O PORTEIRO DA NOITE, por Francisco Barreto

Hotel L’Amiral, Paris (Imagem copiada do Booking.com)

 

Um emaranhado de lembranças de mais de meio século me pegam pelas mãos e me levam ao passado quase esmaecido.

Fiz uma idílica viagem para rever o Almirante. Refiro-me ao Hotel de L’Amiral no 90 na Rue de L’Amiral Roussin no 15º no histórico “arrondissement” ou um dos distritos administrativos de Paris.

Uma parte de minha vida laboral de estudante trabalhei clandestinamente e fui porteiro de hotel. Trabalho este que me ajudava nas minhas parcas finanças.

Aceitava, apesar de me saber explorado, doze horas noturnas ininterruptas das sete da noite às sete da manhã. Sem direito a nada, com riscos eventuais de deportação.

Eu e a minha mulher Lucinha repartíamos este submundo do trabalho clandestino, ela no Opera 2000, perfumaria.

Tínhamos que nos municiar para pagar alojamento, metrô e alimentação em restô universitário. Juntos, amealhávamos cerca de duzentos dólares.

Mme Martin, minha patroa, não fazia concessões. A seco, nada de lanches ou café da manhã. Passava as noites sentado, atendendo hóspedes que quase sempre despejavam mau humor e pacientavam quando sempre declarava que não era árabe.

Pontas de sorriso ficavam à mostra diante da minha condição de brasileiro. Para os franceses, a leitura era imediata: mulheres nuas, carnaval, pleno sol tropical, Amazônia e indígenas.

Era um hotel precário, cheirava a mofo, carpetes fétidos, com raros banheiros privados e sanitários nos intervalos dos lances de escada. A clientela era quase sempre de aposentados, de casais jovens que se aninhavam por uma noite.

Durante quase um ano dei os meus plantões noturnos. Durante as noites frias, tinha que alimentar algumas vezes com carvão a calefação nos mal iluminados porões. Tinha que driblar um danado de um macaco Prego agressivo que era mantido acorrentado numa estreita escadaria que insistia pegar a minha frondosa cabeleira.

À noite, com o encerramento dos metrôs, ficava em paz, tinha apenas uma incômoda companhia de uma antiga central de linha telefônica e de interfones com cabos que lembravam cenas de filmes de guerra e da nouvelle vague do cinema francês. Não podia errar os plugs com varias conexões. Era um desastre. Mme Martin era uma péssima e impaciente pedagoga.

Durante o tempo em que permaneci nunca me foram concedidas folgas remuneradas semanais ou vantagens. Nenhum adicional financeiro e sempre minguadas gorjetas. De vez em quando, hóspedes me davam tickets de metrô.

Só aos domingos via a minha mulher. Ela saia às sete da manhã, hora em que eu chegava, e às seis eu retornava ao hotel. Não a via.

Minhas noites eram dedicadas a escrever minha tese de doutorado. Acobertava cuidadosamente a minha Olivetti Lettrera assegurando o silêncio. Consegui terminar com ajuda do Prof. Milton Santos e a defendi no dia 3 de julho de 1973. Muito sacrifício.

Para tirar as raras folgas, tinha que encontrar um substituto. Um deles foi Rubens Pinto Lyra, que se inimizou com a central telefônica e arranjou conflitos com patroa. Uma noite, para ficar na escuridão da sala, puxou as vistosas e belas cortinas da sala que eram postiças e imóveis. Caiu tudo. A dona acordou uma fera.

Naquela madrugada, ele abandonou o trabalho e debandou. Não foi nem buscar o dinheiro com medo da dona. A Mme Martin ainda me perguntou se ele era doido? Disse-lhe sorrindo que ele era apenas fraco dos nervos. Assim terminou o ensaio laboral de Rubens.

De hóspedes idosos ouvi sofridos relatos dos horrores da 2ª Guerra, inclusive de um casal judeu. Tive também o encantamento de conhecer um grande grupo de bailarinas do Taihiti que se apresentou por semanas num restaurante da Torre Eyffel que ficava nas proximidades. Com prazer as servia. E, ao ir a um dos quartos atendê-las, deparei-me com uma cena digna de Gaughin. Estavam apenas de sarong, seminuas, fazendo movimentos nos quadris com coloridos colares me saudando com a Hula Hula havaiana. Com os sabonetes e toalhas requisitados fiquei paralisado. Elas alegremente me agradeceram e pasmo permaneci apenas alguns segundos. Retomei as escadas estonteado com tanta beleza.

No clandestino convés do hotel do Almirante passei maus pedaços, ganhei alguns níqueis e consegui terminar aos 27 anos minha Licence (2º ciclo) Maitrise e a minha tese de Doutorado do 3º Ciclo.

Não me fizeram falta os bancos acadêmicos da Faculdade de Direito da UFPB, de onde fui extirpado em 1969 pelo AI-5/Decreto 477. Apenas sobrevivi, sob o leme nas aguas turvas do Almirante Roussin.

Também distribui folders, vendi o France Soir no Metrô George Washington, fui operário da Höechst em Munique, da Fabrica Kleber de Pneus e cabeceiro de verduras no antigo Mercado des Halles, entre outros. Tive uma clandestinidade de mão de obra desqualificada. Tudo isto à conta da Ditadura.

É BOM ESCLARECER
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