Acordou com uma vontade danada de beijar. Julita era assim, cheia de manias. E esses desejos surgiam após acordar pela manhã. Eram os sonhos, dizia ela.
Pensou, meio cabreira, se valeria à pena pedir o beijo àquele com quem sonhou. Tomou o café matinal maquinando o que deveria fazer para resgatar o melhor beijo que tinha recebido até então. O cara já estava casado, mas isso não vinha ao caso. Ele era chegado a um beijo qualquer que fosse a circunstância. Julita o conhecia de longas datas.
A compulsiva exigia higiene bucal do parceiro, corria léguas de distância de mau hálito. Sentia atração pelo cheiro de uma boca cheirosa. Para ela, fazia toda a diferença no beijo.
Optava por um sorriso completo. Segundo ela era um sorriso com os principais dentes intactos. Muita exigência para uma mulher considerada balzaquiana.
Deixaria claro que o beijo serviria para concretizar um sonho; não iria além disso. Os “sonhos”, alegava, eram obsessões compulsivas não tratadas. Mas seguia adiante como dona do seu nariz. Ninguém tinha nada a ver com a sua vida e suas manias.
Não conseguiu convencer o personagem do sonho, velho conhecedor de suas matreirices. Saiu, então, à procura de outro na sua seleta lista de candidatos.
Pedia a Deus para que os seus desejos não fossem frustrados. Julita era seletiva, sabia direcionar as suas impertinências. Por se sentir esperta achava fácil enganar os pretensos com um hálito artificial, manipulado na hora do beijo. Mas essa maquiagem burlava apenas os ingênuos.
Resolveu insistir naquela boca do sonho e foi à igreja apelar aos santos. Súplicas ao seu protetor surtiram efeito contrário às suas ambições, ao ouvir uma voz surpreendente: “Moça, cumpriu a penitência?”. Era o padre que atendia Julita no confessionário auricular, lembrando a higiene bucal.
BEIJO MATREIRO, por Babyne Gouvêa
ONDE ESTÁ JESUS? por José Mário Espínola
Pililiu e Zéorge eram os dois únicos filhos da viúva Sinfrônia. E davam o trabalho de dez! Bastante conhecidos em Misericórdia, tudo o que acontecia de ruim atribuíam a eles. Ô fama ruim dos diabos!
Cansada de tantas dificuldades na criação dos dois, de tantas reclamações, de tanto prejuízo que eles davam, a mãe foi atrás do padre Zé Sitônio. Pediu ajuda.
Padre Zé Sitônio se dispôs a ajudar, mas advertiu: “Esses meninos tão com o diabo no couro! A senhora precisa botar Jesus dentro do coração deles”.
“Mas, Padre Zé, eu num tenho mais moral pra eles. Foi justamente por isso que vim pedir a sua ajuda”. E começou a chorar. O padre orientou, então: “Mande os dois para mim. Mande de um em um. Garanto que eles vão mudar”.
Dona Nenen, como Sinfrônia era mais conhecida, foi para casa. Mandou logo George, o mais velho, falar com Padre Zé.
Zéorge, assim o chamavam, já entrou na sacristia com medo. E o que viu e ouviu só fez piorar. O padre Zé Sitônio ordenou, com ar severo: “Senta aí!”.
Zéorge sentou-se na cadeira de respaldar alto e reto. Olhou pra direita e viu ao seu lado um São Sebastião todo aberto e flechado. Aí ficou menor, de medo. Olhou para trás, e viu um outro santo martirizado, São Manoel. Sentiu-se ainda menor.
O padre puxou uma cadeira e se pôs à frente do rapaz. Sentou-se e perguntou, ríspido: “Onde está Jesus?!”
Zéorge ficou ainda menor, tremendo de medo.
“Onde está Jesus?” Zéorge perdeu a fala, de medo. “On-de es-tá Je-sus?”, gritou o padre.
Zéorge pulou da cadeira e disparou para casa. Lá chegando, enfiou-se debaixo da cama. O irmão Pililiu se agachou para saber o que tinha acontecido, lá na sacristia. Zéorge respondeu, tremendo de medo:
– Pililiu, tamu lascadu. Jesus sumiu e tão butandu a culpa in nói!
PAQUERA ABENÇOADA, por Babyne Gouvêa
À Rosana Maciel, minha amiga estelar
Jovem católica, frequentadora assídua de missas semanais, Afrodite sempre se sentiu entusiasta desse rito. Os efeitos físicos e comportamentais, naturais da adolescência, não a afugentaram desse hábito religioso.
Sempre ia com uma amiga para esse ato de fé na Capela do Colégio Pio X, em João Pessoa. Entre as trocas de confidências confessaram ser observadas por rapazes frequentadores da mesma igreja. Descobriram que havia olhares comuns das duas para o mesmo rapaz. Decidiram disputá-lo.
Na fila da comunhão olhariam para Apolo – dono de beleza admirável. Num trato inusitado, desistiria do mancebo quem não despertasse o seu olhar.
Assim os dias de missa eram aguardados com bastante ansiedade. A escolhida tratou logo de contar a novidade à outra amiga, vizinha de residência do cobiçado moço. As perguntas eram sucessivas – como se chamava, que lugares frequentava… O interesse aumentava à medida que desbravava o seu currículo.
A semana que antecedia o ato litúrgico girava em torno da indumentária a ser usada para impressionar quem deveria ser impressionado. A originalidade era imprescindível para chamar a atenção. Os cosméticos foram usados para diminuir o seu aspecto imaturo. E nada de exagero para não mascarar as suas características genuínas – marca da sua imagem.
O Padre, conhecedor do seu público semanal, começou a desconfiar do comportamento adulterado da moça. Após se certificar da intenção dela, chamou-a para uma conversa na sacristia. Passou-lhe um sermão e uma recomendação expressa: “A concentração tem que estar em Deus, menina”.
Ela permaneceu inquieta, todavia. Não pretendia desistir facilmente. Planejou e deu certo: na hora de receber a hóstia fixava o olhar no pároco e o contornava depois de recebê-la – momento em que fitava o seu intento. Passou a se acomodar em bancos próximos ao seu alvo. Bastava o sacerdote dar as costas para os fiéis, os olhares se cruzavam entre os enamorados.
O templo ganhou retoques majestosos no olhar da jovem. Os santos esculpidos e distribuídos na lateral da nave paroquial se tornaram brilhantes reluzindo cores nunca dantes vistas. Esse encanto contrastava com a ideia de castigo religioso, temido por ela.
Sentiu necessidade de saber o grau da sua infração. Foi então que consultou uma amiga católica fervorosa. Claro que foi absolvida.
O ritual foi mantido semanalmente, entre solfejos efusivos durante o caminho até a igreja. Para surpresa da mocinha, o sacristão começou a observá-la com segundas intenções. Esse moço passou a criar histórias maliciosas para perturbar os adolescentes enamorados. Em vão.
Afrodite continuou contrariando as advertências por um certo tempo. Achava essa insubordinação atraente e aprazível. Deu certo, sua paixão foi correspondida e se alongou pela vida afora, mostrando que aquela paquera fora comprovadamente abençoada.
Bananeiras vai reabrir o seu cinema. Estarei lá, na fila do gargarejo
A União trouxe ontem (19) matéria bacana de página inteira, assinada por Ítalo Arruda, sobre provável revitalização do Cine Teatro Excelsior, de Bananeiras. Tudo graças a um projeto dos Guardiões da Serra, grupo de escotismo local que concorre a financiamento do Fundo de Direitos Difusos do Ministério Público da Paraíba.
A excelente perspectiva recarregou-me esperanças e melhores expectativas de retornar em breve a Bananeiras só para assistir à sessão de reinauguração do Cine Excelsior. E vibrar com um novo diferencial do lugar da minha saudade: ser a primeira cidade paraibana a reinstalar o seu cinema de rua.
Mas tenho um pedido a fazer aos autores do projeto: botem aquela corneta difusora de volta no frontispício do prédio e toquem ‘Corintiano’ com o velho e bom Saraiva, o rei do sax soprano. Era a música que anunciava o começo do filme para todos aqueles que estivessem nas calçadas e bancos da Praça Epitácio Pessoa, bem na frente do ‘Cinema do Padre’.
A lembrança me leva ao final dos anos 60 do século passado, um tempo em que o Professor Vicente, meu pai, também músico, fornecia a trilha sonora de espera dentro e fora do cinema. Fornecia mediante troca de LPs de Saraiva e Bob Fleming (Moacir Silva), entre outros virtuoses do sopro, por ingressos para os filhos adolescentes – este que vos escreve e o mano Robson.
Não perdíamos uma fita, desde que permitida aos meninos de nossa idade. Mas, ainda que a censura não permitisse, não raro Rubinho de Vicente, como me chamavam, escalava o telhado de casas vizinhas ao cinema para ver alguns proibidões por uma das janelas abertas e quase coladas ao teto, bastante alto, da sala de exibição.
Pesando igual sibite, não quebrava uma telha sequer nem fazia zoada para chegar até aquelas brechas que tanto arejavam o ambiente como me deixavam ver ‘filmes 18 anos’, de projeção que certamente passava à revelia ou omissão conveniente do Padre José Diniz, o irascível e temido pároco de Nossa Senhora do Livramento, padroeira local e verdadeira dona do Excelsior.
Fissurado em cinema, o Mago de Vicente, alcunha alternativa com que também me identificavam, um dia fui vítima fácil de Ivan, filho de Zé do Padre, sacristão, projetista e bilheteiro do Cine Excelsior. Foi assim…
Esgotada a cota de ingressos a que meu pai tinha direito, estava na praça desolado por não ter como assistir a um Durango Kid prestes a sair de cartaz. Faltando pouco segundos para Saraiva tocar a última nota do ‘Corintiano’, Ivan me socorreu. Entregou-me ligeiro um pedaço de papel da mesma cor do ingresso. “Corre que já vai começar”, instigou-me. Não contei conversa…
Entreguei rápido o bilhete ao porteiro e mais ligeiro ainda fui procurar uma cadeira vaga na fila do gargarejo, onde mais gostava de assistir. Não deu quatro minutos, o segundo trailer estava perto de acabar quando acabaram com a minha graça.
Puxando-me pelo braço, o porteiro devolveu-me à calçada do cinema, onde me aguardava um comitê de vaia mobilizado pelo mesmo Ivan, o terrível. Chorando e morrendo de vergonha, só lembro ter apanhado uma pedra que arremessei com toda força possível na direção da cabeça do meu algoz.
Não acertei o alvo. O alvo me acertou. Derrubou-me com um murro, ganhei um olho inchado, levei uma pisa em casa e fiquei uma semana de castigo. E só voltei a assistir filme quando o Professor Vicente resolveu se descartar de mais um LP da sua coleção de saxofonistas e clarinetistas em mais uma troca por ingressos para o Cinema do Padre.
(Foto: Cine Teatro Excelsior em imagem cedida pelo jornalista e escritor Ramalho Leite, liderança e referência de Bananeiras)
APURANDO A ‘PRISÃO’ DO PADRE
O Chefe de Reportagem chamou o repórter. “Vá ao Conde apurar essa história da prisão do padre. Tente ouvir a versão de todo mundo. Da prefeita acusada de mandar prender o padre, do padre que acusou a prefeita de mandar prendê-lo…”.