Eu até aceito o termo. Afinal de contas, é coisa incorporada ao longo dos séculos à memória da humanidade. Significa um mimo, um agrado capaz de prejudicar quem o receba.
Mas, perdoem-me os crédulos, nunca fui muito de confiar naquele Homero. Ô camaradinha para inventar histórias. Já fazia isso antes, muito antes, quase mil e duzentos anos antes de nascer aquele que Pôncio Pilatos mandaria para a cruz.
O crucificado, coitadinho, veio ao mundo em defesa dos pobres de Jó. E a plebe ignara, besta quadrada, imbecil à quintessência, a insultar o homem que poderia salvá-la: “Maltrapilho, comunista (alusão à doutrina da comunhão e não ao velho Karl Marx), filho de manjedoura… Vai para a Galileia”. E Barrabás se safou.
Mas essa é outra história. O tema aqui tratado é o do cavalo oco, o presente de grego aos troianos. Homero até que desperta o interesse pela conversa ao revelar como Odisseu imaginou o recheio daquela coisa gigantesca: um pequeno grupo de guerreiros encarregados de sair do bicho, noite alta, a fim de abrir o portão de Tróia para a invasão inimiga, pondo fim a uma guerra que já durava dez anos.
Admito a genialidade desse golpe. Mas, pensando bem, para que diabo serviria um cavalão de madeira ofertado à turma de Páris, o raptor de Helena, mulher de Menelau, este último amigo de Agamenon, Odisseu e de Aquiles? Bons amigos, sem dúvida, porquanto dispostos a dez anos de briga, com perda de soldados e dinheiro, para o resgate da mulher do outro.
Também aceito uma aliança a esse ponto, ao considerar a possibilidade do rateio dos despojos troianos entre os aliados. Faz sentido.
O que não faz é a proteção de uma deusa ao raptor. Afrodite não chegaria a tanto. Nem acho que possa ter existido outra deusa descuidada a ponto de esquecer de banhar os calcanhares do filho em águas mágicas, como assim teria feito Tétis, mãe do pobre Aquiles, um herói com pés de barro e, por conta disso, morto com uma flechada, exatamente, onde poderia ser ferido.
Um doido, aquele Homero. Mas pode-se dar-lhe algum desconto. Teria assim escrito por ouvir falar, uns 400 anos depois do ocorrido. Afinal, quem conta um conto aumenta um ponto, como diria a minha avó Amélia e as avós de muitos de vocês. Pela mesma razão, é preciso desculpar Virgílio, outro poeta a tratar do tal cavalo, séculos depois do primeiro.
Renovo o apelo ao perdão dos crédulos, mas eu prefiro mesmo é apostar na veracidade de um cavalo oco e sua carga de R$ 16,5 milhões atualmente despachado da Arábia Saudita. Esta, sim, é história bem contada, pois documentada com fotos, áudios e vídeos, ferramentas das quais, evidentemente, não dispunham os povos antigos.
Sabemos do nosso Páris. Mas quem seria a nossa Helena? Os adversários do moço asseguram que tem nome de homem: chama-se Landulpho e habita a Bahia.
Neste caso, o presente, ao invés de pôr fim a uma guerra, celebraria a venda de uma refinaria pela metade do preço. Será? Seja como for, é a história que acompanharemos em breves e emocionantes capítulos.
PRESENTE DE GREGO, por Frutuoso Chaves
HUMILHADOS E OFENDIDOS, por Francisco Barreto
Não posso deixar de externar a minha felicidade se, em vez de europeus, berberes e tuaregues ganharem a Copa do Catar
Nos meus tempos de Paris, na condição de desenraizado pude conviver com situações tormentosas presididas pela xenofobia, racismo e chauvinismo cruel. Senti na pele o que é ser considerado um “defroqué”, alguém que se aproxima da condição de bastardo. Assim erámos nós.
Logo na França, uma nação que em tempos memoráveis deu à luz os mais formidáveis conceitos a serem cultivados à dignidade humana: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Tudo à conta dos ecos das vozes da liberdade e da grandeza humana, tudo sob a regência da revolucionária Marseillaise.
Com o meu semblante de “métèque”, como disse Georges Moustaki, o cancioneiro greco-egípcio com ‘cara de ladrão ou de vagabundo’ era sempre um estrangeiro que não inspirava confiança. Fui muitas vezes confundido com norte-africanos: marroquinos, argelinos ou tunisinos. Em muitas ocasiões, eu e vários amigos brasileiros, sobremodo nós, que tínhamos cabelos longos e portávamos boinas bascas tal como o Che Guevara. Pesavam a nossa tez e o biotipo.
Éramos importunados por policiais à luz do dia com admoestações. “Papiers!”. Tínhamos que mostrar os documentos. Uma das vezes, em pleno Boulevard Saint-Michel, eu e Fernando Falcão fomos interpelados e, ao verem que não erámos árabes, e sim brasileiros, fomos insultados: “Paris deviens une poubelle”. Literalmente, disseram-nos: “Paris virou uma lata de lixo”.
Eram, e ainda devem ser, mal tratados os negros e os norte-africanos vindos de colônias francesas. Essa população migrante para França, Inglaterra e Bélgica sempre foi acolhida como trabalhadores clandestinos super explorados. Esses migrantes, com medo de serem extraditados, trabalhavam e viviam silenciosos nas periferias com favelamentos infectos que chamam de “bidonvilles”, bairros de latas sob casebres onde pobres famintos resistiam às nevascas e ao frio.
Contavam-se centenas de milhares sem qualquer elementar direito, desmunidos de documentos, vivendo com trabalhos escorchantes e sub-remunerados. Tinham medo de pedir qualquer apoio social. Ao longo do tempo, ampliaram seus nichos familiares que passavam a proliferar os “cidadãos franceses” árabes e negros.
Dessas populações nascidas em solo francês, em sua grande maioria mulçumanas, surgiram nos últimos tempos os jovens que começaram a engrossar os pelotões de extremistas do Islã, prontos para praticar atos terroristas dentro e fora da França, que tornou-se um alvo prioritário. Levou a França a um processo repressivo extraordinário a todos os tipos de migrantes, inclusive a nós, latinos.
No momento atual, a população marroquina soma quase dois milhões em solo francês. Sem contar os argelinos, os tunisinos e os negros da África Equatorial dita francesa. Essas pessoas guardam uma endêmica aversão e ódio aos franceses. Antagonismos que vêm desde a dominação colonial há mais de cem anos. Os norte-africanos, pais e filhos que se tornaram cidadãos franceses por nascimento, para as classes e elites dominantes são um câncer irreversível.
Morei com um amigo brasileiro, José Machado, num bairro decadente habitado por trabalhadores norte-africanos na rua Moulin de la Pointe, próxima a Place d´Italie no 15ème. Uma rua totalmente árabe, onde não havia uma única mulher. O prédio em que morávamos era mórbido e depressivo. Dava medo de dia e à noite, era assombrador. Não circulávamos ao anoitecer. Menos pela população árabe e mais pelas blitze policiais que recolhiam transeuntes, marginais ou não.
Eram acolhedores os marroquinos. Alegres e simpáticos, sobretudo quando fomos reconhecidos como brasileiros. Passamos a frequentar um pequeno bistrô argelino onde travamos conhecimento de uma especialidade formidável, o cuscuz marroquino e um bom vinho, o Mascara argelino.
No tempo em que estivemos no quarteirão árabe, pela fraternidade começamos a entender a ignorância de uma sociedade pelo modo como tratava nossos irmãos norte-africanos e negros.
A França xenófoba e colonialista foi cruel e exterminadora com os povos do Viet Nam, do Cambodja, da Argélia, Tunísia, e Marrocos e todos os povos da África Equatorial Francesa e dos territórios do Sahara.Torturou e matou. De Gaulle a tudo fechou os olhos e a consciência.
Dos árabes amigos ficou a alegre e fraterna saudação – Salamaleico. Nunca a esqueci.
Força, Marrocos!
O PORTEIRO DA NOITE, por Francisco Barreto
Um emaranhado de lembranças de mais de meio século me pegam pelas mãos e me levam ao passado quase esmaecido.
Fiz uma idílica viagem para rever o Almirante. Refiro-me ao Hotel de L’Amiral no 90 na Rue de L’Amiral Roussin no 15º no histórico “arrondissement” ou um dos distritos administrativos de Paris.
Uma parte de minha vida laboral de estudante trabalhei clandestinamente e fui porteiro de hotel. Trabalho este que me ajudava nas minhas parcas finanças.
Aceitava, apesar de me saber explorado, doze horas noturnas ininterruptas das sete da noite às sete da manhã. Sem direito a nada, com riscos eventuais de deportação.
Eu e a minha mulher Lucinha repartíamos este submundo do trabalho clandestino, ela no Opera 2000, perfumaria.
Tínhamos que nos municiar para pagar alojamento, metrô e alimentação em restô universitário. Juntos, amealhávamos cerca de duzentos dólares.
Mme Martin, minha patroa, não fazia concessões. A seco, nada de lanches ou café da manhã. Passava as noites sentado, atendendo hóspedes que quase sempre despejavam mau humor e pacientavam quando sempre declarava que não era árabe.
Pontas de sorriso ficavam à mostra diante da minha condição de brasileiro. Para os franceses, a leitura era imediata: mulheres nuas, carnaval, pleno sol tropical, Amazônia e indígenas.
Era um hotel precário, cheirava a mofo, carpetes fétidos, com raros banheiros privados e sanitários nos intervalos dos lances de escada. A clientela era quase sempre de aposentados, de casais jovens que se aninhavam por uma noite.
Durante quase um ano dei os meus plantões noturnos. Durante as noites frias, tinha que alimentar algumas vezes com carvão a calefação nos mal iluminados porões. Tinha que driblar um danado de um macaco Prego agressivo que era mantido acorrentado numa estreita escadaria que insistia pegar a minha frondosa cabeleira.
À noite, com o encerramento dos metrôs, ficava em paz, tinha apenas uma incômoda companhia de uma antiga central de linha telefônica e de interfones com cabos que lembravam cenas de filmes de guerra e da nouvelle vague do cinema francês. Não podia errar os plugs com varias conexões. Era um desastre. Mme Martin era uma péssima e impaciente pedagoga.
Durante o tempo em que permaneci nunca me foram concedidas folgas remuneradas semanais ou vantagens. Nenhum adicional financeiro e sempre minguadas gorjetas. De vez em quando, hóspedes me davam tickets de metrô.
Só aos domingos via a minha mulher. Ela saia às sete da manhã, hora em que eu chegava, e às seis eu retornava ao hotel. Não a via.
Minhas noites eram dedicadas a escrever minha tese de doutorado. Acobertava cuidadosamente a minha Olivetti Lettrera assegurando o silêncio. Consegui terminar com ajuda do Prof. Milton Santos e a defendi no dia 3 de julho de 1973. Muito sacrifício.
Para tirar as raras folgas, tinha que encontrar um substituto. Um deles foi Rubens Pinto Lyra, que se inimizou com a central telefônica e arranjou conflitos com patroa. Uma noite, para ficar na escuridão da sala, puxou as vistosas e belas cortinas da sala que eram postiças e imóveis. Caiu tudo. A dona acordou uma fera.
Naquela madrugada, ele abandonou o trabalho e debandou. Não foi nem buscar o dinheiro com medo da dona. A Mme Martin ainda me perguntou se ele era doido? Disse-lhe sorrindo que ele era apenas fraco dos nervos. Assim terminou o ensaio laboral de Rubens.
De hóspedes idosos ouvi sofridos relatos dos horrores da 2ª Guerra, inclusive de um casal judeu. Tive também o encantamento de conhecer um grande grupo de bailarinas do Taihiti que se apresentou por semanas num restaurante da Torre Eyffel que ficava nas proximidades. Com prazer as servia. E, ao ir a um dos quartos atendê-las, deparei-me com uma cena digna de Gaughin. Estavam apenas de sarong, seminuas, fazendo movimentos nos quadris com coloridos colares me saudando com a Hula Hula havaiana. Com os sabonetes e toalhas requisitados fiquei paralisado. Elas alegremente me agradeceram e pasmo permaneci apenas alguns segundos. Retomei as escadas estonteado com tanta beleza.
No clandestino convés do hotel do Almirante passei maus pedaços, ganhei alguns níqueis e consegui terminar aos 27 anos minha Licence (2º ciclo) Maitrise e a minha tese de Doutorado do 3º Ciclo.
Não me fizeram falta os bancos acadêmicos da Faculdade de Direito da UFPB, de onde fui extirpado em 1969 pelo AI-5/Decreto 477. Apenas sobrevivi, sob o leme nas aguas turvas do Almirante Roussin.
Também distribui folders, vendi o France Soir no Metrô George Washington, fui operário da Höechst em Munique, da Fabrica Kleber de Pneus e cabeceiro de verduras no antigo Mercado des Halles, entre outros. Tive uma clandestinidade de mão de obra desqualificada. Tudo isto à conta da Ditadura.
A ÚLTIMA VEZ QUE VI PARIS, por Francisco Barreto
Existem livros e filmes que aterrissam como um corisco na memória. Por felicidade ou tristeza, entranham-se em nós para sempre. Viram tatuagens. Deles emergem profundas lembranças que nos excitam a controversos e necessários sentimentos. Retornar prodigamente a enevoados pensamentos por devoção à memória, quaisquer que sejam as sequelas, há de ter a força de revisitar o passado no presente. A memoria não se esvai e nunca se foge dela.
Subitamente, lembro-me de Rosebud, palavra pronunciada pelo Charles Foster Kane, segundos antes de morrer, numa cena final do filme de Orson Welles (Cidadão Kane, 1941), cultuado como um dos melhores da cinematografia universal. Intrigou a todos que viram filme o balbuciar terminal do magnata Kane: Por que Rosebud? A cena traz à tona a imagem de um trenó infantil envolvido pelas chamas. Tinha Rosebud como marca. Nos estertores, Kane (Orson Welles) recorreu à imagem da sua infância pobre, fazendo-se refém da memória que o tutelaria até a morte.
Assim somos nós, mortais viajantes, de olhos abertos nas curtas sendas que nos separam da vida e da morte que nos espreita. Apenas a velhice é capaz de nos dar as mãos até a infância, à juventude, aos felizes e terríveis tempos.
Paris entrou muito cedo na minha vida, sem pedir licença, e invadiu a minha alma. Depois, sob a influência de Hemingway e de Eric Maria Remarque, que com suas memórias me descortinaram o extraordinário cenário parisiense. Pelas mãos de Remarque, em vários dos seus livros passei a transitar por muitos anos nas avenidas, bulevares, parques, monumentos, sobretudo, e perambular nos cais dos buquinistas do Sena. Hemingway, apressado e equivocado, havia intuído que “quando jovens, quem viveu em Paris aprendeu que Paris é uma festa”. Não foi isto que vivi. Muito ao contrario. O meu ser e estar se repartia entre o pesadelo e o sonho.
De Paris, quando lá cheguei ao final dos anos sessenta, tudo que via não me era totalmente estranho. Em pleno apogeu da Ditadura brasileira, fui atraído pelo espírito libertário e sedutor das luzes de Paris. Feito uma esvoaçante e atônita libélula despencando em admiradas e estranhas terras, tal como descreve Albert Camus no ‘Estrangeiro’, após a sua saída da Argélia, saltei em queda livre no escuro, sem mãos e ombros para me amortecer, e o pior, sem perspectiva de volta.
Ainda quase ontem em Paris, à revelia do esplendor urbano, vivi a distância e convivi com a dialética do sofrimento ao estar longe e submisso ao encilhamento imposto pelo autoritarismo. Passei a sentir um forte alívio combinado com uma grande angústia alimentada pelo massacrante sentimento do exílio e de ser um desenraizado.
Um final de tarde no Café Cluny, em St. Germain-des-Près, infelicitado, deu-me a clara percepção de que o meu chão era o da Paraíba e não me seduziria ser colonizado, menos ainda aculturado. As graves circunstâncias políticas impuseram evadir-me para longe da terra. Do além-mar iria algum dia voltar. Entendi que umbilicalmente era paraibano.
A diáspora parisiense me fez ver que o sofrimento tem virtudes dialéticas e pode haver um enorme aprendizado com a dor. O tempo, este pode, pari passu, se alternar, fazendo também fluir o prazer e a alegria de viver. Aprendi que o frio e o calor e os duros invernos andam de mãos dadas com as primaveras.
Passados 52 anos, nada diminuiu minha gratidão à grandeza de sempre de Paris e da França, a “plaque tournante” dos exilados, dos apátridas, dos desenraizados. Ali fui também acolhido.
Em Paris, eu vi e vivi quase tudo. O amor e o desamor. A alegria e a tristeza. A paz e a desolação. A exclusão e a solidariedade. A distância e a intimidade. O respeito e a agressão. A grandiosidade e a estreiteza. O olhar e a cegueira. Os pesadelos e os sonhos. O bem e o mal. O mundo se descortinou. A juventude desabrochou. A maturidade colheu flores. Amores lindos e findos.
Paris nunca seria a minha terra, mas o lugar do acolhimento, da cultura, da inteligência e do saber. Lá, aprendi a intensidade dos princípios humanos e a louvar a retórica da humanidade pela grandeza dos sentimentos universais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Hoje, mais do que nunca, fica a sensação de que, mesmo tendo saído do exílio, Paris nunca me deixou. Ficou tatuada para sempre na minha memória. Dela me despedi há décadas. Em Outubro de 69, a última vez que vi Paris. Dieu Merci.