PERDÃO, NERUDA, por Francisco Barreto

Quero apenas cinco coisas…
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera
para que continues me olhando.
Pablo Neruda

Exumando deslumbramentos dos meus dezessete anos, sinto ainda hoje que Pablo Neruda, sem pedir licença, invadiu a minha alma e passou a conviver comigo na minha adolescência e depois na maturidade.

Em 1965, de ônibus, movido pelo meu arrebatamento aventureiro, fui até Buenos Ayres via Montevidéu, e nesta ultima, a tiracolo, fiz de Neruda meu companheiro daquela longa viagem. Ele e os seus Cien sonetos de amor.

Com Neruda, aprendi que a grandeza da síntese é a alma da poesia. É o mais difícil dos gêneros literários, que nos faz desaguar em emoções, porque cada frase é lavrada com extremo afeto.

Os grandes poetas, e Neruda o era, nos fazem latejar e vicejar sublimes emoções. Todas as suas linhas foram impregnadas por emoções e nelas me encontrei. Sempre afetuosamente. Em seu Poema 20 nos faz delirar:

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe”.
O vento da noite gira no céu e canta.

Por Neruda, e sua grandeza poética, sempre conservei uma profunda e enraizada admiração. Atiçara-me sempre o desejo de ver e conhecer Pablo Neruda e poder dizer da minha extraordinária alegria.

Em 1973, fui atraído pela possibilidade de encontrá-lo. Lendo o Nouvel Observateur me deparei com uma entrevista feita pelo grande Jean Lacouture, autor de memoráveis biografias de André Malraux e Pierre Mendès France.

O habilidoso articulista, entrevistando Neruda, então Embaixador do Chile na França, de chofre lhe perguntou: “A América Latina não lhe falta?”. Neruda lhe disse: “Não, todas as semanas vou à América Latina. Todas as quartas-feiras vou a Librairie Espagnole”.

E ia mesmo. Lá encontrava muitos amigos latino-americanos, exilados ou não, e alguns resistentes da Guerra Civil da Espanha. Tinha uma reverência muito grande por Antonio Soriano, republicano e resistente, exilado no final da Guerra da Espanha. Era o dono da Librairie Espagnole.

Ao ler a entrevista do hebdomadário Nouvel Observateur, havia encontrado uma preciosa senha para ir ver Neruda. Numa quarta-feira qualquer, fui até à Rue de Seine, no Quartier Latin, em Paris.

Era um minúsculo estabelecimento, porta e vitrine que permitia ver tudo internamente. Passei na frente, e num exíguo espaço atrás da vitrine vi alguns idosos senhores palestrando alegremente. Uma cadeira de balanço de palhinha e lá estava Neruda; no colo, sua boina basca.

Demorei a acreditar no que estava vendo. E por segundos me detive vendo os desajeitados livros exibidos no mostruário da vitrine. Fiz meia volta, hesitei, em seguida entrei. Cumprimentei a todos e passei a deslizar a minha vista nas prateleiras de livros. Sem desgrudar da minha intenção, mantive os olhos fixos em Neruda.

Alguns minutos depois, retirei-me da Espagnole em estado de graça. Não tive a coragem de me dirigir a Pablo Neruda. Brutal e incomensurável timidez que se repartia como uma certa falta de coragem. Havia terminado o meu extraordinário encontro com Neruda. O arrependimento me incomodou sempre. Havia me conformado com um lapso de visão que sempre foi compensado pela leitura de seus escritos.

Tempos depois, ainda em 1973, Neruda regressa ao Chile para morrer. Sucumbiu a um câncer de próstata e foi embora 11 dias depois do golpe de Estado, em 23 de Setembro. Lembro-me com nitidez as imagens televisivas do seu funeral no Cementerio General em Santiago.

Impressionou-me o desfile do seu esquife ladeado por corajosos militantes comunistas que cantavam a Internacional. Ao longo do cortejo fúnebre muitas foram as vozes que gritavam “Companheiro Neruda!” e todos respondiam “Presente!”. O cortejo era escoltado por soldados armados. Terminada a cerimônia, todos foram presos e constaram da lista de mortos e desaparecidos sob as atrocidades pela ditadura chilena.

O grande Pablo Neruda não merecia ter tido um final tão dramático vendo o seu amado Chile trucidado por uma brutal e criminosa ditadura.
Os que sempre lhe amaram poderiam naquele 23 de Setembro de 1973 escrever os versos mais tristes.

Hoje mais do que nunca, se pudesse lhe diria: “Perdão, Neruda, não ousei lhe reverenciar com a minha alegria ao ter lhe visto de tão perto”.
Como Pablo Neruda sempre profetizou, “A timidez é uma condição alheia ao coração, uma categoria, uma dimensão que desemboca na solidão”.

Hoje, solitariamente, muito tempo depois me resta apenas rogar a Neruda que me perdoe por não ter lhe expressado a minha mais profunda homenagem por ter dado muita luz aos meus passos.

  • Francisco Barreto é economista e Professor de Direito da UFPB
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