SEGREDO FERVENTE, por Babyne Gouvêa

Imagem: TripAdvisor

Pilar, cidade da Paraíba, terra natal do escritor José Lins do Rego, o destino. Cercania da Rua do Cruzeiro, na Serventia, o endereço. Perguntando a um e a outro a casa de Mãe Solteira foi localizada.

A senhorinha franzina, que atendia pelo codinome Mãe Solteira, tinha os seus sessenta anos com aparência de noventa e alguma coisa a mais. Chegou à porta da frente de sua morada e, com cara de poucos amigos, encarou quem a procurava.

Tinha o rosto com sulcos causadas pelo excesso de sol no trabalho na lavoura. Habitava uma choupana de chão batido, paredes de taipa e telhado de palha. Da entrada do seu lar era possível visualizar todo o pequeno reduto que a abrigava.

A conversa começou com a forasteira sendo interrogada sobre o motivo da visita. Foi logo intimidando com um olhar de meter medo. A visitante resolveu dizer que tinha sabido do interesse de sua neta em trabalhar na capital.

De repente, surgiu a mocinha puxando uns caprinos por dentro de casa. A velha senhora gritou: “avie, menina, você vai pra capitá”.
“Chega qui”, falou Mãe Solteira mostrando à desconhecida uma chaleira com água fervendo num fogão à lenha. “Tá vendo, né?”, perguntou à futura patroa da neta. “Espia bem”. A moça ficou com a orelha em pé, questionando a advertência.

Logo depois, a neta apareceu com uma trouxa com os seus pertences. Ao sair, pediu a bênção à avó, que lhe tranquilizou: “não se avexe”, e apontou a chaleira como código de segurança das duas.

Graças ao “Padim Ciço”, dizem os devotos, o segredo da dupla não foi acionado.

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O LEGADO DE UM HOMEM, por Frutuoso Chaves

Finalmente, tenho em mãos o autógrafo de Magdala Cavalcanti de Melo numa das folhas de rosto de “Chico do Pilar – O legado de um homem”, o livro sobre as origens e os feitos de uma figura admirável.

A assinatura toma a data de 17 de setembro de 2023, o que permite a contagem de tempo desde a oferta até o recebimento. A prestimosidade do editor Iam Pontes fez com que me chegasse o exemplar que me fora reservado na Livraria do Luiz pela generosidade da autora. Isso, com o auxílio luxuoso do querido Paulo Emmanuel, o filho que tomo por empréstimo do companheiro Gonzaga Rodrigues.

A suspeita da dengue, confirmada em exame posterior, impediu-me a presença no lançamento. Em seguida, a convalescença empurrou a entrega mais para adiante e, com o reforço de uns lapsos de memória e da locomoção mais difícil, pois não dirijo há cinco anos, o tempo foi passando. Mas, felizmente, tenho comigo a dedicatória envaidecedora no livro com o selo da MVC/Forma, sinônimo de competência editorial. Da Gráfica A UNIÃO não seria de se esperar menos do que a impressão e o acabamento primorosos.

Magdala fala de Chico do Pilar – prefeito por duas vezes e deputado estadual – com o olhar e o desvelo esperados, porquanto trata do pai a quem ela e os irmãos idolatram. Mas é espantoso observar que não é menor, ainda hoje, a admiração de muitos, entre os pilarenses, pelo amigo de todas as horas.

Lembro das caras fechadas das irmãs Rosa e Guajarina, primas do poderoso chefe político local, o usineiro Agnaldo Veloso Borges, de quem eram primas, em razão de haver meu pai rejeitado um candidato a prefeito por este então indicado. Lá em casa, votava-se em quem viesse dos lados e agrados da Fazenda Independência. Ainda criança, lamentei a proibição à performance de Rosa quando da execução ao piano de antigas marchinhas, parede e meia com nossa casa. Minha mãe proibiu-me as visitas enquanto duraram os ressentimentos.

Fiz parte, porém, da plateia de meninos para o quebra-pau da TV Ringue Torre e os jogos do Santa Cruz contra o Sport exibidos pelo televisor dos pais de Magdala, na sede da Fazenda. A sintonia em preto e branco era a da TV Jornal do Commercio do Recife, com direito a chuviscos. Não mais lembro de quem partiam os convites endereçados, prioritariamente, ao amigo Wolney, aluno, como eu, de escolas primárias situadas no Recife. Estávamos em casa nos períodos de férias quando restabelecíamos contato com irmãos de Magdala. Convivi, ocasionalmente, na fase da juventude, com Rogério e Aristeu. Um jipe sem capota do primeiro deles nos conduzia até os braços de umas tantas morenas, ao cabo do pastoril profano de Itabaiana. Hoje, aquela rua é tão honesta e decente quanto assim eram as lapinhas abençoadas pelo Padre Gomes, no Pilar da nossa infância.

Li, de um fôlego só, o saboroso relato de Magdala acerca da vida e dos predicados do pai. Leitura fácil e prazerosa, sobretudo, pelos que tiveram a sorte de conviver com aquela boa gente. Seu Francisquinho, assim tratado entre nós, tinha o acolhimento do seu povo em razão da boa têmpera, dos bons préstimos e do propósito de bem servir. Bem lembro disso: dentista prático, ele socorria, graciosamente, legiões de pilarenses sem levar em conta suas preferenciais partidárias.

Quantos nomes (muitos já me escapavam) o texto de Magdala me trouxe de volta à memória… O canoeiro Petório foi um deles. Seu medo de enfrentar o Paraíba, numa das grandes e perigosas enchentes, fez o jovem Francisco cruzar a nado as águas revoltas para levar à Estação de Trem a cartinha destinada à noiva Oza, a moça da cidade de Aliança, Pernambuco, com quem se casaria em primeiras núpcias. Assim contava aquele povo e assim Magdala confirma a seus leitores. A convivência estreita e pacífica entre os personagens desses dois ramos familiares rende um belo conto. Mas, antes de tudo, bem ressalta a grandeza espiritual da Dona Carminha, a bela senhora de cujo ventre Magdala e seus irmãos vieram ao mundo.

Repleto de fotos e documentos, “Chico do Pilar – O legado de um homem” reproduz os fatos, tal como ocorreram. Foi o resgate de um débito bancário contraído pelo amigo de quem era fiador – e não o carteado no Cabo Branco, talvez, seu único defeito – o que fez Seu Francisquinho e família perderem a bela casa de pedras róseas instalada na esquina da Maximiniano Figueiredo com a Camilo de Holanda e, de resto, também, na memória afetiva de gerações de pessoenses. O coração o matou no último dia de agosto de 1964. A você, Magdala, grato pelo autógrafo e pelo livro tão grato à memória da nossa gente.

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DE PIERRE A MALAKA, por Frutuoso Chaves

Pierre Landolt (Imagem do YouTube)

Romã… Eu não consigo ver essa fruta sem que me venham à lembrança duas figuras interessantíssimas. A primeira, o francês Pierre Landolt que a cultiva, de forma orgânica e consorciada a carneiros, nas Várzeas de Sousa, onde o conheci quando acompanhava, em 2015, uma inspeção do Tribunal de Contas ao Perímetro Irrigado. Além de limparem os aceiros os bichos, ali, ainda adubam o terreno.

Preparava-se Pierre, na ocasião, para exportar o resultado das primeiras safras à Europa. Brinquei: “Quer dizer que veremos, dentro de pouco tempo, o tratamento de gargantas, no mundo inteiro, por remédios feitos com romãs do Sertão?”.

A resposta me surpreendeu, como, aliás, surpreenderia à minha e às avós de vocês. “É mito. Romã serve mesmo é para combater a depressão”. Falava, sem dúvida, com a autoridade de quem é sócio da Novartis, o quarto maior laboratório farmacêutico do planeta, um patrimônio advindo do bisavô, o suíço Edouard Constant Sandoz. Repito: Sandoz.

Pois bem, foi a união da Sandoz com a Ciba que originou a Norvatis. Li, numa edição da Revista Exame, datada de 2000, que a Fundação Sandoz controlava, em Genebra, o Banco Edouard Constant, a Interoute (empresa de telefonia atuante em onze países europeus) e a World Online International, um provedor de serviços de Internet criado na Holanda.

A outra lembrança é a do grego Malaka, cujo nome de batismo não me recordo agora, mas poderia conferir, se a preguiça deixasse, em matéria de duas páginas, resultado de entrevista que ele me concedeu para o Jornal do Commercio do Recife. Para tanto, eu teria que abrir alguns baús.

Foi o companheiro Figueiroa Oliveira da equipe de Circulação do jornal, quem me apresentou a Malaka. Que história o grego me contou. Descendente de judeus, foi prisioneiro em Auschwitz e ali esteve, por duas vezes, na fila da câmara de gás. Em ambas as ocasiões, a sirene acionada ao final de cada expediente o salvou da morte lenta e brutal.

Ele viu, entretanto, a execução dos pais e tios. Quando um soldado russo o resgatou, o moço alto, que então já era, estava reduzido a 45 quilos. Os alemães não o mataram, mas a vergonha quase o conseguiu, posto que estava a furtar chocolates da mochila do salvador enquanto era socorrido.

E a romã com isso? Pois bem, ficamos amigos depois da publicação da matéria e, assim, fui inscrito, juntamente com Figueiroa, na seleta lista de convidados para a Festa de Reis que Malaka e a paraibana Terezinha, com quem se casou, davam na casa da família, em Tambaú.

Cada convidado recebia três sementinhas de romã a serem mantidas na carteira, em meio a cédulas e moedas, para devolução na festa do ano seguinte. Neste caso, as sementes velhas eram jogadas no telhado do anfitrião, depois do que recebíamos sementes novas. A repetição, ano após ano, jurava o grego, nos garantiria dinheiro e saúde. Acho que esta foi a única mentira que ele me contou na vida.

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O TEMPO E OS COSTUMES, por Frutuoso Chaves

Imagem copiada da CNN

Este sujeito que vos fala, este que começou a teclar notícias na máquina datilográfica, como tantos de seus semelhantes, não para de se espantar com a invasão da privacidade proporcionada pela internet.

Logo me vem à mente o Big Brother. Não a franquia de mídia criada há 20 anos, em escala mundial, pelo executivo de uma tevê holandesa, esta abjeção que a Globo põe no ar. Mas, sim, o Big Brother original, “O olho que tudo vê”, como descrito no livro “1984”, de George Orwell.

Pois bem, eu me descobri diabético, tempo atrás. Fui ao médico, que me prescreveu remédios e à nutricionista que me impôs uma dieta severa. Sabem de quem recebi, depois disso, pedido de adição à relação de amigos que mantenho na minha página pessoal, a que abri no Facebook? Lá vai: de um troço chamado “Diabetes Mellitus”.

É claro que recusei o pedido. Já me basta a invasão orgânica da doença em si. Entrou-me sem que eu assim pedisse. E, como se isso já não bastasse, essa coisa também me invade o espaço eletrônico no qual apenas deveriam caber os temas requeridos e amigos antigos, ou de ocasião.

Como explicar isso? Penso e logo percebo que eu – a exemplo de todos vocês – sou um número de computador. Tenho a vida e a sorte registradas no CPF. Uma simples consulta ao cadastro de contribuintes e o Sistema (assim entendidos os Poderes Públicos, a rede bancária e financeira, as lojas, supermercados, restaurantes, bares e hotéis) logo sabe quem você é, onde mora, onde trabalha, qual o número do telefone.

A “Diabetes Mellitus” – certamente, um grupo clínico, ou farmacêutico, que deletei sem abrir – entrou sem bater, invadiu-me o espaço. Não sei o que me oferecia, embora disso desconfie. Mas sei como me encontrou no santo recesso do lar.

Uso, como você, dinheiro de plástico. Deixo rastros eletrônicos a cada vez que pago minhas despesas com cartão de débito. Isso voltou a acontecer quando desembolsei uma boa grana com o endocrinologista, com a nutricionista e com a farmácia. Pronto: tornei-me, apesar da idade avançada, um diabético novo na Praça, fresquinho (no bom sentido), apreensivo e abordável. Achar-me foi bem fácil. Bastou aos urubus de plantão seguir meus passos de clínica em clínica e de farmácia em farmácia. “O tempora, o mores”, diria Cícero.

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O REGRESSO, por Frutuoso Chaves

Imagem: cmm.com.pt

Voltou de surpresa. Parou à beira da estrada no lugar, exatamente, de onde podia de melhor modo observar a cidadezinha espichada no fundo do vale. O rio magro como boi em pasto seco refletia em uns ticos d’água os raios do sol que então quase já se punha.

Visto assim de longe, tudo lhe parecia como antes. A torre da igreja tinha a mesma cor desbotada e as duas linhas de coqueiros ainda emolduravam aquela trilha que tantas vezes o conduzira aos afagos da primeira namorada.

E lá estava ela, a casa esverdeada com pátio de cajus, mangas e umbus, no mesmo sítio que, de um ponto também elevado, se mostrava por inteiro a quem reparasse o outro lado do vale.

Enfim, lá estavam ele, suas emoções, o rio que em tempos de cheia banhava os quintais, as fachadas e telhados de ruas tão conhecidas e, do lado oposto ao seu, no topo daquela colina, o coqueiral e a varanda onde sonhou com o término dos estudos, o primeiro emprego, o altar e a filharada. Tudo, num mesmo quadro, na moldura, agora, do seu coração em brasas.

Enxugou umas poucas lágrimas, recompôs-se, voltou ao carro e desceu em busca da casa paterna onde entraria sem aviso e de onde havia saído, também, de supetão, oito anos atrás. Fizera a viagem desde o Recife por carro alugado em razão do pacote contratado com a agência situada perto do seu endereço, no Canadá, o destino da fuga de oito anos.

Tão longe de casa, trabalhou como um condenado. Ali chegara sem eira nem beira e ali resolvera ficar, depois de comunicar este propósito ao participante da sua expedição turística de quem se fizera mais próximo. Anos seguidos de amargura até a regularização dos papéis e a instalação da pequena empresa por ele criada para o fabrico de bancos de jardins.

Resistiu ao desencanto, à saudade e venceu. Não deixou de pensar, enquanto atravessava o rio pela velha ponte, na inveja que seu êxito causaria às famílias mais abastadas do lugar de suas origens.

Foi Guilherme, um dos amigos de infância, o primeiro a reconhecê-lo, mal estacionou para uma água de coco, antes de cruzar o portão de casa, duas ruas depois. O primeiro e os outros abraços tiveram força e calor à altura das grandes saudades. Demorou-se na pequena lanchonete mais do que deveria e a notícia do seu retorno, endinheirado, chegou aos ouvidos paternos antes dele.

O aborrecimento logo cedeu vez ao alívio. Pensando bem, a surpresa talvez matasse pai e mãe, ambos em idade na qual sempre será prudente se evitar grandes choques. Além disso, o que mais agoniava aqueles dois e, não menos, a irmã cujos filhos ainda não conhecia, era sua demora na lanchonete. Achara pouco o sumiço de oito anos? Já em casa, teve a impressão de que não sobreviveria a tanto chamego do seu pessoal e da vizinhança que dele também se acercava.

Presentes para todo mundo, avisos aos que, porventura, ainda não soubessem do seu regresso e, então, a recomendação a Tereza, dona do salãozinho de festas, para um jantar a capricho, a que não faltassem boa música, bufê bem farto e muita bebida. Ninguém, jamais, em tempo algum, tanto quanto ele, impressionaria aquela cidadezinha. Pelo menos, era este o propósito.

Hora da festa, circulou por todo o ambiente, de mesa em mesa, apertando mãos, ou distribuindo beijos e abraços entre as pessoas mais íntimas. Em nenhum momento, deixou de temer que notassem seu coração aos pinotes, seu olhar na busca ansiosa de quem tanto queria rever.

Já desanimava quando a viu ao fundo, acompanhada dos pais e outros parentes. Risonho, aproximou-se do pequeno grupo. Como a cidade, ela pouco havia mudado. Ali estavam, finalmente, diante de si aqueles cabelos castanhos, a mesma boca e os mesmíssimos olhos. Quantas vezes aquela imagem não lhe aqueceu o peito nas noites canadenses feitas de gelo e de ausências.

Enquanto se erguia para o abraço há tanto esperado, ela apresentou o marido. Sua vista escureceu, o sangue gelou e ele, a fazer das tripas coração, disfarçou o choque o quanto pôde.

Demorou-se na terra natal pouquíssimo tempo. Um avião logo o teve de volta a suas noites geladas. Mas a festa foi motivo da conversa de um povo inteiro por dias e dias. Isso e a história de que alguém o vira, no banheiro, a chorar como um desgraçado.

Antes que eu me esqueça, algumas más línguas também passaram a comentar que a velha empregada da moça cansou de vê-la aos prantos na casinha verde dos pais, templo de tantas memórias.

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PERIGO E DESCONFORTO, por Sofia Pimentel

Conversa entre Juninho e Alane que resultou em acusação de assédio (cena do BBB 24 com imagem copiada de transmissão da TV Globo em canal aberto)

Há uma distinção entre estar verdadeiramente em perigo e meramente sentir-se desconfortável, uma distinção que parece ter escapado à consciência das mulheres atualmente. Essa dicotomia é evidenciada na interação entre os participantes Alane e Juninho no Big Brother Brasil 2024. Em meio a uma festa no programa, o motoboy Juninho manifestou interesse sexual pela bailarina Alane. No entanto, Alane expressou desconforto com a abordagem de Juninho e compartilhou o incidente com outros participantes do reality show, posteriormente acusando-o de assédio publicamente.

A partir desse episódio, fica evidente a necessidade de questionar as implicações sociais e políticas da narrativa pública sobre o assédio sexual, que vai alem dos limites do reality show, e ecoa em questões sociais mais amplas, especialmente em meio aos movimentos #MeToo e à pós-revolução sexual. Devemos nos perguntar: até que ponto estamos construindo uma cultura de denúncia saudável e sustentável para as vítimas, em vez de simplesmente amplificar a narrativa do vitimismo? Afinal, o movimento #MeToo, que começou como uma voz contra o assédio, e agora corre o risco de transformar o mero desconforto em uma espécie de passaporte para a vitimização, obscurecendo assim a força de reais vítimas de assédio e agressões sexuais.

O incidente entre Juninho e Alane revela uma faceta crucial do que constitui assédio, destacando a interação entre flertes e comportamento inadequado em ambientes públicos nos dias de hoje. Nesse cenário, surge a necessidade de uma análise sobre a prática contemporânea de expor publicamente acusações sem comprovações – uma dinâmica na qual, confesso, já estive envolvida no passado (tendo sido, de fato, vítima de assédio na minha infância).

Em meio a eventos aparentemente desconexos, surge uma reflexão sobre a interseção entre o #MeToo, a revolução sexual e o Big Brother Brasil 2024. Uma conexão inesperada pode ser vista no destino de Harvey Weinstein, o produtor de cinema em Hollywood condenado por estupro e agressão sexual, após suas vítimas terem compartilhado suas histórias publicamente. Enquanto nos encontrávamos trancados em casa, evitando o contágio da pandemia, as notícias sobre Weinstein e suas vítimas ecoavam nos telejornais, intercaladas com relatos sobre o avanço implacável do vírus. Nesse momento de reclusão, começamos a nos espelhar no #MeToo, um movimento fortemente influenciado por instituições estadunidenses que rapidamente se tornou global.

Diante desse cenário, surge o Big Brother Brasil 2024 como um microcosmo que reflete de forma surpreendente as complexidades do discurso amoroso contemporâneo. O incidente entre Alane e Juninho ecoa as controvérsias pós-Revolução Sexual, onde a busca por empoderamento se mistura perigosamente com a tentação de abraçar uma narrativa já vista antes — “Vamos, galera, mulheres!” A edição número 20 do Big Brother Brasil, que se destacou como um marco para o empoderamento feminino.

Para compreender o atual cenário de regulação excessiva das interações e investidas sexuais, é imprescindível contextualizá-lo no período pós-revolução sexual. O que outrora era celebrado como um símbolo de liberdade, agora parece estagnar em uma apatia contemplativa. A revolução sexual teve impactos diversos, refletindo as particularidades culturais, políticas e sociais de cada sociedade. Nos Estados Unidos, foi impulsionada por movimentos contraculturais, como o movimento hippie, enquanto na Europa, especialmente na França, destacou-se pela liberalização dos costumes e ênfase na expressão individual, como nos protestos estudantis de 1968 em Paris. No Brasil, ocorreu em meio à ditadura militar, influenciada pelo cenário Tropicalista e musical da época.

Em A História da Sexualidade, Foucault argumenta que, após a Revolução Sexual, a sociedade moderna não se tornou mais liberada sexualmente, mas sim mais reguladora e disciplinadora dos comportamentos sexuais. Em vez disso, ele observa que houve uma intensificação do controle sobre os comportamentos sexuais, com a sociedade moderna exercendo uma vigilância mais cuidadosa e uma disciplina mais rigorosa sobre a sexualidade. Foucault sugere que, por trás da aparente liberação sexual, existe uma rede complexa de poder e controle que regula e normaliza os desejos e práticas sexuais, moldando assim a maneira como a sexualidade é vivenciada e compreendida.

A análise desses fenômenos encontra respaldo em obras como “Theory of the Young-Girl”, do escritor francês Tiqqun, que revelam a mercantilização da intimidade e exploram o surgimento de um “Império”. Esse império, por meio de métodos sutis e medidas preventivas, promove a internalização do controle, passando do policiamento geral para um policiamento individual. A invisibilidade da moral e a onipresença desse novo policiamento tornam o movimento castrador indetectável, disseminando restrições na vida cotidiana de maneira sutil. Isso sugere uma mudança do controle social para o autocontrole individual. O movimento #MeToo exemplifica essa dinâmica. A teoria de Tiqqun examina como a cultura contemporânea, impulsionada pelo consumismo e pela constante exposição midiática, transforma as relações interpessoais em transações comerciais, tornando a intimidade comodificada.

Na mesma linha, a autora e crítica cultural Laura Kipnis, em um ensaio para o jornal The Guardian, analisa a carta anti-#MeToo (endossada por Catherine Deneuve) Kipnis destaca não apenas a subestimação da relevância política do movimento, mas também a legítima preocupação com o impacto potencialmente devastador de acusações infundadas. Ao explorar as nuances do backlash contra o movimento, fala-se também sobre o temor subjacente à regulação excessiva das interações sexuais, especialmente nas fronteiras delicadas do flerte e do humor. Nesse contexto, a defesa da autonomia corporal emerge como uma âncora fundamental para a liberdade feminina, resistindo aos séculos de dominação patriarcal.

Diante da interseção complexa entre o movimento #MeToo, a revolução sexual, e o contexto do BBB 24, torna urgente uma reavaliação dos métodos de denúncia e exposição de casos de assédio. Embora o #MeToo tenha erguido questões de indiscutível importância, inadvertidamente atualmente o movimento transmutou o empoderamento feminino em uma espécie de troféu vitimista, transitando de mão em mão em um jogo cujas regras se perdem na neblina, criando um cenário onde a distinção entre danos reais e simples desconfortos emocionais se dissipa em crimes.

Por fim, ao analisar a pós-revolução sexual e sua relação com a contemporaneidade, torna-se evidente uma intensificação do controle sobre a sexualidade, contradizendo a suposta liberação sexual. Como consequência, a situação entre os participantes do BBB 24, também influenciada pelo movimento #MeToo dos Estados Unidos, ressalta a urgência de uma compreensão mais equilibrada sobre sexualidade e consentimento em uma era em que a sociedade parece preferir evitar diálogos diretos, pois há uma crescente tendência de expressar descontentamento por meio de aparições públicas ou gestos heroicos em locais de visibilidade, de forma que a exposição pública se tornou um dos valores sociais mais importantes, onde o desconforto é explorado como oportunidade. No entanto, minha própria experiência me levou a concluir que somente por meio de diálogos mais profundos, honestos e conscientes podemos construir relacionamentos verdadeiramente saudáveis e, consequentemente, uma sociedade mais justa, coesa e equilibrada.

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TIO NERGES E DOM PEDRO, por Frutuoso Chaves

Dom Pedro II em frente à Casa de Comércio e Cadeia de Pilar (Imagem copiada do livro 'A chegada de D. Pedro II à Pilar e outros Poemas Pilarenses', de Antônio Costta)

Dom Pedro II em frente à Casa de Comércio e Cadeia de Pilar (Imagem copiada do livro ‘A chegada de D. Pedro II à Pilar e outros Poemas Pilarenses’, de Antônio Costta)

Deram o nome de Pedro II à pracinha inaugurada na saída de Pilar. Ou na entrada, se o percurso for feito desde Café do Vento, na BR-230, em direção ao Baixo Vale do Paraíba.

Com a denominação, os pilarenses trataram de homenagear o primeiro governante do País, no exercício do cargo, a pôr os pés na cidadezinha que teve o progresso sepultado pelo transcurso dos anos. Não menos, pelo descaso que dela afastou a estrada entre João Pessoa e Campina Grande e, de quebra, ainda matou os trens de carga e passageiros.

O segundo foi Bolsonaro, na campanha sem êxito para a reeleição. Desceu do helicóptero, apertou umas tantas mãos, acenou para o povo e se mandou. Também, ali, a contagem dos votos, meses depois, daria a vitória ao outro. Mas essa é outra história.

Nos idos de 1859, Pilar detinha importância suficiente para a visita imperial. Era uma espécie de Capital da Zona Canavieira numa Paraíba que em muito contribuía com o fabrico do açúcar, então o produto de maior peso da pauta de exportações do Nordeste.

O Imperador chegou antes do esperado, na tarde de 26 de dezembro. A Casa de Câmara estava fechada e as pessoas ainda se preparavam para recepcioná-lo quando a comitiva irrompeu lá para as bandas do “Compra Fiado”, trecho mais pobre da Vila, com o nome assim justificado.

A Rua Grande, quase deserta, viu passar o cortejo a cavalo e uma só carruagem: aquela na qual a Imperatriz, dona Teresa Cristina, seguia o marido, tomando poeira. Participavam do grupo numeroso o Comandante da Guarda Nacional, um Ministro do Império e, é claro, o Presidente da Província Ambrósio Leitão da Cunha.

A saída da Capital dera-se ao nascer do Sol com parada para o café no Engenho São João, do Barão de Maraú. Conta-se que o Barão, longe do padrão intelectual que o título sugere, ladeava Dom Pedro no momento em que este, próximo a um pé de fruta-pão em plena carga, olhou para o céu nublado e observou: “A atmosfera está carregada”. Ao que o anfitrião retrucou: “Vossa Majestade não viu nada. Carregada estava no ano passado. Era cada atmosferão desse tamanho”.

Acho que é em “Meus verdes anos”, seu livro de memória, que José Lins do Rego fala de uma velha professora de Juripiranga orgulhosa do vestido usado na recepção ao Imperador e ainda preservado, com jeito de novo.

Estive na pracinha há poucos dias. Canteiros florescendo, bancos pintados e postes com lâmpadas de neon mais vivas e radiantes do que as das ruas centrais. Ali, não pensei em Dom Pedro, como penso agora. O que me veio à lembrança foi a bodega do Tio Boanerges, na esquina da Rua do Silva. Imperador algum nos faz sentir a falta que sentimos dos entes queridos. Um só Boanerges me vale mais do que mil reis e rainhas.

A fachada é a mesma. Mudou a cor e, também, a disposição dos artigos expostos à venda não mais em prateleiras atrás do balcão com a clássica balança de pratos e, sim, em gôndolas percorridas pela freguesia para as compras do tipo “pegue e pague”. O supermercado, de fato, veio para fazer moda.

À pequena distância, a casa da querida Lourdes, a jovem em quem meu tio pôs os sentidos. Lembro do dia em que ele carregou a moça, para desespero da minha mãe temerosa da raiva daqueles que o irmão viria a ter como sogro e cunhados. Mas tudo, felizmente, logo se pacificaria. Do casamento nasceram três meninas branquinhas tão belas quanto a mãe o foi no esplendor da juventude.

Sangue bom o desse Boanerges gerador de mulheres bonitas que, aliás, também vieram para botar no mundo seres bem próximos dos anjos. Clarissinha, a primeira neta, é uma festa para os olhos. Bia, a outra, ainda muito novinha e a quem apenas vi nos seus primeiros passos, aparece-me no Facebook com ares de princesa, dessas dos contos de fada. Dom Pedro II? Pois sim. Uma visita a Pilar vale mesmo é por essas lembranças.

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O SABOR DO PERIGO, por Frutuoso Chaves

Imagem do sindal.org.br • Credito: Isabelle Ribeiro

Para começo de conversa, um conselho de amigo. Não tente reproduzir em casa o tempero das ruas. Creia-me, não conseguirá. Digo mais: você nem chegará ao pão na chapa de boteco, aquele das seis da manhã com café pingado, se o preparo acontecer no santo recesso do lar.

Desista. Certos condimentos somente alcançam a plenitude quando feitos de mistérios e riscos, ingredientes geralmente faltosos às panelas domésticas em cozinhas assépticas como salas cirúrgicas.

Um velho amigo definiu à perfeição o sarapatel que lhe ia à boca numa barraca de higiene duvidosa, antes do nascer do sol: “Tem o sabor da emoção”. Com as licenças da juventude, ele havia saído morto de fome daquilo que a minha e a avó de vocês, entre a esconjuração e o sinal da cruz, tratariam por casa de tolerância.

Por falar nisso, aquele sobrado da rua de comércio então vibrante à luz solar, mas um templo noturno da boemia, ganhou seu respeito quando a proprietária insatisfeita com o calote institucionalizado afixou o cartaz na parede: “Proibido o ingresso de cachorro, menor de idade, jornalista e político”.

Como tantas ruas antigas, aqui e lá fora, aquela, de fato, tinha duas caras e duas almas, umas para o sol e outras para a lua. Os de passadas gerações, provadores de seus quitutes, bem o sabem.

Agora, responda, antes que percamos o rumo da conversa: o frango assado em casa tem o mesmo sabor do galeto das esquinas? Duvi-dê-odó, com o perdão dessa outra expressão das avós. E o cachorro-quente doméstico? E o pernil caseiro compara-se ao fatiado num pão francês chapado e oferecido pela garçonete depois da meia-noite e de uns cinco chopes?

Pois é, minhas e meus camaradas. Faltam aos pratos domésticos o molho e o segredo dos bares, lanchonetes e tendas do comércio ambulante. Coxinhas, pastéis, bolinhos de bacalhau, casquinhas de caranguejo, batata frita, ovos cozidos (até eles) têm o santuário das ruas. Sei de muita gente para a qual nem a hotelaria de cinco estrelas consegue reproduzir a contento os pratos e aperitivos típicos das barracas e botequins de pequena grandeza com chapa e fogão ocultos, misteriosos, mal percebidos.

A convocação para reforçar a equipe da Sucursal d’O Globo, no Recife, antes e depois da visita de João Paulo II, obrigou-me a viver de restaurante por duas semanas. Ao cabo da primeira eu já não mais suportava o que me vinha à mesa, apesar do bom e amplo serviço a la carte do então conceituado Pedro I. Fui salvo pelo colega Inaldo Sampaio que me apresentou ao Chambaril de Dona Maria, uma palhoça em terreno baldio próximo da Faculdade de Direito aonde se chegava por um buraco enorme aberto no muro. A superlotação do lugar bem falava daquela mão de fada.

Tempo depois, ao visitar duas antigas vizinhas da minha mãe, moças viajadas com experiências de Ásia e Europa, fui surpreendido com suas boas referências àquele prato. Desculpadas a pose e a afetação que não conseguiam conter quando no trato dessas viagens, espantaram-me ao dar ao ossobuco pernambucano o tempero de um restaurante da Lombardia. Pronto, foi o que me faltava para perceber que as palhoças também podem ter o apego dos esnobes.

Ah, o caldo de camarão da recifense Rua do Riachuelo… Não mais do que um balcãozinho de fórmica embaixo do lance de escada no térreo de um sobrado aos pedaços. No caixa, a mulher com sete meses de barriga. No fogão de uma só boca, às voltas com o caldeirão, o marido recém-demitido em razão do fechamento do Banco do Estado de Pernambuco por obra e graça de Miguel Arraes.

A raiva e o propósito do tiro no governador já haviam sido substituídos pela satisfação daquele moço com a fila enorme na calçada. Funcionava assim: você entrava, comprava dela uma ficha, buscava a cachaça contida em um filtro de barro tendo à mão um copinho de plástico feito para café e, finalmente, o caldo servido por ele em semelhante copo, divinamente saboroso. De quebra, a azeitona num palito e, graciosamente, também, uma fatia de limão. O toque ácido seria o símbolo da superação e da resistência. Afinal, o casal fizera uma limonada do fruto que colhera da sorte madrasta.

Acho que assim tem sido com muitos dos que hoje vivem de pães assados, sarapatéis, caldinhos e petiscos diversos. A vida severina que deles subtraiu o estudo, o bom emprego e a boa sina não impediu que de melhor forma se houvessem com seus fogões e chapas, muitas delas lavadas não se sabe com quais cuidados nem com que frequência. Os sabores incomparáveis que nos oferecem talvez advenham disso: do suor, do esforço e do propósito de servir, no mais das vezes, aos perdidos nas noites.

Seria uma irresponsabilidade afirmar que todos não primam pela limpeza nem pelo bom acondicionamento daquilo que fritam, assam ou aferventam. Ninguém, em seu bom senso, é capaz de tamanho disparate. Há deles muito bem asseados, do mesmo modo como há restaurante bem estabelecido na mira ocasional da Vigilância Sanitária. Quem disso não sabe?

Mas o jovem que um dia eu fui ainda teima, eventualmente, em dar ouvidos à avaliação de um velho companheiro de batente para quem a melhor feijoada seria aquela com ambulância à porta. Eventualmente, repito, pois de uns tempos para cá me tem falado mais alto o septuagenário que agora foge das intoxicações como o diabo da cruz. Ainda bem.

É BOM ESCLARECER
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