LOTAÇÃO, por Ana Lia Almeida

Imagem por mera ilustração (Foto: Domingos Peixoto/Agência O Globo)

Estou escapando, Janete… Na luta. Não gosto de reclamar. Quem muito lamenta, o coração não aguenta, é ou não é? Por exemplo, o bom de trabalhar dia de domingo é que a gente vai sentada. Quer dizer: tudo tem um lado bom e a gente precisa é ver por esse lado. Não ria não, que é verdade. Aí você me pegou, o lado bom dessa pandemia eu não sei qual é.

Menina, quando vamos sair dessa? Também, o povo todo no mundo pulando carnaval, se imprensando feito em ônibus lotado! Por isso fechou tudo novamente. Só não fecham o serviço de empregada, imagine só, eu, Rita, em casa no meu sofá assistindo Sessão da Tarde! Sonhar não custa nada, não é, ainda mais no sacolejo dessa lataria fedorenta, cheia de coronavírus.

Só quero ver se vão continuar nessa presepada de reduzir frota de ônibus, como se tivesse menos gente rodando, como se pobre pudesse ficar em casa. Porque essa história de romeófice não é para o nosso bico, a gente tem mais é que ganhar a vida na rua, infelizmente. Como pode, sem ônibus? Era para ter mais, não menos. Como disse o prefeito: “lugar de ônibus não é em garagem”. Aí está certo! Olhe, eu nem gosto daquele homem, mas com essa ele ganhou alguma moral comigo. Quem sabe agora essa frota aumenta um pouco e dá uma folguinha para nós. Todos os dias rezo para não pegar muito lotado, mas não tem jeito.

Você não vai acreditar: dia desses um sujeito estava do meu lado, aí na janela, onde você está, normal, tomando um vento a viagem inteira. Bonzinho todo. Pois quando esse homem foi descer começou a tossir, pigarrear, botou os olhos baixos, se fez de fraco, cambaleando, só para o pessoal abrir passagem. Estava muito, muito lotado. E ele no cofe-cofe, passando devagarinho. Quando chegou ali pelo meio do busú, aquela aglomeração, não passava nem vento. O rapaz começou a gritar: “Ó o corona, ó o corona”, fingindo espirro e tosse. Não deu outra, todo mundo abriu passagem na mesma hora, num instante ele desceu. É cada uma que o pessoal inventa, viu? Só assim anima o dia-a-dia imprensado da gente. Olha aí, o tal do lado bom, está vendo?

Pois eu vou indo, Janete, a próxima já é a minha parada. Lembranças ao pessoal todo da sua casa, quando as coisas melhorarem a gente organiza uma farofa na praia. Bom te ver. Um beijo de longe, que hoje em dia é assim.

  • Imagem acima por mera ilustração (Foto: Domingos Peixoto/Agência O Globo)

A CURA DENTRO DE NÓS, por Bethania Rolim da Nóbrega

Aglomeração na orla de João Pessoa (imagem copiada de Walter Paparazzo/G1)

O mundo parou quando esse vírus chegou. Pensei que tudo isso pudesse dar uma chacoalhada dentro da gente, de verdade mesmo, mudar velhos conceitos que insistem em nos colocar em fôrmas, mudar o modo como vivemos a vida, o nosso olhar diante da natureza e a maneira como nos tratamos.

Pensei que, apesar da dor, poderíamos ver o lado bom disso tudo, só pensei…

Sei que, mesmo antes dessa pandemia entrar no mundo, a humanidade já estava doente e a cura tá dentro da gente.

É isso! Precisamos urgentemente de uma vacina de humanidade para ser aplicada a todos sem exceção. Será que rola?

Eu estava pensando aqui com meus botões e me lembrei do comecinho da pandemia. Tive fé que podia ser diferente, apesar da dor, houve alguns indícios de mudança, sentia união entre as pessoas em torno de um só propósito de conter esse vírus a todo custo, tínhamos até canções nas nossas varandas que falavam de amor, proteção e fé, mas com o passar do tempo as pessoas foram se entregando sem dar o verdadeiro valor à vida.

E as vacinas? Era pra ter vacina aos montes, mas infelizmente não temos. O que temos é muita gente indo embora todo dia, e o mais inadmissível é ver isso enquanto já existem várias vacinas no mundo, vidas que poderiam ser poupadas, um verdadeiro show de horrores. E as pessoas parecem que estão anestesiadas, enquanto uns vivem igual a um zumbi atrás do trio elétrico fazendo festa, outros morrem.

Ao invés de festas, era pra gente estar vivendo luto, se não por nossas famílias, mas pelos outros que já representam mais de 250 mil pessoas.

Não temos vacina, infelizmente. Está vindo a conta-gotas. O que temos pra hoje é usar máscara, álcool gel, distanciamento. É o mínimo que podemos fazer, mas nem isso a maioria das pessoas faz.

Pode ser que você ao ler esse texto ache que estou a dizer o óbvio, mas não é, porque ainda tem muita gente negligenciando essas ações preventivas de saúde.

Já vi idosa dizendo que a máscara sufoca, mas melhor a máscara no rosto do que um tubo pela boca.

Já vi pessoas dizendo que não usam a máscara porque no discurso delas “Deus protege”, e isso é tentar a Deus, sabia? Pra quem não sabe o que é tentar a Deus : é quando existe um perigo, sabemos dele, podemos desviar, mas passamos em frente ao perigo. Isso é tentar a Deus.

Deus protege, mas temos que fazer a nossa parte. Ele não faz o que podemos fazer. Já vi idoso tendo que fazer caminhadas junto com jovens sem máscara nas praças e calçadinhas, correndo perigo de ser contaminado. Será que o poder público não pode mandar guardas municipais para fiscalizar essas pessoas?

Se todos estivessem usando máscara, tudo poderia ser diferente. Creio que poderíamos trabalhar, comprar e vender, viver minimamente esse tempo difícil, tendo consciência da responsabilidade social com o outro que está do nosso lado.

Talvez o governo não precisasse se utilizar das medidas de restrição, mas, como as pessoas aglomeram, essa ação é necessária.

Desculpa o desabafo, sei que tem pessoas que não pensam igual a mim, mas mesmo você que pensa diferente pode refletir um pouco e ver que contra fatos não há argumentos.

Infelizmente, esse vírus só está refletindo a doença do egoísmo que já existia dentro de nós muito antes de tudo isso começar.

Bethania Rolim da Nóbrega é graduada em Publicidade e Direito
@bethaniarolimdanobrega

Incrível, mas na Paraíba a Justiça é acionada para dar prioridade ao prioritário

Imagem meramente ilustrativa copiada do Diário do Nordeste

Incrível, mas na Paraíba a Justiça teve que ser acionada par dar prioridade a quem realmente é prioritário. Assim, decisão da juíza federal Wanessa dos Santos Lima, proferida ontem (15) em João Pessoa, deve salvar milhares de vidas ameaçadas pela desídia ou incompetência de autoridades federais, estaduais e municipais.

Doutora Wanessa atendeu a um pedido feito em conjunto pelo Ministério Público Federal (MPF), do Trabalho (MPT) e da Paraíba (MPPB). Ela decidiu que de agora em diante o que vier ou tiver de vacina contra a Covid terá que ser aplicada, primeiro, nos idosos. A priorização beneficia todos com 60 anos ou mais, ou seja, quem tem menos chance de sobreviver ao coronavírus.

Enquanto esse grupo não for totalmente vacinado, com exceção de quem está na linha de frente da guerra contra a Covid, qualquer outro não poderá receber as doses disponíveis. Para garantir que sua ordem será obedecida, a juíza também mandou suspender a vacinação de profissionais de saúde que não estão no front da pandemia.

Fez bem. Fez bem porque em alguns municípios, João Pessoa entre eles, a vacina pouca estava sendo dada a uns poucos, idosos ou não. Ah, e outra medida de bom senso adotada pela Doutora Wanessa assegura a segunda dose àqueles que furaram a fila ou foram contemplados no privilégio concedido a pessoas já privilegiadas.

Fez bem, Doutora. Fez bem porque são vidas humanas, afinal, merecedoras de completar o ciclo de imunização iniciado com a primeira dose. Sem a segunda dose, o desperdício da vacina será consumado e o risco de contágio renovado para os beneficiados pelo acesso aos seus iguais que se julgam mais iguais do que todos os outros.

  • Com informações da Sala de Imprensa do MPF-PB

MILTON DE TODOS OS SANTOS (2), por Francisco Barreto

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Milton Santos (Foto: Observatório do Terceiro Setor)

Em tudo o que fez ou ajudou fazer, Milton Almeida dos Santos foi grande, extraordinário, insuperável. Como geógrafo, escritor, jornalista, advogado ou professor universitário, o conjunto da obra desse baiano monumental o coloca com justiça entre os mais respeitados intelectuais brasileiros do século XX.

Na segunda parte deste escrito sobre quem tenho e guardo como referência, guia ou farol, destaco sua valiosíssima contribuição a uma nova epistemologia da geografia, via teses inovadoras e provocativas, além de criticas que tangenciavam os cristalizados conceitos de espaço.

O nosso Milton de Todos os Santos desmontou velhos conceitos de centro e periferia quando privilegiou a visão das novas tecnologias. Espaço e tempo não tinham limites físicos. Renovou o conceito do localismo e do território. Com precisão, criticou o conceito dominante de globalização oriundo das teses neoliberais, em que os espaços físicos e humanos doravante eram apenas o locus onde tudo se produzia e tudo se consumia.

Também de modo profundo, abordou o imperativo da concepção da ideologia consumista que tenderia a homogeneizar pela cultura mediática o consumo das massas. Acenou para a tese de um possível final das culturas locais, refutando com veemência os energúmenos arautos do fim da história.

As velhas noções de centro e periferia já não se aplicavam, pois o centro poderia, dizia ele, estar situado a milhares de quilômetros de distância e a periferia abranger o planeta inteiro. Daí, a correlação dominante entre espaço e globalização, que sempre foi perseguida pelos detentores do poder político e econômico, mas só se tornou possível com o progresso tecnológico submisso ao capital monopolista.

Para contrapor-se à realidade de um mundo movido por forças poderosas e cegas, Santos admitia que a força do lugar era a única que, por sua dimensão humana, a cultura coadjuvando, anularia os efeitos perversos da globalização.

Milton Santos debruçou-se sobre uma insuperável contradição: o global versus o local. Na medida em que os sistemas globalizados (circuitos superiores tecnológicos do capital induzindo padrões renovados de consumo) poderiam esmagar os sistemas locais (circuitos inferiores de produção e de consumo, incluindo a cultura) essencialmente enraizado nas necessidades do lugar, “a vontade e o mando longínquo”, dizia, criam espaços e territórios “partagés” ou divididos e derivados entre consumos induzidos longe das necessidades estruturais básicas.

A enorme riqueza a partir dos novos cânones intuídos por Milton Santos fez com que ele profetizasse com precisão a emergência e produção de novos totalitarismos, destruidores e recriadores de territórios em que as populações deixam de ser sujeitos e passam a ser meros consumidores homogeneizados pela voraz globalidade.

Na minha embrionária e limitada percepção da inteligência e riqueza teórica de Milton Santos, há quase meio século, não me permitira ter a precisão de sua colossal importância muito tempo depois. A convivência acadêmica com o sábio Milton Santos, enquanto modesto conviva, usufruía da alegria familiar que me foi concedida em sua baiana residência. Fui igualmente brindado pela delicadeza de sua Marie Hèléne.

Milton Almeida dos Santos foi Doutor Honoris Causa em cerca de 20 universidades estrangeiras, tem 52 livros publicados, centenas de artigos, recebeu dezenas de prêmios, medalhas e distinções nacionais e internacionais. Foi ainda reverenciado como Prêmio Vautrin Lud, em 1994, equivalente ao Prêmio Nobel de Geografia, conferido por unanimidade por universidades de 50 países.

Hoje, ele é reconhecido e homenageado por um seleto grupo de acadêmicos e intelectuais brasileiros que o reverenciam silenciosamente. O reconhecem como um dos mais importantes e renomados nomes da inteligência de todos os tempos. O alcance da sua sabedoria, do seu conhecimento e ciência, o largo e vitorioso sorriso deste monumento da negritude brasileira são reservados a poucos. Tenho este privilégio e a honra de ter vivido e conhecido Milton de Todos os Santos.

  • Francisco Barreto é escritor, economista e Professor de Direito da UFPB

A GUERRA RELÂMPAGO, por José Mário Espínola

Foto meramente ilustrativa. Crédito: Delirou Júnior/O Dia

Até a Primeira Grande Guerra, de 1914 a 1918, as batalhas eram mais estáticas. As tropas permaneciam a maior parte do tempo imobilizadas dentro de trincheiras cavadas no solo.

Apenas de tempos em tempos, as tropas arriscavam sair para o corpo-a-corpo. Nada disso, contudo, foi suficiente para evitar uma carnificina.

Na Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, a Alemanha trouxe novidades que mudaram totalmente a até então forma de se guerrear. A grande novidade foi, realmente, a que eles chamaram de blitz krieg ou guerra relâmpago.

Essa forma de combate se caracterizava pelo dinamismo, pela velocidade com que a Wermacht, exército alemão, atacava as tropas inimigas.

Ao mesmo tempo, simultaneamente, as tropas disparavam em carros de combate e tanques de guerra apoiados por aviões.

Usando a velocidade, a estratégia era ocupar posições cada vez mais profundas em território inimigo. As tropas se deslocavam por onde encontrassem mais facilidade, menos resistência. Igual ao deslocamento de um raio na atmosfera, quando a eletricidade se espalha pelas zonas menos resistentes da atmosfera. Daí a denominação blitz krieg, guerra relâmpago.

Em pouco tempo, os alemães tomavam amplas áreas de território inimigo. E, para alcançar sucesso, modernizaram a logística. Munição, combustível e alimentos seguiam logo atrás dos veículos de combate.

Depois disso as guerras nunca mais seriam as mesmas.

***

Os responsáveis por nossa forma particular de “guerrear” contra a covid-19, aqui na Paraíba, bem  poderiam aprender com a história como vacinar mais rápido a nossa população.

Atualmente, age como se estivesse na Primeira Guerra Mundial. Limitando a vacinação da população a “trincheiras” isoladas, três em João Pessoa, com filas quilométricas em locais inaccessíveis à maioria da população carente. Desta forma, conseguiu elitizar a vacinação, pois dificulta o acesso a quem more longe desses três locais, seja pela distância ou pela exiguidade de opções de postos.

Por outro lado, a nossa “guerra relâmpago” seria vacinar onde fosse mais fácil, e ao mesmo tempo.

Enxergo que essa facilidade é possível com a criação e multiplicação de postos de vacinação, ampliando o potencial de vacinar simultaneamente um número bem maior de pessoas, num período bem menor do que as atuais três ridículas filas permitem.

Se cada uma dessas 3 filas vacina 3 pessoas a cada 10 minutos, serão vacinadas 54 pacientes por hora. Já 20 filas vacinando simultaneamente 20 pessoas nos mesmos 10 minutos, em uma hora terão sido vacinadas 120 pessoas! Dá para imaginar quantos estariam vacinados, ao final de uma jornada de trabalho…

A sociedade organizada poderá contribuir muito para facilitar a vacinação. Conselhos de medicina, farmácia, enfermagem, fisioterapia, odontologia, psicologia, veterinária, corretores, engenheiros, arquitetos, corretores de imóveis, contadores. associações de professores, Ministério Público, juízes, Amatra, Polícia Federal, Correios e Telégrafo, Academia Paraibana de Letras, Instituto Histórico e Geográfico, igrejas de todos os credos…

Puxa vida! Em muito pouco tempo vacinaríamos todos os nossos idosos, profissionais de saúde, índios, maqueiros, massagistas, motoristas de ambulância, magistrados, promotores… Tudo isso conseguido simplesmente com a identificação das formas mais fáceis de atingir o público-alvo.

Para tanto, teremos de deixar de lado os nossos preconceitos. E todas as entidades civis reivindicarem as suas respectivas vacinações e assim poderem dar as respectivas contribuições para o sucesso de todos.

Muitas outras unidades do país já estão fazendo isso. E alcançando cobertura de vacinação bem mais eficiente do que a Paraíba.

Se, além de toda essa mobilização, o Ministério da Saúde conseguir melhorar a sua logística, tão deficiente até agora, o Brasil poderá alcançar ainda este ano o grau de imunização tão desejado para permitir diminuir o isolamento social e obtermos o retorno ao crescimento econômico já no próximo ano.

MILTON DE TODOS OS SANTOS (1), por Francisco Barreto

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Milton Santos (imagem copiada do blog da Academia de Cultura de Colônia Leopoldina, Alagoas)

Milton Almeida dos Santos continua sendo um ilustre desconhecido. Tinha tudo para ser apenas um negro a mais em cuja gênese estava o brutal escravismo que devastou o Brasil Colônia. Tinha nas suas origens uma sofrida geografia do além mar. Trazia nas suas veias uma enorme capacidade de superação. Foi muito além do que lhe era reservado como descendente de escravo. A rigor soube como poucos afro-brasileiros trilhar caminhos dantes apenas reservados à elite branca.

Fortemente influenciado pelos avós e os pais, todos integrantes do magistério primário, percebeu que indo muito além da régua e do compasso iria se defrontar com promissores desafios nas salas de aulas. Adolescente, passou a ensinar álgebra, matemática, geografia e a língua francesa no Instituto Baiano de Ensino. Aos dezoito anos ingressou na vetusta Faculdade de Direito da Bahia. Como jornalista conviveu com Jorge Amado em Ilhéus tendo sido editor do Jornal da Tarde. Escreveu ainda jovem o compendio Zona do Cacau (Coleção Brasiliana).

Na esquerda baiana foi um ativo militante. Professor de Geografia da Universidade Católica de Salvador, em 1956, a convite do Prof. Jean TRICART fez o seu Doutorado na conceituada Universidade de Estrasbourg apresentando tese sobre o Centro da Cidade de Salvador. Em 1960, criou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, e tornou-se Livre Docente em Geografia Humana na UFBa.

Em 1964, foi preso; tempo depois, recebeu convites de várias universidades francesas, e sob a interferência da diplomacia francesa partiu para o exilio indo ensinar na prestigiosa Universidade de Toulouse na França. Em 1967, ingressou na Universidade de Bordeaux, então o núcleo acadêmico mais importante da França no campo da Geografia Humana e Urbana. Em seguida, migrou em 1968 para o IEDES – Universidade Paris – I/ Pantheon-Sorbonne.

Nesta última paragem foi quando conheci Milton Santos apresentado que fui pelo grande Prof. Pierre MONBEIG, Diretor do Institut de l´Amérique Latine. Logo em seguida, ele me convidou para ir fazer o 3º Ciclo/Doutorado no IEDES. Foi fundamental para a minha trajetória acadêmica. Fui seu aluno na disciplina Instrumentos da Análise Espacial e Desenvolvimento Regional, e em seguida sob a sua orientação teórica e metodológica, em 1970/72 apresentei o meu projeto de pesquisa intitulado ‘Uma Contribuição à Análise Histórico-Econômica da Formação das Desigualdades Regionais no Brasil’. Fiquei órfão, pois em 1971/72 ele foi embora para o MIT para ser parceiro do famoso Noam Chomsky.

Milton Santos literalmente me adotou como seu pupilo. Mantivemos uma extremosa relação de amizade. Me convidava com alguma frequência a ir até sua residência na Av. René Coty, e tinha sempre a agradável hospitalidade de Marie Hélène, a gentil Mme Santos. A nossa nordestinidade etno-cultural, o fato de também de ser muito jovem e o viver na França forçado pela Ditadura me valeram de Milton Santos a sua indulgência afetiva.

O Mestre Milton tinha uma invejável capacidade criativa, o que me impunha enormes sacrifícios em acompanhar o seu desassombrado ritmo de ideias para as quais não estava preparado teoricamente para absorve-las. Evitava ficar perguntando para não ter que sucumbir à uma avalanche de ideias complementares. Ele desprezava a conduta cartesiana de encadeamentos desprovidos de hipóteses, premissas, teses etc. Simplesmente, ia ao cerne de suas inquietações teóricas e conceituais sem recorrer a demonstrações praticas sem nenhum formalismo ou recursos quantitativos. Diante de uma extraordinária visão teórica e crítica, respeitava Vidal de la Blache, André Cholley, Pierre Georges e o pernambucano Josué de Castro.

Enquanto ele falava, quieto ficava no meu canto, profundamente admirado com a sua desenvoltura e conhecimentos. O meu projeto de pesquisa dormitava timidamente ao meu lado, não me expunha de nenhum modo. Despejava a sua exímia verbalidade que tinha similitude com a agilidade dos capoeiristas do Largo do Pelourinho. Inatacável. Anotava apressadamente as sugestões que podia colher. Para minha sorte, de vez em quando a Mme Santos interrompia com taças de chá, o professor Milton era interditado de tomar café.

Dessas conversas percebia que era inesgotável o seu baú de utopias. Falava gesticulando fortemente e entrecortava a conversa comandada por ele com largas e generosas risadas. A nossa condição de nordestinos me propiciava breves interlocuções e ele adorava falar das suas memórias em Brotas, na Chapada Diamantina no Oeste Baiano. Dizia que havia descortinado o seu interesse pela Geografia quando acompanhara o Prof. Francisco, seu pai, nas viagens pelo belo território da Chapada, e que segundo ele não havia nada igual como síntese das paisagens do Brasil. Encostas íngremes, cânions, grutas, quedas d´aguas imensas, chapadões, com uma cobertura vegetal com todas as variações brasileiras: cerrados, caatingas, campos de vegetação rala, contrastando com enclaves de matas atlânticas.

Conviver algum tempo com Milton Santos era algo formidável, ele tinha sempre uma enorme capacidade de sedução que se aguçava com o brilho dos olhos que sempre eram sucedidos de sonoras e contagiantes risadas. Estava sempre de bem com a vida. Aos colegas franceses, em seminários primava pela ironia e a provocação. Não respeitava manuais, tinha uma incomensurável criatividade como aliada.

  • Francisco Barreto é escritor, economista e Professor de Direito da UFPB

UMA QUESTÃO DE BOM SENSO, por José Mário Espínola

Imagem meramente ilustrativa copiada do Diário do Nordeste

O presidente do Conselho Regional de Medicina da Paraíba, Dr. Roberto Morais, zeloso pela sua categoria, solicitou à Secretaria Municipal de Saúde doses de vacinas e autorização suficientes para imunizar os seus membros maiores de 60 anos contra a covid 19, doença que está assolando a face da terra, especialmente no Brasil, que partiu muito atrasado na luta contra a pandemia, por falha justamente de logística, entre outras causas.

A SMS, na pessoa do secretário Fábio Rocha, deferiu o pedido, e então o CRM agendou para vacinar o pretendido grupo de risco na sua espaçosa sede. Nada mais justo.

Ocorre que o Ministério Público, sempre zeloso no cumprimento de suas atribuições, porém talvez mal-aconselhado, no caso em tela vislumbrou o ato como um desrespeito a outras categorias, e notificou a SMS por possível favorecimento indevido. Como havia de ser, a SMS suspendeu a operação que seria realizada no CRM.

Analisando à distância, qual teria sido o “possível desrespeito?” Não é o que observo. Acho que a iniciativa do CRM e da SMS é digna de aplauso, pois se fosse concretizada e ampliada permitiria que um número significativo de pessoas simultaneamente, ampliando com rapidez a cobertura vacinal.

Pois justamente era o que devia vir sendo realizado, com vantagens para a SMS: ampliar o número de centros de vacinação, incluindo órgãos de classe para vacinarem cada um os seus membros, respeitando como principal critério o conceito de prioridades: Conselho Regional de Enfermagem, de Psicologia, de Fisioterapia, de Odontologia, OAB, Associação do Ministério Público, AMATRA, CREA e, por que não?, o Conselho Regional de Medicina. Será muito mais organizado.

Todas essas entidades são órgãos responsáveis, que podem (e devem) ser observados pelos órgãos de fiscalização. E devem ser responsabilizados, quando for necessário.

Todos agindo simultaneamente, vacinando de acordo com as faixas etárias e profissões de risco, dentro dos critérios adotados pelas autoridades de saúde.

Se a SMS adotasse estes critérios, por exemplo, ao invés de 03 (três) longas filas ao longo de vários dias, teríamos até dezenas de pequenas filas vacinando ao mesmo tempo, cumprindo o calendário de vacinação em muito poucos dias.

Eu acho que faltou bom senso, e sobrou rancor, no nosso caso. Mas tenho a certeza de que o Ministério Público ainda irá rever a sua decisão, e vamos alcançar a necessária cobertura vacinal em bem menos tempo.

Tudo se resume, portanto, numa questão de bom senso.

José Mário Espínola
Cardiologista

NUNCA GANHEI NO MILHAR, por Aderson Machado

Comecei a me familiarizar com o jogo do bicho ainda nos meus bons tempos de menino. É que o meu pai, por algum tempo, colocou uma banca de bicho em nossa casa, onde também ele tinha uma bodega.

O resultado do jogo vinha de Recife, captada através da Rádio Clube, todos os dias da semana, pontualmente às 16h. Ainda me lembro que o resultado do jogo, à época, não vinha de forma direta, porque através de um código, formado por um conjunto de dez letras do nosso alfabeto, cada letra correspondendo a um número de zero a nove. Assim, se o código era PERNAMBUCO, a letra A correspondia ao número 5. E por aí vai.

O fato é que todos os que apostavam no jogo do bicho eram todos ouvidos, às 16h, ao pé do RCA VÍCTOR do meu pai, à espera de acertar no tão sonhado bicho. Literalmente, porque muitas pessoas jogavam em determinados bichos em função mesmo de terem sonhado com eles. Às vezes dava certo, às vezes não. Mas havia muita gente que não sabia interpretar os seus sonhos. Foi o caso de um vizinho de meu pai, um contumaz jogador, que falou para o meu genitor que sonhara com um gato caindo de cima de um telhado. Nesse dia não teve dúvidas: jogou tudo o que tinha nesse animal. Quando veio o resultado, com ele veio a decepção: dera burro no jogo! Aí o meu pai interveio: – Meu amigo, um gato que cai de cima de um telhado só pode ser muito burro! Era para você ter jogado no burro!…

Há várias modalidades de se jogar no bicho. O mais tradicional é jogar nos bichos em si, começando com avestruz e terminando com vaca, num total de 25 bichos. Depois pode-se jogar na dezena, centena e milhar. Este é o que paga melhor, dada a probabilidade ser menor de acertar, haja vista que há dez mil milhares no jogo do bicho.

A minha mãe era uma apostadora diária do jogo do bicho. Só que ela gostava muito de jogar no grupo, isto é, no bicho em si. E tinha predileção por determinados bichos. Até onde eu me lembro, ela fazia muita fé no cavalo, na cobra, no jacaré e na vaca. Se desse um desses bichos, com certeza ela era uma das ganhadoras.

Na banca de meu pai havia vários bicheiros, que saíam à procura de apostadores ao longo das propriedades da redondeza. Em casa, meu pai se encarregava de “vender” os bichos. Quando faltava uma hora para o bicho “correr”, isto é, para o resultado ser divulgado, havia o ritual da apuração das cadernetas. Ao fim dessa apuração, saber-se-ia o quanto a banca havia arrecadado em dinheiro, que seria para pagar aos possíveis ganhadores, e o que sobrasse, evidentemente, seria o lucro diário da banca.

Reiterando, devo dizer que no jogo do bicho o milhar é o prêmio mais valioso, porque o mais difícil de ganhar. A propósito, eu nunca acertei no milhar. E não foi por não jogar. Ao longo de minha vida – já estou na terceira idade -, já fiz milhares de tentativas. Em vão. E palpites não me faltaram: placas de carro, número de casas, ano de nascimento de filhos… tudo, e nada! Dir-se-ia que o melhor mesmo é sonhar com o milhar. Mas o grande problema, para mim, é que quando tenho a oportunidade de sonhar, no outro dia não consigo me lembrar do número! A meu ver, a forma mais infalível de acertar no milhar é um bom palpite, ou, talvez, um insight. Foi o que aconteceu ao meu mano Moacir Machado. O fato aconteceu quando ele ainda era estudante e morava numa pensão. Pois bem, certa feita ele presenciara um menino puxando uma caixa de papelão, e nela havia um milhar escrito. Incontinenti, o mano procurou a banca mais próxima para jogar esse milhar. Não deu outra! Acertara em cheio no milhar. Com o prêmio, ele pagou a mensalidade da pensão, comprou roupa, calçado, e ainda lhe restou dinheiro para tomar umas cervejinhas…

Por fim, como última tentativa de acertar no milhar, fui aconselhado a escolher um determinado número e ficar jogando ele todos os dias, porquanto um dia ele iria sair. Aí escolhi a placa de um dos veículos da repartição onde trabalho. Passou uma semana, um mês, e nada. No dia em que me esqueci de jogar… o milhar saiu!

Pelo posto e exposto, cheguei à conclusão de que não nasci para ganhar no milhar…

Fazer o quê?!