PADRONIZANDO O CAOS, por José Mário Espínola

(Imagem copiada de quilomboinvisivel.com.br)

Muitos analistas tecem teorias sobre o comportamento do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, tentando encontrar alguma lógica, algum padrão. Realmente, chama a atenção a forma como ele vem se conduzindo ao longo desses dois anos.

Desde que assumiu o cargo, ele frequenta o Palácio do Planalto todos os dias. Nem sempre como local de trabalho, pois parece comportar-se mais como um visitante. Usa aquele espaço como alguém que não tem vínculo trabalhista por lá.

Eleito democraticamente, esperávamos que ele assumisse o trabalho para o qual concorreu e venceu. Pensamos: “Deixem o homem trabalhar”. Mas ele sempre se portou qual adolescente deslumbrado com responsabilidade de adulto que inesperadamente lhe caiu no colo. Lembra o personagem de Tom Hanks no filme “Quero Ser Grande,” de 1988.

Já é de domínio público a sua atitude (ou a falta de) ao despachar com subordinados. Não é levado a sério, apenas temido pela capacidade de perseguir e prejudicar aqueles que ele nomeia como desafetos.

Já é notória, também, a sua fuga dos ossos do ofício, dos encargos do cargo. Está sempre transferindo culpas, deveres ou prerrogativa do fazer para outras pessoas ou instituições.

Quanto às suas briguinhas ou polêmicas diárias (semanais, no começo), evidente que lhe trazem benefícios.

Em relação aos seus fanáticos seguidores e àqueles que ainda lhe têm alguma simpatia, ele mantém o clima sempre eletrizante. Impulsiona  comentários e falatórios pelo resto da semana. Parece ser adepto da máxima infame: “Falem bem ou falem mal. Mas falem de mim!”.

Quanto àqueles que nunca caíram no canto de sereia ou descobriram amargamente que não fizeram boa escolha, suas arengas infanto-debiloides trazem dificuldades para se pensar e organizar algum tipo de ação. E, dentro da mídia, Bolsonaro garante um bom espaço, uma boa fatia no noticiário. E a pecha de ser perseguido pela imprensa, coitadinho.

Outro efeito positivo para o ocupante da Presidência da República é manter a oposição sempre desarticulada, acuada, sem capacidade para organizar propostas que possam ser aprovadas pelo Congresso ou adotadas pelo povo.

Mas, dentro do caos de relacionamento de Bolsonaro com o Brasil, já dá para perceber alguma regularidade, algum padrão. Ele solta as suas bombas de gás para se beneficiar. Ao reconhecer que não tem capacidade para administrar nem o seu condomínio residencial na Barra, o Milician Paradise, Bolsonaro promove a bagunça para não ter que tomar decisões.

Ele promove a desordem e pula fora, para observar a poeira descer, e ver como ficou.

Parece surgir alguma luz no fim do túnel político no qual Bolsonaro enfiou o Brasil: os parlamentares mais sensatos estão se unindo para reduzir a sua influência política no Congresso. É uma esperança para o Brasil, pois poderá controlar as suas investidas contra as instituições democráticas.

Temos que ser otimistas, porém com um pé atrás. Pois a eleição das mesas da Câmara Federal e do Senado ainda não aconteceu e há sempre o risco de ser servida sopa de traíra durante o sufrágio.

Vamos ver.

CHEGA MAIS, FALCÃO, por Francisco Barreto

Fernando Falcão (Foto: iscogs.com)

Na contagem regressiva da vida é renitente o meu desejo de me enveredar e fazer reluzir os afetos que se exilaram há décadas. Muitos foram e ainda são meus amigos, amigos que procuro todo tempo em noites insones. Alguns ainda lindos e vivos estão ao meu lado e de leve povoam a minha alma quase esmaecida, mas o tempo e a distância vêm tristemente nos dizimando.

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REALIDADE, por Ana Lia Almeida

banheiro

(Imagem: shutterstock)

Lá em casa pegou todos os três. Não precisou de hospital, não, graças a Deus. Curou com chá de alho e limão, mesmo, porque os remédios, minha filha… Lá no postinho não tinha mais, aí eu nem procurei saber na farmácia. Remédio é pra quem pode, né? A gente fica no chá, mesmo.

Parada eu fiquei só uma semana, depois a patroa me mandou logo botar a máscara e voltar pra faxina. Esse pessoal não sabe, né, pegar numa vassoura, lavar um banheiro, botar um feijão no fogo. Eles não ficam, não, sem gente em casa, até copo d´água querem na mão. 

Com Manoel, foi mais grave. Passou quinze dias em casa, eu cuidando, e quase bateu no hospital. Começou um cansaço, uma chiadeira no peito, uma agonia! Dei chá de hortelã miúdo, foi acalmando, acalmando, e ficou bom. Mas a obra não pára, né?! Deu quinze dias, ele voltou para o trabalho, curado. 

A menina Clarinha não teve nada, mas ficou positiva também. O trabalho foi ela querer ficar em casa, pra cima e pra baixo. “Assintomátchica”, dizia que era, toda importante. Mas não pode não, disseram no postinho, passa a doença do mesmo jeito. Dava conselho, mas era de uma festa para outra. Só parou mais quando a vizinha morreu, quase da idade dela. Morre mesmo, viu! A bichinha passou cinco dias ardendo de febre, quando levaram para o hospital já era tarde. 

Gripezinha nada, eu vi como foi aqui. Até hoje é um cansaço, não sabe, uma boca seca, eu ainda não me recuperei totalmente não. Faltou o repouso devido, a madame inventando isso e aquilo, que ia chegar visita. 

Não entendo esse povo, tem tudo pra ficar quieto, isolado, e é andando em casa dos outros. Sei não, viu… Uma coisa é a gente, que trabalha fora, mesmo, senão não come. Mas esse povo?! Tudo em romeófici, bem chique, como eles enchem a boca pra dizer, e em vez de ficar parado se dana para o meio do mundo, lotando praia, comprando em shopping. Eu mesma, nem que tivesse dinheiro. O tempo não está pra isso não, minha filha. E parece que as coisas vão piorar de novo, não é? 

O ANTI-MESSIAS, por José Mário Espínola

(Imagem copiada do Blog do Moisés Mendes)

A figura do Messias é a expressão maior do pensamento positivo para três religiões: cristã, judaica e muçulmana. Significa a fé em tempos melhores e a esperança de que as suas dificuldades chegarão ao fim. Outras religiões têm figuras equivalentes.

O Messias é muito aguardado por aqueles que creem. Eles acreditam que virá à terra O FILHO de Deus. E que ele chegará para SALVAR.

Embora achem que Jesus Cristo a princípio era o Messias, os cristãos ainda acreditam que este ainda virá para combater e derrotar o Mal, para lutar contra a iniquidade que está sofrendo o seu povo, esperançoso da sua vinda.

Os judeus, por seu lado, consideram que está para acontecer a Era Messiânica, quando diversos acontecimentos prepararão todo um ambiente favorável à chegada daquele ser. Entre estes está a reconstrução do Templo de Salomão.

Acreditam, também, que isso só acontecerá no Fim dos Tempos. Enquanto isso não acontecer, surgirão os falsos messias. É assim que eles consideram Jesus Cristo.

Já os muçulmanos acreditam que o Mahdi (Guia ou Messias) chegará no momento final, com tempo suficiente apenas para corrigir todos os males sofridos por seu povo.

Em comum, essas três religiões têm a certeza de que só será salvo quem crê e pertença à sua fé. Todos os outros serão condenados às chamas do inferno.

***

Até 2012, o Brasil viveu uma década de governos voltados para ações populares, durante a qual aconteceram muitos progressos econômicos e sociais.

O país melhorou muito, como atestam todos os indicadores da época: IDH, Bolsa de Valores, câmbio, salário-mínimo, bolsa-família, geração de empregos, alunos no ensino fundamental e no curso superior, balança comercial, preço da gasolina e do botijão de gás, IPCA, IGPM. Todos os brasileiros percebiam a melhora do país, como atestam os registros do insuspeito jornal Valor Econômico.

Uma das principais consequências é que o Brasil passou a ser a sexta economia do mundo, superando até o Reino Unido. E por isso passou a ser respeitado pelas grandes potências.

Durante esses governos não apenas as camadas populares experimentaram melhoria significativa, retirando uma grande parcela de indivíduos da zona de pobreza, como igualmente foram beneficiados o agronegócio e o empresariado brasileiro.

Seria desonesto omitir que houve uma base importante para esse progresso econômico, construída nos últimos governos de orientação liberal, que tiveram o dom de exterminar a hiperinflação, criar agências reguladoras, gerar estatutos sociais, entre outros benefícios. Porém, nesse período as camadas sociais elevadas foram as realmente beneficiadas.

Os últimos quatro anos de governo popular, da presidente Dilma Rousseff, caracterizaram-se por dificuldades de origens diversas, como o panorama externo desfavorável e a falta de competência administrativa. Agravados pelo contexto econômico mundial adverso, equívocos administrativos provocaram a perda de muito o que havia sido conquistado, tanto na área social como na empresarial.

A elevação da temperatura social causada pelo aumento do número de desempregados agravou o clima político do Brasil. A presidente Dilma demonstrou que não tinha habilidade política, e perdeu a governabilidade quando o Centrão mudou de orientação.

Estabeleceu-se um clima de instabilidade política, quando entraram em cena figuras oportunistas e predadoras, verdadeiros mercenários que haviam aderido durante os governos anteriores. Elas abandonaram a presidente e passaram a compor as hostes dos seus adversários políticos, onde enxergaram maiores vantagens.

Daí para a defenestração da presidente, por motivo fútil e forçado, foi um salto. Tal processo jamais teria acontecido se ela tivesse a habilidade política demonstrada por seu antecessor, Luís Inácio da Silva, e por seu vice-presidente, Michel Temer, que provou que tinha muita habilidade para conspirar.

Temer tinha tanta habilidade que, já exercendo a presidência, foi alvo de denúncias muito mais consistentes e escapou de ser impedido. Pois tinha muito mais jeito para administrar o apoio político dos mercenários do Centrão.

O clima social, cuja apoteose deveria ter sido a destituição da presidente Dilma, não arrefeceu, continuando a ser envenenado pelas chamadas redes sociais, onde profissionais da mentira compondo milícias digitais mantiveram em atividade as suas usinas do ódio.

***

Sob a bandeira de que a agenda de conquistas sociais dos governos populares ameaçava a Família Brasileira, essas hordas passaram a combater tais progressos sociais e açularam a nação contra essa agenda: a lei do aborto; o feminismo, pois acham que a mulher deve ser submissa ao homem; o casamento homoafetivo; a política de ensino de gênero nas escolas públicas; os sistemas de cotas; o estado laico e a falta de obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas.

Essas agressões tiveram eco em parte significativa do povo brasileiro, especialmente os praticantes de religiões evangélicas, que se consideram os maiores defensores da instituição Família.

Paralelo a isso, a elite brasileira, sentindo-se ausente do poder desde 2003, buscava desesperadamente um candidato que a representasse na eleição de 2018 para presidente. Tentaram Geraldo Alkmin, porém este nunca entusiasmou o eleitorado fora de São Paulo, não alcançando densidade suficiente para vencer uma eleição para presidente.

O então candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro, encampou a agenda conservadora religiosa, que veio juntar-se ao armamentismo e o combate ao “comunismo”. Tornou-se assim o candidato preferido do conservadorismo brasileiro. Mas faltavam muitos votos para poder vencer a eleição. Foi quando aconteceram dois fatos que asfaltaram a sua candidatura.

Um deles foi a desunião das esquerdas, bem caracterizada pela decisão de Lula, maior ícone do PT, que estava impedido de se candidatar por estar preso em Curitiba, despido de autocrítica e agindo tal qual um “coronel” do Partido dos Trabalhadores, tomou a decisão de lançar Fernando Haddad.

O outro fato foi o atentado de um doido, que esfaqueou Bolsonaro durante um evento em Juiz de Fora. A consternação da parcela emotiva da nação fez com que ele se tornasse um coitadinho e prestasse mais atenção à sua agenda do atraso.

Foi a gota d’água que faltava para que ele se tornasse o padrão ouro das elites e do conservadorismo brasileiro, pois subitamente passou a apresentar densidade eleitoral capaz de competir com o candidato do PT.

Este estava crescendo muito, especialmente entre o eleitorado nordestino, maior beneficiário das ações sociais dos governos do PT. Atropelou Ciro Gomes, candidato de centro-esquerda que apresentava maiores chances de se eleger e chegou ao segundo turno contra Jair Bolsonaro.

***

Assim, gerado por um louco, que usou uma faca como espermatozoide, e por um coronel das esquerdas, que nunca teve autocrítica; gestado pela elite brasileira; e finalmente parido por um número significativo de brasileiros amedrontados, nasceu o rebento Jair Bolsonaro. Evoé, disseram alguns.

Sem nenhuma vocação para ser uma liderança responsável, com tanta certeza de que não se elegeria, ao ponto de não ter nenhum programa de governo, e sem quaisquer resquícios de preparo para dirigir qualquer coisa, Bolsonaro foi eleito num pleito livre e democrático. No entanto, plebiscitário.

Ele chegou num momento de desconstrução política e de caos da informação que se instalou no país. Desde que tomou posse, nunca disse a que veio, criando um problema atrás de outro. Essa tem sido a sua estratégia para não precisar governar no sentido maior da palavra: estar sempre em estado de beligerância.

Em 2019, esteve prestes a provocar um autogolpe, que só foi abortado, naquele momento, porque faltou a adesão de uma base militar mais extensa do que aquela com que já conta.

Até que a nação brasileira entendeu, estarrecida, qual o significado do seu advento, qual o motivo, os seus desígnios na nossa terra: ele decididamente não é O Salvador que tantos acreditavam ser.

Quem o enviou, não sei. Mas desde os seus primeiros minutos como mandatário da nação ele deixou claro que não veio para salvar nada, senão o próprio bolso e da sua família.

Durante a campanha presidencial de 2018, foi vendido ao povo brasileiro que ele era o Messias tão esperado. E foi isso o que um segmento expressivo de brasileiros comprou, especialmente os evangélicos. Dentre esses, principalmente os monetaristas.

O Brasil conservador, que realmente acreditou em suas promessas, até hoje aguarda que elas sejam cumpridas. Mas não é isso o que o povo brasileiro está percebendo.

Na realidade, estamos vendo é que o que foi comprado, mesmo, foram mitos que ele próprio está se encarregando de desmistificar.

O mito da defesa da família está caindo, revelando que a família que ele defende com unhas e dentes é exatamente a sua. Ou as suas, uma vez que tem logo três. Está fazendo de tudo, sem o menor escrúpulo (o que é isto?!), para livrar os seus filhos da responsabilidade de haverem cometidos ilicitudes, todos eles investigados.

O mito do combate aos privilégios também está indo por água abaixo, quando reserva os melhores cargos, as melhores oportunidades para os filhos e asseclas mais próximos. Por exemplo: a tentativa de nomear Eduardo Bolsonaro embaixador do Brasil nos Estados Unidos.

Sustentou quanto pode os ex-ministros Marcelo Antônio, alvo de investigações policiais no Ministério do Turismo, e Abraham Weintraub, um semianalfabeto que ocupou até outro dia o cargo de ministro DA EDUCAÇÃO. Ambos por compartilharem a mesma ideologia (?) do presidente e seus filhos.

O mito de que a interferência do Estado é nociva à economia pode ser facilmente derrubado pelo simples fato de que tanto o presidente como seus filhos sempre viveram somente do Estado.

O mito do fim da interferência do Estado na economia vem sendo atropelado frequentemente com medidas conservadoras que protegem setores empresariais.

O mito da segurança foi derrubado logo que assumiu, quando desligou os radares das rodovias, ampliando o número de acidentes. E quando aprovou a dilatação escancarada do número de pontos de infração de trânsito. Isso tudo tornou mais leniente o controle do mau motorista.

O descaso com a segurança do cidadão também pode ser aquilatado quando Bolsonaro defende a inimputação dos agentes de segurança, o excludente de ilicitude que também foi defendido pelo ex-juiz Sérgio Moro, quando ministro da Justiça.

O mito do combate à corrupção foi abandonado quando o presidente se viu, a si próprio e a seus filhos, ameaçados de investigação na esfera policial, por envolvimento com negócios ilícitos e com milícias criminosas espalhadas pelo Brasil.

Ele então enxergou que precisava ser blindado no Congresso contra ameaças de impedimento, e procurou cercar-se do que havia de escroques na política brasileira.

E foi exatamente isso o que derrubou outro mito: o do combate à velha política, o metiê do toma-lá-dá-cá. Comprou, então, vários partidos do Centrão do Centrão, garantindo futuro mais seguro.

O mito de que o funcionário público é um parasita do Estado é facilmente derrubado pelo simples fato de que tanto o presidente como seus filhos sempre viveram somente do Estado.

Embora essa figura tenha sido escolhida para combater as iniquidades, o que ele vem dizendo em pequenas doses semanais ao longo dos seus dois anos de mandato cristalizou-se com a instalação e evolução da epidemia que assola o mundo.

Desde que a doença do século chegou ao Brasil que ele vem fazendo de tudo para que o brasileiro padeça: estimulando a desobediência às medidas sanitárias.

Desmantelou as instituições de saúde, politizando, por exemplo, a Anvisa e o Ministério da Saúde, que foi entregue a um leigo explicitamente incompetente para dirigi-lo. Com isso conseguiu atrasar todo o calendário da vacina salvadora.

Todas essas atitudes têm contribuído para agravar o número de vítimas fatais da covid 19, que já ultrapassa as 200 mil. Em atitude tipicamente psicopata nunca se apiedou desses brasileiros mortos.

Todas as suas ações para dificultar o combate à epidemia, a falta de compromisso para evitar tantas mortes e sofrimento do nosso povo, demonstram que ele não tem compromisso com A VIDA, com o bem-estar do povo brasileiro.

Não podemos dizer que ele seja a encarnação do Anticristo, figura tão temida por todos os cristãos. Seria dar muita importância a alguém tão pequeno. Nessa linha, não há como discordar de alguém que disse, recentemente, ter o Brasil “o menor presidente do mundo”.

Ele é, na realidade, o ANTI-MESSIAS.

O DIA EM QUE A UFPB PEDIU PERDÃO, por Francisco Barreto

Neiliane Maia

Há mais de 50 anos reside na minha carcomida memória, alimentada por um sofrimento ancestral, graves fatos gestados e consumados pelo autoritarismo e brutalidade ditatorial.

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ZÉ-LIMEIRIANDO BELCHIOR, por Rubens Nóbrega

Retrato falado de Zé Limeira, por Fran Lima (Imagem copiada da Folha Patoense)

Eu cantei lá no Recife
perto do Pronto Socorro:
ganhei duzentos mil-réis
comprei duzentos cachorro;
ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro

O Professor Romero Antônio, de quem sou amigo e fã, apresentou-me estrofe e autor na antevéspera do réveillon que não houve. Só assim descobri que essa cria pertence ao paraibano Zé Limeira de Tauá e não ao cearense Belchior de Sobral.

Refiro-me particularmente aos dois últimos versos, transformados em estribilho de ‘Sujeito de sorte’, canção de Belchior lançada em 1976. Três anos antes, os mesmos versos já estavam gravados na primeira edição de ‘Zé Limeira, o Poeta do Absurdo’, do menestrel campinense Orlando Tejo.

Não li, vi ou ouvi em canto algum que Belchior tenha dado o crédito devido de autoria a Zé Limeira/Tejo. Talvez o inspirado e talentosíssimo compositor tenha assimilado que ‘ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro’ seria de “domínio popular” ou mais um surrealíssimo mourão cantado por sucessivas gerações de repentistas.

Vamos dar o benefício da dúvida ao venerado Belchior. Não acredito que ele tenha cometido o absurdo da omissão ou ação deliberada adubada na má-fé. Vamos dar crédito à ignorância, possível a qualquer humano. Crédito extensivo a Emicida, rapper paulistano que também zé-limeiriou. O brado contra a morte em 2021 tá no refrão de ‘AmarElo’, de 2019, música-tema do documentário que leva o mesmo título.

Um título, por sua vez, puxado de um poema de Paulo Leminski. Para o qual, da mesma forma, não vi, não li nem ouvi qualquer referência – quanto à autoria – da parte de Emicida ou de seu filme. Ainda assim, não vamos condenar o rapaz, criador de primeira linha, cidadão da melhor qualidade, merecedor de toda a justa admiração causada por quase tudo o que faz.

De qualquer modo, tanto Emicida como Belchior me trouxeram Chico Anísio à lembrança. Guardei nas “paredes da memória” o inesquecível Pantaleão que o gênio do humor despudoradamente copiou de Xandu, personagem maior de ‘Alexandre e outros heróis’, obra primeva do gênio alagoano que atendia pelo nome de Graciliano.

Nunca vi, li ou ouvi – em Chico City, Europa ou Nova Iorque – qualquer menção ao protagonista original das mentiras absurdas e fanfarronices recriadas nos setenta do século passado para divertir telespectadores de todo o Brasil.

A propósito, só pra encerrar…

Lá por 1975 este proto de escriba editava páginas no finado O Norte, de João Pessoa. Em uma semana qualquer, carreguei aquele livro de contos do Major Graça para ler nos ônibus que me levavam do Boa Vista pra Epitácio, daí pro campus da UFPB, onde estudava, e de lá para o então carro-chefe dos Associados, na Pedro II, onde trabalhava.

Na redação do jornal, em momento qualquer, botei o livro pra dividir com uma velha Remington BJ o tampo da mesinha de trabalho. Pela capa, o livro atiçou curiosidade de incensado intelectual que viera deixar artigo para publicação. Ele pegou o exemplar sem pedir licença. Não abriu, apenas leu o título, conferiu a espessura e perguntou ao foca aqui, em voz alta, de zomba: “Oxe, e quem disse que Alexandre foi herói?”.

  • • Imagem que ilustra este artigo é um retrato falado de Zé Limeira, obra da arista plástica Fran Lima 

2020 REINICIALIZADO, por Rubens Nóbrega

Fotos: Covas abertas no cemitério da Vila Formosa - 02/04/2020 - UOL  Notícias

Imagem por mera ilustração (Foto: Nelson Almeida/AFP/UOL)

Minha cronista de cabeceira, Ana Lia Almeida pergunta no zap como 2021 me chegou. Digo que o novo ano me encontrou na paz, com esperança. Mas me deixou na dúvida.

Será que foi mesmo o tal do 2021 que passou aqui em casa e me pegou confinado, com medo de rua? Ou será que foi um 2020 fantasiado, todo trabalhado no branco da paz que sinto vez por outra, com detalhes dourados da esperança que me bate a cada virada de ano?

Um antigo compositor cearense me dizia que o novo sempre vem, mas só eu não vejo que é assim. Não vejo porque amo o passado. Amar o passado? Não, não. De forma alguma, Antônio. É esse 2020 que não quer largar o osso, ir embora, passar a bola, a faixa, o cargo.

Vejo em 2020 um Paraguaçu entrincheirado no seu gabinete de ódio e morte, dizendo que não sai nem a pau para deixar 2021 assumir. Diz que ganhou um novo mandato, convencido de que 12 meses foi pouco tempo para causar um sofrimento do tamanho planejado.

Ele acha que não aglomerou o suficiente, não contagiou o bastante, não causou tanta dor quanto gostaria. Afinal, se esse povo todo vai às praias, aos bares e bailes, sem máscara e distanciamento algum, é porque o mal não se fez por completo e pede mais.

Ah, e se depender de 2020, a vacina por aqui pula 2021 e só aparece em 2022. Que é pra colar na próxima campanha e dar ponto a quem planejou e fez tudo, mas tudo mesmo, pro ano velho ser reeleito. Reeleito e reinicializado. Desde zero hora do dia primeiro.

ESCAPAMOS, por Ana Lia Almeida

Tradição da virada do ano em Madri - badaladas

(Imagem: dicasbarcelona.com.br)

Finalmente escapamos do ano passado. Ele, estrada sinuosa de chão batido na descida de um precipício. Nós, treminhão cargueiro desses que se vê cheio de cana nos caminhos da Zona da Mata. Cai-não-cai,  atravessamos os buracos dos dias, morremos de medo nas curvas do tempo e enfim sobrevivemos ladeira abaixo nesses doze meses sombrios.

Uma breve retrospectiva começaria, como todo ano, no Carnaval, com a vaga notícia de um problema longínquo talvez se aproximando de nós. A Páscoa já nos alcançaria de portas fechadas, trancados em casa. Milhares de mães e filhos faltando no Dia das Mães. São João sem fogueira, sem gente dançando quadrilha, sem sanfona, sem forró.

Chegada a primavera, resolvemos todos sair junto com o sol em busca das flores e o tempo fechou novamente. Humanidade remota, aglomerada em torno da indiferença pela tragédia em curso. Perdas e mais perdas. Assim passamos pelo Natal e chegamos ao Ano-novo, ansiosos pelo fim desse caminho sinuoso que foi 2020.

O ano acabou, é verdade, e aos poucos se aproxima o ponto de onde, vacinados, cada um retomará o seu destino.  Mas ainda falta um bocadinho de chão para terminar a estrada da pandemia. Exaustos, parece que estamos como quem vem chegando de viagem e vai logo tirando o cinto de segurança antes mesmo de entrar na rua de casa. Atenção! Curvas ainda perigosas.