No início da década passada, as entidades médicas brasileiras travaram uma luta desigual no Congresso Nacional, pois até então o exercício da nossa profissão ainda não tinha sido regulamentado por lei.
Diferente das demais profissões de saúde, por descuido das gerações médicas anteriores nunca havia sido apresentado um projeto vitorioso, na Câmara Federal e no Senado, para regulamentar uma profissão tão antiga e prestigiada.
Em sua longa trajetória no Congresso, originalmente recebeu no Senado a denominação PL 268/2002, do senador Benício Sampaio, do PPB do Piauí. Após demorada evolução, foi aprovado por unanimidade no Senado e seguiu para a Câmara do Deputados, onde passou a ser denominado PL 7703/2006.
Ao longo de sete anos, o PL 7703/2006 sofreu todo tipo de agressões por parte das representações das outras 13 profissões de saúde. Tal hostilidade baseava-se em equívocos estimulados por dirigentes suspeitos que comandaram outros profissionais – dentistas, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistente social, biólogo, biomédico, farmacêutico, fonoaudiólogo, profissional de educação física, terapeuta ocupacional e técnico e de radiologia – numa verdadeira guerra santa contra aquilo que foi denominado Ato Médico.
Esses dirigentes das profissões citadas convenceram seus liderados que a aprovação da Lei do Ato Médico os transformaria em meros subordinados aos médicos e esses, por sua vez, limitariam as atividades daqueles profissionais.
Tamanha má vontade para com a classe médica parecia ter raízes históricas, originadas em comportamentos inadequados e arrogantes de médicos do passado.
Hoje, os tempos são outros e as novas e atuais gerações têm relações em que predomina o respeito mútuo aos outros profissionais de saúde, encarando a sua atividade como um trabalho de equipe, onde o bem comum é a saúde plena do paciente sob os seus cuidados.
Esse verdadeiro ranço encontrou eco no Congresso, todavia, mais exatamente na Câmara dos Deputados. Isso fez com que a lei atrasasse, demorando 11 anos até ser aprovada e sancionada.
Antes de ser aprovado, o projeto foi distorcido e politizado, especialmente por representantes do Partido dos Trabalhadores, com destaque para o então deputado paraibano Padre Luiz Couto, influenciado pelos representantes das outras profissões, com destaque para os psicólogos e fisioterapeutas.
Por causa disso, o projeto sofreu cortes substanciais nas prerrogativas da profissão médica. Teria sido pior, não fosse o denodo com que o seu relator, o senador paraibano Cássio Cunha Lima, defendeu a conservação do texto original, que continha definição justa das atividades exclusivas da formação do médico, que de modo algum cerceava atividades das outras profissões.
Aprovada com ressalvas na Câmara Federal, retornou ao Senado, onde foi aprovada por unanimidade. Finalmente, em 10 de julho de 2013, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a lei, mas, mal assessorada por seu ministro, o “médico” Alexandre Padilha, vetou dispositivos essenciais do texto aprovado pelo Senado, amputando assim a Lei do Ato Médico.
Pois bem: a luta heroica e desigual das nossas entidades representativas, com destaque para o Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB), foi renhida e mobilizou todos os médicos do Brasil.
Os cortes que a presidente Dilma, do Partido dos Trabalhadores, realizou na nossa Lei, e a concomitante luta da classe médica brasileira contra a aprovação da regulamentação do Projeto Mais Médicos, que escancarou as nossas fronteiras à invasão de profissionais que se diziam médicos, sem que pudesse ser realizada uma comprovação, visto que foi proibida a revalidação do diploma para esses “médicos”, fizeram com que os nossos colegas aprofundassem o seu repúdio ao PT e seus representantes.
Na eleição para presidente acontecida em 2018, sem ter bom-senso nem autocrítica, o PT lançou um candidato próprio. Isso provocou uma reação dentro da categoria médica, que compreensivelmente não havia esquecido as feridas abertas pelo Mais Médico e a Lei do Ato Médico. A eleição tornou-se, então, plebiscitária para a maioria em peso da nossa categoria. Cresceu a ojeriza ao candidato do PT, tendo os nossos médicos por maioria esmagadora abraçado qualquer um que fosse adversário do candidato do PT.
Quis o destino que um doido esfaqueasse o candidato da extrema-direita, um apagado político sem nenhum projeto expressivo na sua vida. A comoção nacional provocada pelo gesto do tresloucado, muito bem explorada pelas redes sociais que disseminam intrigas e ódio, teve o efeito de uma catapulta em sua candidatura.
Dentro da classe médica essas redes exploraram muito bem a aversão da categoria ao PT e tudo aquilo que o representasse. Essas redes souberam manipular muito bem o sentimento dos médicos brasileiros, fazendo com que contribuíssem fortemente para eleger Jair Bolsonaro presidente da República, numa eleição democrática. Até aí, tudo bem.
Em primeiro de janeiro de 2019, o cidadão tomou posse do cargo de presidente do Brasil. Foi o último ato importante por ele realizado. Pois, desde então, ele deixou de trabalhar e passou a ser um fazedor de piadas, comportando-se como um moleque adolescente no Palácio do Planalto, levando a vida sem seriedade, delegando o trabalho verdadeiro a seus ministros e ao seu vice-presidente, Hamilton Mourão.
A vida era uma festa até que o mundo mudou. E o Brasil foi assolado pela pandemia, que já ceifou a vida de mais de 200 mil brasileiros.
Em nenhum momento o presidente assumiu a liderança de ações que pudessem reduzir o impacto inevitável causado pela doença, na população e nas consequências econômicas.
Antes pelo contrário, ele sempre que pôde estimulou a desobediência às determinações das autoridades de saúde; por puro e ridículo ciúme demitiu o ministro da Saúde, que estava fazendo a coisa certa, terminando por nomear um incompetente em políticas de saúde, tão somente porque ele não lhe faz concorrência; ajudou a disseminar falsos e inócuos tratamentos, sem nenhuma comprovação científica, mobilizando recursos importantes desperdiçados na fabricação de remédios por ele eleitos como tratamento eficaz para a covid 19, e que nenhum estudo sério comprovou a sua eficácia; demorou a tomar (ou não tomou) atitudes que pudessem ajudar a reduzir o número de mortes causadas pela doença. Em resumo: negou a ciência, a lógica e estimulou o caos da ignorância, colaborando para a perda de mais de 200 mil vidas.
Ao longo dessa marcha para o desastre o que fizeram as nossas entidades de saúde? Partiram em defesa da medicina? Tomaram o partido da ciência? Nada disso. Colaboraram com a pregação da ignorância, da politização da ciência. Aplaudiram a alquimia.
Agora que o caos está instalado, cala-se num mutismo gritante, abandonando aqueles pelos quais fez o seu juramento de defesa. Deixou a classe médica e a ciência órfãs de representatividade.
Nem todos engoliram o canto de sereia do negacionismo oficial. Eis que médicos notáveis, cada um em sua respectiva época, com relevantes serviços prestados à nação e aos brasileiros que padecem, lançaram um manifesto lúcido, onde perguntaram às entidades médicas, representadas pelo Conselho Federal de Medicina:
– Onde estão vocês, que apoiaram a anticiência e a oficialização do atraso, dando as costas para a sociedade que deveriam defender? O que defendem agora?
Medicina é pura ciência. Medicina não é partido nem religião. Ao politizarem a medicina e a ciência, as entidades nacionais não representaram a totalidade da classe médica.
Eu nunca mais havia sentido que as minhas instituições de classe me representavam. Agora, sim, após tantos anos, voltei a me sentir novamente representado.
José Mário Espínola
Ex-Presidente e ex-Corregedor do Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB)
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- A fotografia que ilustra o artigo, copiada do site Metrópoles, mostra imagens de médicos mortos pela Covid projetadas em edifícios paulistanos
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Uma resposta para REPRESENTADO, OUTRA VEZ, por José Mário Espínola
O texto deixa transparecer ser verdadeira a tese de que a ojeriza de parte da sociedade ao PT se deve mais aos acertos do que aos erros cometidos pelo partido durante os 13 anos em que ocupou o executivo federal.