidências de que iria faltar oxigênio na rede hospitalar daquele Estado.

Pelo contrário, não apenas permitiram como também incentivaram o fim do distanciamento social e das demais medidas sanitárias.

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A imagem que mais representa a tragédia do Amazonas é digna de uma cena medieval, que poderia muito bem ser retratada nos mais expressivos quadros de Pieter Bruegel ou de Hyeronimus Bosch: uma pirâmide macabra, cuja base é composta por milhares de cadáveres carcomidos de pacientes mortos, a maioria por sufocação. E cercada por uma roda de pequenos demônios e esqueletos animados, que dançam alegres e agradecidos.

No alto da pirâmide está o presidente da República, Jair Bolsonaro, sorriso triunfante, que desde o início da pandemia vem escancaradamente sabotando o sistema de saúde do Brasil, estimulando o uso de tratamentos inócuos e a desobediência às medidas sanitárias. Aos seus pés está o seu ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que ocupa esse lugar por total e escancarada incompetência para dirigir pasta tão importante, especialmente neste momento tão grave de crise da saúde brasileira. E por aceitar, em troca do cargo, promover as insanidades emanadas pelo seu presidente, filhos dele e asseclas.

Logo abaixo deles vêm o governador do Amazonas, Wilson Lima, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Neto e seus respectivos secretários da Saúde. Eles não só autorizaram concentrações eleitorais e sociais como participaram delas, dando o mau exemplo. E desmantelaram todo o serviço público de saúde, rede de farmácias e laboratórios, além dos hospitais de campanha.

Tenho a esperança de que sejam responsabilizadas, uma vez encontradas em culpa, todas essas autoridades. E todas as outras que fizeram algo em favor da tragédia e não das vítimas, além de todos aqueles com algum grau de responsabilidade na crise da saúde. Aí cabem empresários que se aproveitaram da crise para auferir lucros, políticos que se deixaram corromper para facilitar os negócios escusos durante a pandemia et caterva.

Enfim, todos eles um dia serão julgados por haverem concorrido para as mortes resultantes, seja por imperícia, imprudência ou negligência. Por ação ou omissão.

  • ‘El triunfo de la Muerte’, de Pieter Bruegel el Viejo: imagem que ilustra este artigo (copiada da revista eletrônica Touch of Class)

PERDÃO, NERUDA, por Francisco Barreto

Quero apenas cinco coisas…
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera
para que continues me olhando.
Pablo Neruda

Exumando deslumbramentos dos meus dezessete anos, sinto ainda hoje que Pablo Neruda, sem pedir licença, invadiu a minha alma e passou a conviver comigo na minha adolescência e depois na maturidade.

Em 1965, de ônibus, movido pelo meu arrebatamento aventureiro, fui até Buenos Ayres via Montevidéu, e nesta ultima, a tiracolo, fiz de Neruda meu companheiro daquela longa viagem. Ele e os seus Cien sonetos de amor.

Com Neruda, aprendi que a grandeza da síntese é a alma da poesia. É o mais difícil dos gêneros literários, que nos faz desaguar em emoções, porque cada frase é lavrada com extremo afeto.

Os grandes poetas, e Neruda o era, nos fazem latejar e vicejar sublimes emoções. Todas as suas linhas foram impregnadas por emoções e nelas me encontrei. Sempre afetuosamente. Em seu Poema 20 nos faz delirar:

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe”.
O vento da noite gira no céu e canta.

Por Neruda, e sua grandeza poética, sempre conservei uma profunda e enraizada admiração. Atiçara-me sempre o desejo de ver e conhecer Pablo Neruda e poder dizer da minha extraordinária alegria.

Em 1973, fui atraído pela possibilidade de encontrá-lo. Lendo o Nouvel Observateur me deparei com uma entrevista feita pelo grande Jean Lacouture, autor de memoráveis biografias de André Malraux e Pierre Mendès France.

O habilidoso articulista, entrevistando Neruda, então Embaixador do Chile na França, de chofre lhe perguntou: “A América Latina não lhe falta?”. Neruda lhe disse: “Não, todas as semanas vou à América Latina. Todas as quartas-feiras vou a Librairie Espagnole”.

E ia mesmo. Lá encontrava muitos amigos latino-americanos, exilados ou não, e alguns resistentes da Guerra Civil da Espanha. Tinha uma reverência muito grande por Antonio Soriano, republicano e resistente, exilado no final da Guerra da Espanha. Era o dono da Librairie Espagnole.

Ao ler a entrevista do hebdomadário Nouvel Observateur, havia encontrado uma preciosa senha para ir ver Neruda. Numa quarta-feira qualquer, fui até à Rue de Seine, no Quartier Latin, em Paris.

Era um minúsculo estabelecimento, porta e vitrine que permitia ver tudo internamente. Passei na frente, e num exíguo espaço atrás da vitrine vi alguns idosos senhores palestrando alegremente. Uma cadeira de balanço de palhinha e lá estava Neruda; no colo, sua boina basca.

Demorei a acreditar no que estava vendo. E por segundos me detive vendo os desajeitados livros exibidos no mostruário da vitrine. Fiz meia volta, hesitei, em seguida entrei. Cumprimentei a todos e passei a deslizar a minha vista nas prateleiras de livros. Sem desgrudar da minha intenção, mantive os olhos fixos em Neruda.

Alguns minutos depois, retirei-me da Espagnole em estado de graça. Não tive a coragem de me dirigir a Pablo Neruda. Brutal e incomensurável timidez que se repartia como uma certa falta de coragem. Havia terminado o meu extraordinário encontro com Neruda. O arrependimento me incomodou sempre. Havia me conformado com um lapso de visão que sempre foi compensado pela leitura de seus escritos.

Tempos depois, ainda em 1973, Neruda regressa ao Chile para morrer. Sucumbiu a um câncer de próstata e foi embora 11 dias depois do golpe de Estado, em 23 de Setembro. Lembro-me com nitidez as imagens televisivas do seu funeral no Cementerio General em Santiago.

Impressionou-me o desfile do seu esquife ladeado por corajosos militantes comunistas que cantavam a Internacional. Ao longo do cortejo fúnebre muitas foram as vozes que gritavam “Companheiro Neruda!” e todos respondiam “Presente!”. O cortejo era escoltado por soldados armados. Terminada a cerimônia, todos foram presos e constaram da lista de mortos e desaparecidos sob as atrocidades pela ditadura chilena.

O grande Pablo Neruda não merecia ter tido um final tão dramático vendo o seu amado Chile trucidado por uma brutal e criminosa ditadura.
Os que sempre lhe amaram poderiam naquele 23 de Setembro de 1973 escrever os versos mais tristes.

Hoje mais do que nunca, se pudesse lhe diria: “Perdão, Neruda, não ousei lhe reverenciar com a minha alegria ao ter lhe visto de tão perto”.
Como Pablo Neruda sempre profetizou, “A timidez é uma condição alheia ao coração, uma categoria, uma dimensão que desemboca na solidão”.

Hoje, solitariamente, muito tempo depois me resta apenas rogar a Neruda que me perdoe por não ter lhe expressado a minha mais profunda homenagem por ter dado muita luz aos meus passos.

  • Francisco Barreto é economista e Professor de Direito da UFPB

MOTOBOY, por Ana Lia Almeida

Motoboy de pizzaria vai receber pagamento em dobro por não tirar folga aos  domingos – Sindvas

Imagem meramente ilustrativa copiada de sindivas.org

Estou de máscara, sim, senhor, pode abrir o portão. Veio errado, o sabor? Peço desculpas, senhor, pode entrar em contato com o estabelecimento para mandarem outra de quatro queijos. Infelizmente não posso, tem de ser o próprio cliente, pelo aplicativo. Sinto muito, mas meu trabalho é só a entrega, mesmo. Entendo. Espero, sim.

Senhor? E aí, disseram alguma coisa? É que ainda tenho outras três entregas. O senhor sabe, quando atrasa já vão logo avaliando o motoboy, dá problema pra mim. O pessoal não quer comer pizza fria, também. Mas não posso fazer nada, senhor. Reclame que mandam outra, já disse. Posso levar essa de volta, se o senhor quiser, mas geralmente a outra vem de cortesia.

Não adianta o senhor ficar me segurando aqui, não faz diferença para a sua reclamação. Ligue, reclame, e espere a sua pizza de quatro queijos. Eu estou calmo, mas tenho de trabalhar. Não tenho a sorte de descansar sábado à noite, pedindo pizza pelo celular. Tenho um monte de corrida, ainda, pra botar comida em casa. Não estou bravo, senhor, só preciso ir embora.

Atendeu? Está certo, eu falo. Alô, Dona Janete? Eu vim aqui fazer a entrega, o cliente não quis receber porque veio errado, frango com catupiry, quando o pedido foi quatro queijos. Eu disse a ele, já, que a senhora mandava outra, mas insistiu pra eu falar, está me segurando aqui, eu cheio de entrega. Já começaram a reclamar, não foi? Pode deixar que eu corro, sim, Dona Janete, é bem pertinho daqui, cinco minutos no máximo chego lá com a pizza deles. Não se preocupe, até mais.

Satisfeito, agora? Não entendi. Devolver o seu dinheiro? Aí o senhor liga de novo e resolve com a pizzaria. Eu? Mas era só o que me faltava, olhe, tenha uma boa noite e boa sorte com sua próxima pizza ou com a devolução do seu dinheiro, como quiser. Por favor me solte, não me faça perder a cabeça. Como é? Repita, se for homem. O senhor vai ver quem é o macaco. Tome, seu imbecil. Eu avisei, não foi? Coma uma fatiazinha de frango com catupiry, que passa. Fui.

Diga, Dona Janete. Já estou aqui na frente, esperando o cliente vir receber. O quê? Descontar da minha corrida?

REPRESENTADO, OUTRA VEZ, por José Mário Espínola

Imagens de médicos vítimas da Covid-19 são projetadas em prédio de SP

Imagens de médicos mortos pela Covid projetadas em edifícios paulistanos (Crédito: Metrópoles)

No início da década passada, as entidades médicas brasileiras travaram uma luta desigual no Congresso Nacional, pois até então o exercício da nossa profissão ainda não tinha sido regulamentado por lei.

Diferente das demais profissões de saúde, por descuido das gerações médicas anteriores nunca havia sido apresentado um projeto vitorioso, na Câmara Federal e no Senado, para regulamentar uma profissão tão antiga e prestigiada.

Em sua longa trajetória no Congresso, originalmente recebeu no Senado a denominação PL 268/2002, do senador Benício Sampaio, do PPB do Piauí. Após demorada evolução, foi aprovado por unanimidade no Senado e seguiu para a Câmara do Deputados, onde passou a ser denominado PL 7703/2006.

Ao longo de sete anos, o PL 7703/2006 sofreu todo tipo de agressões por parte das representações das outras 13 profissões de saúde. Tal hostilidade baseava-se em equívocos estimulados por dirigentes suspeitos que comandaram outros profissionais – dentistas, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistente social, biólogo, biomédico, farmacêutico, fonoaudiólogo, profissional de educação física, terapeuta ocupacional e técnico e de radiologia – numa verdadeira guerra santa contra aquilo que foi denominado Ato Médico.

Esses dirigentes das profissões citadas convenceram seus liderados que a aprovação da Lei do Ato Médico os transformaria em meros subordinados aos médicos e esses, por sua vez, limitariam as atividades daqueles profissionais.

Tamanha má vontade para com a classe médica parecia ter raízes históricas, originadas em comportamentos inadequados e arrogantes de médicos do passado.

Hoje, os tempos são outros e as novas e atuais gerações têm relações em que predomina o respeito mútuo aos outros profissionais de saúde, encarando a sua atividade como um trabalho de equipe, onde o bem comum é a saúde plena do paciente sob os seus cuidados.

Esse verdadeiro ranço encontrou eco no Congresso, todavia, mais exatamente na Câmara dos Deputados. Isso fez com que a lei atrasasse, demorando 11 anos até ser aprovada e sancionada.

Antes de ser aprovado, o projeto foi distorcido e politizado, especialmente por representantes do Partido dos Trabalhadores, com destaque para o então deputado paraibano Padre Luiz Couto, influenciado pelos representantes das outras profissões, com destaque para os psicólogos e fisioterapeutas.

Por causa disso, o projeto sofreu cortes substanciais nas prerrogativas da profissão médica. Teria sido pior, não fosse o denodo com que o seu relator, o senador paraibano Cássio Cunha Lima, defendeu a conservação do texto original, que continha definição justa das atividades exclusivas da formação do médico, que de modo algum cerceava atividades das outras profissões.

Aprovada com ressalvas na Câmara Federal, retornou ao Senado, onde foi aprovada por unanimidade. Finalmente, em 10 de julho de 2013, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a lei, mas, mal assessorada por seu ministro, o “médico” Alexandre Padilha, vetou dispositivos essenciais do texto aprovado pelo Senado, amputando assim a Lei do Ato Médico.

Pois bem: a luta heroica e desigual das nossas entidades representativas, com destaque para o Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB), foi renhida e mobilizou todos os médicos do Brasil.

Os cortes que a presidente Dilma, do Partido dos Trabalhadores, realizou na nossa Lei, e a concomitante luta da classe médica brasileira contra a aprovação da regulamentação do Projeto Mais Médicos, que escancarou as nossas fronteiras à invasão de profissionais que se diziam médicos, sem que pudesse ser realizada uma comprovação, visto que foi proibida a revalidação do diploma para esses “médicos”, fizeram com que os nossos colegas aprofundassem o seu repúdio ao PT e seus representantes.

Na eleição para presidente acontecida em 2018, sem ter bom-senso nem autocrítica, o PT lançou um candidato próprio. Isso provocou uma reação dentro da categoria médica, que compreensivelmente não havia esquecido as feridas abertas pelo Mais Médico e a Lei do Ato Médico. A eleição tornou-se, então, plebiscitária para a maioria em peso da nossa categoria. Cresceu a ojeriza ao candidato do PT, tendo os nossos médicos por maioria esmagadora abraçado qualquer um que fosse adversário do candidato do PT.

Quis o destino que um doido esfaqueasse o candidato da extrema-direita, um apagado político sem nenhum projeto expressivo na sua vida. A comoção nacional provocada pelo gesto do tresloucado, muito bem explorada pelas redes sociais que disseminam intrigas e ódio, teve o efeito de uma catapulta em sua candidatura.

Dentro da classe médica essas redes exploraram muito bem a aversão da categoria ao PT e tudo aquilo que o representasse. Essas redes souberam manipular muito bem o sentimento dos médicos brasileiros, fazendo com que contribuíssem fortemente para eleger Jair Bolsonaro presidente da República, numa eleição democrática. Até aí, tudo bem.

Em primeiro de janeiro de 2019, o cidadão tomou posse do cargo de presidente do Brasil. Foi o último ato importante por ele realizado. Pois, desde então, ele deixou de trabalhar e passou a ser um fazedor de piadas, comportando-se como um moleque adolescente no Palácio do Planalto, levando a vida sem seriedade, delegando o trabalho verdadeiro a seus ministros e ao seu vice-presidente, Hamilton Mourão.

A vida era uma festa até que o mundo mudou. E o Brasil foi assolado pela pandemia, que já ceifou a vida de mais de 200 mil brasileiros.

Em nenhum momento o presidente assumiu a liderança de ações que pudessem reduzir o impacto inevitável causado pela doença, na população e nas consequências econômicas.

Antes pelo contrário, ele sempre que pôde estimulou a desobediência às determinações das autoridades de saúde; por puro e ridículo ciúme demitiu o ministro da Saúde, que estava fazendo a coisa certa, terminando por nomear um incompetente em políticas de saúde, tão somente porque ele não lhe faz concorrência; ajudou a disseminar falsos e inócuos tratamentos, sem nenhuma comprovação científica, mobilizando recursos importantes desperdiçados na fabricação de remédios por ele eleitos como tratamento eficaz para a covid 19, e que nenhum estudo sério comprovou a sua eficácia; demorou a tomar (ou não tomou) atitudes que pudessem ajudar a reduzir o número de mortes causadas pela doença. Em resumo: negou a ciência, a lógica e estimulou o caos da ignorância, colaborando para a perda de mais de 200 mil vidas.

Ao longo dessa marcha para o desastre o que fizeram as nossas entidades de saúde? Partiram em defesa da medicina? Tomaram o partido da ciência? Nada disso. Colaboraram com a pregação da ignorância, da politização da ciência. Aplaudiram a alquimia.

Agora que o caos está instalado, cala-se num mutismo gritante, abandonando aqueles pelos quais fez o seu juramento de defesa. Deixou a classe médica e a ciência órfãs de representatividade.

Nem todos engoliram o canto de sereia do negacionismo oficial. Eis que médicos notáveis, cada um em sua respectiva época, com relevantes serviços prestados à nação e aos brasileiros que padecem, lançaram um manifesto lúcido, onde perguntaram às entidades médicas, representadas pelo Conselho Federal de Medicina:

– Onde estão vocês, que apoiaram a anticiência e a oficialização do atraso, dando as costas para a sociedade que deveriam defender? O que defendem agora?

Medicina é pura ciência. Medicina não é partido nem religião. Ao politizarem a medicina e a ciência, as entidades nacionais não representaram a totalidade da classe médica.

Eu nunca mais havia sentido que as minhas instituições de classe me representavam. Agora, sim, após tantos anos, voltei a me sentir novamente representado.

José Mário Espínola
Ex-Presidente e ex-Corregedor do Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB)

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  • A fotografia que ilustra o artigo, copiada do site Metrópoles, mostra imagens de médicos mortos pela Covid projetadas em edifícios paulistanos