PERIGO E DESCONFORTO, por Sofia Pimentel

Conversa entre Juninho e Alane que resultou em acusação de assédio (cena do BBB 24 com imagem copiada de transmissão da TV Globo em canal aberto)

Há uma distinção entre estar verdadeiramente em perigo e meramente sentir-se desconfortável, uma distinção que parece ter escapado à consciência das mulheres atualmente. Essa dicotomia é evidenciada na interação entre os participantes Alane e Juninho no Big Brother Brasil 2024. Em meio a uma festa no programa, o motoboy Juninho manifestou interesse sexual pela bailarina Alane. No entanto, Alane expressou desconforto com a abordagem de Juninho e compartilhou o incidente com outros participantes do reality show, posteriormente acusando-o de assédio publicamente.

A partir desse episódio, fica evidente a necessidade de questionar as implicações sociais e políticas da narrativa pública sobre o assédio sexual, que vai alem dos limites do reality show, e ecoa em questões sociais mais amplas, especialmente em meio aos movimentos #MeToo e à pós-revolução sexual. Devemos nos perguntar: até que ponto estamos construindo uma cultura de denúncia saudável e sustentável para as vítimas, em vez de simplesmente amplificar a narrativa do vitimismo? Afinal, o movimento #MeToo, que começou como uma voz contra o assédio, e agora corre o risco de transformar o mero desconforto em uma espécie de passaporte para a vitimização, obscurecendo assim a força de reais vítimas de assédio e agressões sexuais.

O incidente entre Juninho e Alane revela uma faceta crucial do que constitui assédio, destacando a interação entre flertes e comportamento inadequado em ambientes públicos nos dias de hoje. Nesse cenário, surge a necessidade de uma análise sobre a prática contemporânea de expor publicamente acusações sem comprovações – uma dinâmica na qual, confesso, já estive envolvida no passado (tendo sido, de fato, vítima de assédio na minha infância).

Em meio a eventos aparentemente desconexos, surge uma reflexão sobre a interseção entre o #MeToo, a revolução sexual e o Big Brother Brasil 2024. Uma conexão inesperada pode ser vista no destino de Harvey Weinstein, o produtor de cinema em Hollywood condenado por estupro e agressão sexual, após suas vítimas terem compartilhado suas histórias publicamente. Enquanto nos encontrávamos trancados em casa, evitando o contágio da pandemia, as notícias sobre Weinstein e suas vítimas ecoavam nos telejornais, intercaladas com relatos sobre o avanço implacável do vírus. Nesse momento de reclusão, começamos a nos espelhar no #MeToo, um movimento fortemente influenciado por instituições estadunidenses que rapidamente se tornou global.

Diante desse cenário, surge o Big Brother Brasil 2024 como um microcosmo que reflete de forma surpreendente as complexidades do discurso amoroso contemporâneo. O incidente entre Alane e Juninho ecoa as controvérsias pós-Revolução Sexual, onde a busca por empoderamento se mistura perigosamente com a tentação de abraçar uma narrativa já vista antes — “Vamos, galera, mulheres!” A edição número 20 do Big Brother Brasil, que se destacou como um marco para o empoderamento feminino.

Para compreender o atual cenário de regulação excessiva das interações e investidas sexuais, é imprescindível contextualizá-lo no período pós-revolução sexual. O que outrora era celebrado como um símbolo de liberdade, agora parece estagnar em uma apatia contemplativa. A revolução sexual teve impactos diversos, refletindo as particularidades culturais, políticas e sociais de cada sociedade. Nos Estados Unidos, foi impulsionada por movimentos contraculturais, como o movimento hippie, enquanto na Europa, especialmente na França, destacou-se pela liberalização dos costumes e ênfase na expressão individual, como nos protestos estudantis de 1968 em Paris. No Brasil, ocorreu em meio à ditadura militar, influenciada pelo cenário Tropicalista e musical da época.

Em A História da Sexualidade, Foucault argumenta que, após a Revolução Sexual, a sociedade moderna não se tornou mais liberada sexualmente, mas sim mais reguladora e disciplinadora dos comportamentos sexuais. Em vez disso, ele observa que houve uma intensificação do controle sobre os comportamentos sexuais, com a sociedade moderna exercendo uma vigilância mais cuidadosa e uma disciplina mais rigorosa sobre a sexualidade. Foucault sugere que, por trás da aparente liberação sexual, existe uma rede complexa de poder e controle que regula e normaliza os desejos e práticas sexuais, moldando assim a maneira como a sexualidade é vivenciada e compreendida.

A análise desses fenômenos encontra respaldo em obras como “Theory of the Young-Girl”, do escritor francês Tiqqun, que revelam a mercantilização da intimidade e exploram o surgimento de um “Império”. Esse império, por meio de métodos sutis e medidas preventivas, promove a internalização do controle, passando do policiamento geral para um policiamento individual. A invisibilidade da moral e a onipresença desse novo policiamento tornam o movimento castrador indetectável, disseminando restrições na vida cotidiana de maneira sutil. Isso sugere uma mudança do controle social para o autocontrole individual. O movimento #MeToo exemplifica essa dinâmica. A teoria de Tiqqun examina como a cultura contemporânea, impulsionada pelo consumismo e pela constante exposição midiática, transforma as relações interpessoais em transações comerciais, tornando a intimidade comodificada.

Na mesma linha, a autora e crítica cultural Laura Kipnis, em um ensaio para o jornal The Guardian, analisa a carta anti-#MeToo (endossada por Catherine Deneuve) Kipnis destaca não apenas a subestimação da relevância política do movimento, mas também a legítima preocupação com o impacto potencialmente devastador de acusações infundadas. Ao explorar as nuances do backlash contra o movimento, fala-se também sobre o temor subjacente à regulação excessiva das interações sexuais, especialmente nas fronteiras delicadas do flerte e do humor. Nesse contexto, a defesa da autonomia corporal emerge como uma âncora fundamental para a liberdade feminina, resistindo aos séculos de dominação patriarcal.

Diante da interseção complexa entre o movimento #MeToo, a revolução sexual, e o contexto do BBB 24, torna urgente uma reavaliação dos métodos de denúncia e exposição de casos de assédio. Embora o #MeToo tenha erguido questões de indiscutível importância, inadvertidamente atualmente o movimento transmutou o empoderamento feminino em uma espécie de troféu vitimista, transitando de mão em mão em um jogo cujas regras se perdem na neblina, criando um cenário onde a distinção entre danos reais e simples desconfortos emocionais se dissipa em crimes.

Por fim, ao analisar a pós-revolução sexual e sua relação com a contemporaneidade, torna-se evidente uma intensificação do controle sobre a sexualidade, contradizendo a suposta liberação sexual. Como consequência, a situação entre os participantes do BBB 24, também influenciada pelo movimento #MeToo dos Estados Unidos, ressalta a urgência de uma compreensão mais equilibrada sobre sexualidade e consentimento em uma era em que a sociedade parece preferir evitar diálogos diretos, pois há uma crescente tendência de expressar descontentamento por meio de aparições públicas ou gestos heroicos em locais de visibilidade, de forma que a exposição pública se tornou um dos valores sociais mais importantes, onde o desconforto é explorado como oportunidade. No entanto, minha própria experiência me levou a concluir que somente por meio de diálogos mais profundos, honestos e conscientes podemos construir relacionamentos verdadeiramente saudáveis e, consequentemente, uma sociedade mais justa, coesa e equilibrada.

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TIO NERGES E DOM PEDRO, por Frutuoso Chaves

Dom Pedro II em frente à Casa de Comércio e Cadeia de Pilar (Imagem copiada do livro 'A chegada de D. Pedro II à Pilar e outros Poemas Pilarenses', de Antônio Costta)

Dom Pedro II em frente à Casa de Comércio e Cadeia de Pilar (Imagem copiada do livro ‘A chegada de D. Pedro II à Pilar e outros Poemas Pilarenses’, de Antônio Costta)

Deram o nome de Pedro II à pracinha inaugurada na saída de Pilar. Ou na entrada, se o percurso for feito desde Café do Vento, na BR-230, em direção ao Baixo Vale do Paraíba.

Com a denominação, os pilarenses trataram de homenagear o primeiro governante do País, no exercício do cargo, a pôr os pés na cidadezinha que teve o progresso sepultado pelo transcurso dos anos. Não menos, pelo descaso que dela afastou a estrada entre João Pessoa e Campina Grande e, de quebra, ainda matou os trens de carga e passageiros.

O segundo foi Bolsonaro, na campanha sem êxito para a reeleição. Desceu do helicóptero, apertou umas tantas mãos, acenou para o povo e se mandou. Também, ali, a contagem dos votos, meses depois, daria a vitória ao outro. Mas essa é outra história.

Nos idos de 1859, Pilar detinha importância suficiente para a visita imperial. Era uma espécie de Capital da Zona Canavieira numa Paraíba que em muito contribuía com o fabrico do açúcar, então o produto de maior peso da pauta de exportações do Nordeste.

O Imperador chegou antes do esperado, na tarde de 26 de dezembro. A Casa de Câmara estava fechada e as pessoas ainda se preparavam para recepcioná-lo quando a comitiva irrompeu lá para as bandas do “Compra Fiado”, trecho mais pobre da Vila, com o nome assim justificado.

A Rua Grande, quase deserta, viu passar o cortejo a cavalo e uma só carruagem: aquela na qual a Imperatriz, dona Teresa Cristina, seguia o marido, tomando poeira. Participavam do grupo numeroso o Comandante da Guarda Nacional, um Ministro do Império e, é claro, o Presidente da Província Ambrósio Leitão da Cunha.

A saída da Capital dera-se ao nascer do Sol com parada para o café no Engenho São João, do Barão de Maraú. Conta-se que o Barão, longe do padrão intelectual que o título sugere, ladeava Dom Pedro no momento em que este, próximo a um pé de fruta-pão em plena carga, olhou para o céu nublado e observou: “A atmosfera está carregada”. Ao que o anfitrião retrucou: “Vossa Majestade não viu nada. Carregada estava no ano passado. Era cada atmosferão desse tamanho”.

Acho que é em “Meus verdes anos”, seu livro de memória, que José Lins do Rego fala de uma velha professora de Juripiranga orgulhosa do vestido usado na recepção ao Imperador e ainda preservado, com jeito de novo.

Estive na pracinha há poucos dias. Canteiros florescendo, bancos pintados e postes com lâmpadas de neon mais vivas e radiantes do que as das ruas centrais. Ali, não pensei em Dom Pedro, como penso agora. O que me veio à lembrança foi a bodega do Tio Boanerges, na esquina da Rua do Silva. Imperador algum nos faz sentir a falta que sentimos dos entes queridos. Um só Boanerges me vale mais do que mil reis e rainhas.

A fachada é a mesma. Mudou a cor e, também, a disposição dos artigos expostos à venda não mais em prateleiras atrás do balcão com a clássica balança de pratos e, sim, em gôndolas percorridas pela freguesia para as compras do tipo “pegue e pague”. O supermercado, de fato, veio para fazer moda.

À pequena distância, a casa da querida Lourdes, a jovem em quem meu tio pôs os sentidos. Lembro do dia em que ele carregou a moça, para desespero da minha mãe temerosa da raiva daqueles que o irmão viria a ter como sogro e cunhados. Mas tudo, felizmente, logo se pacificaria. Do casamento nasceram três meninas branquinhas tão belas quanto a mãe o foi no esplendor da juventude.

Sangue bom o desse Boanerges gerador de mulheres bonitas que, aliás, também vieram para botar no mundo seres bem próximos dos anjos. Clarissinha, a primeira neta, é uma festa para os olhos. Bia, a outra, ainda muito novinha e a quem apenas vi nos seus primeiros passos, aparece-me no Facebook com ares de princesa, dessas dos contos de fada. Dom Pedro II? Pois sim. Uma visita a Pilar vale mesmo é por essas lembranças.

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O SABOR DO PERIGO, por Frutuoso Chaves

Imagem do sindal.org.br • Credito: Isabelle Ribeiro

Para começo de conversa, um conselho de amigo. Não tente reproduzir em casa o tempero das ruas. Creia-me, não conseguirá. Digo mais: você nem chegará ao pão na chapa de boteco, aquele das seis da manhã com café pingado, se o preparo acontecer no santo recesso do lar.

Desista. Certos condimentos somente alcançam a plenitude quando feitos de mistérios e riscos, ingredientes geralmente faltosos às panelas domésticas em cozinhas assépticas como salas cirúrgicas.

Um velho amigo definiu à perfeição o sarapatel que lhe ia à boca numa barraca de higiene duvidosa, antes do nascer do sol: “Tem o sabor da emoção”. Com as licenças da juventude, ele havia saído morto de fome daquilo que a minha e a avó de vocês, entre a esconjuração e o sinal da cruz, tratariam por casa de tolerância.

Por falar nisso, aquele sobrado da rua de comércio então vibrante à luz solar, mas um templo noturno da boemia, ganhou seu respeito quando a proprietária insatisfeita com o calote institucionalizado afixou o cartaz na parede: “Proibido o ingresso de cachorro, menor de idade, jornalista e político”.

Como tantas ruas antigas, aqui e lá fora, aquela, de fato, tinha duas caras e duas almas, umas para o sol e outras para a lua. Os de passadas gerações, provadores de seus quitutes, bem o sabem.

Agora, responda, antes que percamos o rumo da conversa: o frango assado em casa tem o mesmo sabor do galeto das esquinas? Duvi-dê-odó, com o perdão dessa outra expressão das avós. E o cachorro-quente doméstico? E o pernil caseiro compara-se ao fatiado num pão francês chapado e oferecido pela garçonete depois da meia-noite e de uns cinco chopes?

Pois é, minhas e meus camaradas. Faltam aos pratos domésticos o molho e o segredo dos bares, lanchonetes e tendas do comércio ambulante. Coxinhas, pastéis, bolinhos de bacalhau, casquinhas de caranguejo, batata frita, ovos cozidos (até eles) têm o santuário das ruas. Sei de muita gente para a qual nem a hotelaria de cinco estrelas consegue reproduzir a contento os pratos e aperitivos típicos das barracas e botequins de pequena grandeza com chapa e fogão ocultos, misteriosos, mal percebidos.

A convocação para reforçar a equipe da Sucursal d’O Globo, no Recife, antes e depois da visita de João Paulo II, obrigou-me a viver de restaurante por duas semanas. Ao cabo da primeira eu já não mais suportava o que me vinha à mesa, apesar do bom e amplo serviço a la carte do então conceituado Pedro I. Fui salvo pelo colega Inaldo Sampaio que me apresentou ao Chambaril de Dona Maria, uma palhoça em terreno baldio próximo da Faculdade de Direito aonde se chegava por um buraco enorme aberto no muro. A superlotação do lugar bem falava daquela mão de fada.

Tempo depois, ao visitar duas antigas vizinhas da minha mãe, moças viajadas com experiências de Ásia e Europa, fui surpreendido com suas boas referências àquele prato. Desculpadas a pose e a afetação que não conseguiam conter quando no trato dessas viagens, espantaram-me ao dar ao ossobuco pernambucano o tempero de um restaurante da Lombardia. Pronto, foi o que me faltava para perceber que as palhoças também podem ter o apego dos esnobes.

Ah, o caldo de camarão da recifense Rua do Riachuelo… Não mais do que um balcãozinho de fórmica embaixo do lance de escada no térreo de um sobrado aos pedaços. No caixa, a mulher com sete meses de barriga. No fogão de uma só boca, às voltas com o caldeirão, o marido recém-demitido em razão do fechamento do Banco do Estado de Pernambuco por obra e graça de Miguel Arraes.

A raiva e o propósito do tiro no governador já haviam sido substituídos pela satisfação daquele moço com a fila enorme na calçada. Funcionava assim: você entrava, comprava dela uma ficha, buscava a cachaça contida em um filtro de barro tendo à mão um copinho de plástico feito para café e, finalmente, o caldo servido por ele em semelhante copo, divinamente saboroso. De quebra, a azeitona num palito e, graciosamente, também, uma fatia de limão. O toque ácido seria o símbolo da superação e da resistência. Afinal, o casal fizera uma limonada do fruto que colhera da sorte madrasta.

Acho que assim tem sido com muitos dos que hoje vivem de pães assados, sarapatéis, caldinhos e petiscos diversos. A vida severina que deles subtraiu o estudo, o bom emprego e a boa sina não impediu que de melhor forma se houvessem com seus fogões e chapas, muitas delas lavadas não se sabe com quais cuidados nem com que frequência. Os sabores incomparáveis que nos oferecem talvez advenham disso: do suor, do esforço e do propósito de servir, no mais das vezes, aos perdidos nas noites.

Seria uma irresponsabilidade afirmar que todos não primam pela limpeza nem pelo bom acondicionamento daquilo que fritam, assam ou aferventam. Ninguém, em seu bom senso, é capaz de tamanho disparate. Há deles muito bem asseados, do mesmo modo como há restaurante bem estabelecido na mira ocasional da Vigilância Sanitária. Quem disso não sabe?

Mas o jovem que um dia eu fui ainda teima, eventualmente, em dar ouvidos à avaliação de um velho companheiro de batente para quem a melhor feijoada seria aquela com ambulância à porta. Eventualmente, repito, pois de uns tempos para cá me tem falado mais alto o septuagenário que agora foge das intoxicações como o diabo da cruz. Ainda bem.

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DIA DO OBRIGADO, por Frutuoso Chaves

Postagens sucessivas nas redes sociais lembram o transcurso, neste 11 de janeiro, do Dia Internacional do Obrigado. Aprendemos que o termo é um belo traço da alma e da língua portuguesas. Coisa de séculos.

Enquanto outros mortais se limitariam a expressar o sentimento de gratidão com meras interjeições (thanks, danke, merci, gracias) os herdeiros da língua de Camões, em quatro sílabas apenas, dispõem-se a retribuir, obrigatoriamente, a atenção, a gentileza, o serviço, ou o favor então recebidos de alguém.

O obrigado, ou obrigada, teria este significado: “Sinto-me obrigado(a) à retribuição”. Quem já não leu crônicas, ou ouviu mensagens saborosas com esse tema? E todas com louvores à concisão e à pureza da língua que herdamos.

Eis que leitura recente me conta outra história e me corta o barato. A palavra, com origem indo-europeia (leyg, de ligar), tinha uso formal no fim das cartas de antigamente, com termos exageradamente rebuscados aos olhos de hoje. Coisa do gênero: “Muito venerador e obrigado (ligado) a Vossa Mercê”. Viria daí, também, o “merci” francês.

Com o tempo, o “obrigado” pulou de categoria e reinventou-se, ao que leio no Vortex Magazine, um portal de língua portuguesa dedicado a temas relacionados à sociedade, à cultura, às viagens e à tecnologia, tal como se apresenta.

A VortexMag bebe nas fontes de linguistas e pesquisadores portugueses, a exemplo de Marco Neves e Fernando Venâncio, para garantir que o termo “obrigado” somente tem registro escrito, com o sentido atual, a partir do Século 19. Ou seja, Camões nunca agradeceu a ninguém desse jeito. Quanto a mim, com as minhas carências emocionais e culturais, prefiro o sentido moderno da palavra. Afinal de contas, o uso consagra, não é?

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O VELHO E O MENINO, por Frutuoso Chaves

Calendário de 1953, comemorativo dos 50 anos da Ford

As viradas dos anos trazem-me sempre à memória aquelas antigas figuras de calendário: as do velhinho e do menino, o primeiro a se despedir do tempo e o segundo a nele ingressar. Mas não são quadros difusos o que me vem à lembrança nessas ocasiões. É, ao invés disso, uma gravura específica que suponho ter visto, pela primeira vez, na Farmácia de Seu Israel, no Pilar da minha infância. Apenas suponho, dada a possibilidade de tê-la contemplado em outro ambiente.

É provável que, sem consciência disso, haja eu, então, associado a imagem em carne e osso do velho farmacêutico à do Matusalém de papel e tinta. Dono da calvície mais completa que alguém possa merecer, o primeiro deles ainda exibia o peso e os males da idade numa corcunda impressionante. Tinha na coluna as dobras de um anzol. Espantosamente, porém, tais defeitos sublinhavam suas virtudes. Afável, cortês, obsequioso, fizera-se admirado e benquisto pela cidade inteira.

Eu nunca soube de uma viva alma que dele não gostasse. O saudoso professor José Augusto de Brito, um dos seus muitos admiradores, contava que, de tão bom, Seu Israel, ao pressentir a morte, tratou de esconder a caderneta de fiados para que os herdeiros não fossem cobrar aquilo que os amigos mais pobres não poderiam pagar. A farmácia durou o tempo exato da existência do dono. Morreram ambos quase com o mesmo suspiro.

Está explicado porque eu passei a unificar os dois velhinhos: o boticário e o da gravura. Isso também esclarece porque, até hoje, me compadeço da figura provecta tomada como símbolo da morte do Ano Velho. A pintura tinha a resignação, o corpo alquebrado e o olhar triste de Seu Israel. Daí eu acreditar que estivesse pregada à parede da pequena farmácia. Não, noutro lugar qualquer. Estaria, isto sim, ali, no seu templo, à semelhança do dono da casa.

Salvo raríssimas exceções, não maldigo um ano que se encerra. Afinal, nada é totalmente perfeito, ou imperfeito. Por essa mesma razão, nunca me dispus a ver o Ano Novo como prenúncio da felicidade plena e absoluta.

Mas, como você, também sou feito de fé e esperança. Torço para que atravessemos o Ano Novo sem maiores problemas com a subsistência, com a saúde, com a família e com as amizades. Digam os anjos Amém.

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ENTÃO, É NATAL? por Frutuoso Chaves

Imagem: catolica.blogspot.com

Leio que o 25 de dezembro, do calendário romano, é data improvável. Não, Cristo não teria nascido em tempo tão frio, porquanto o evento não condiz com dois relatos bíblicos: o de pastores e rebanhos ao relento e o do censo determinado por César.

Os dirigentes romanos e judeus estavam longe de ser burros. Tirariam pouca gente de suas casas para jornadas penosas até Belém com temperaturas próximas, ou abaixo de zero, como ocorre, até os dias de hoje, naquelas paragens. E, ainda por cima, para dar nome e endereço ao governo e seus cobradores de impostos.

Tampouco, os pastores contemplariam estrela cadente, em meio ao gado, bichos e seus donos a céu aberto, num frito de quebrar ossos. Nesta época do ano, bois, vacas, jumentos e ovelhas permaneciam (e ainda permanecem) nos estábulos.

Mas, ouçamos o minucioso Lucas: ”Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Esse primeiro recenseamento foi feito quando Quirínio era governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Subiu também José, da Galiléia, da cidade de Nazaré, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, para alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam ali, chegou o tempo em que ela havia de dar à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro de casa…” (Lucas 2:1-7).

Êpa! Primogênito? Então, houve outros?

Outra coisa que não parece bater bem é este Cristo loiro, de olhos azuis. Nem, em outra hipótese, este branquelo de olhos e cabelos castanhos, conforme retratado durante séculos, desde os templos da Europa até a Paróquia de Nossa Senhora del Pilar (assim mesmo, espanholada), na terra pequena, pobre e sofrida de José Lins do Rego.

Repetindo: não combina bem com a razoabilidade um Cristo branco em terra de morenos, logo ali, na beirada da África. Nem natais nevados em verão tropical, como por aqui são celebrados, com pinheiros de plástico e gelo de algodão.

Nunca fui ao ponto de enfeitar xique-xiques, mas sempre duvidei, desde muito novo, deste Papai Noel de barba branca, botas de cano alto, luvas e roupa ridiculamente vermelha num calor de derreter juízo. Esse camarada gordo pra dedéu que voa de trenó e entra por chaminés.

Há muito suspeitei de que sempre estivemos a comprar produto errado, artigo falso. Não é nem nunca foi nosso o Merry Christmas desejado ao próximo . É mercadoria alheia.

Além do mais, entendo que não seria menos santo um Cristo de pele morena e cabelos crespos. Sou, porém, um sujeito que respeita a opinião alheia. Cada um com sua fé e suas crenças.

Então, beijo para quem for de beijo, abraço para quem for de abraço e Feliz Natal para os que assim entendam a data e sua inspiração.

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A GEMA NEGRA, por Frutuoso Chaves

Imagem: Freepik

Momento do almoço, mas decidiu aguardar uma fome tão atrasada quanto o trem tomado, duas horas antes, na Capital, a fim de repetir o percurso matutino de todas as segundas-feiras até a fazendinha herdada do pai.

A parada naquela estação, a meio caminho do seu destino, teria ocorrido uns 40 minutos antes se o maquinista houvesse mantido a marcha habitual. Bem que percebera, desde a saída, os espirros mais lentos da chaminé e o chiado do vapor liberado em lufadas mais longas e compassadas. Era como se a máquina estivesse com preguiça.

“Café com pão, café com pão, café com pão”… Os versos de Bandeira, os do “Trem de Ferro”, lhe chegaram com a ânsia dos apressados: “Voa, fumaça. Corre, cerca. Ai, seu foguista, bota fogo na fornalha”.

Mas, fazer o quê, a não ser relaxar, aproveitar o tempo, a paisagem e o entra e sai das pessoas em cada vagão. Lá estavam, como sempre, os vendedores de tapioca, cocada, castanha, amendoim, todos com freguesia cativa entre os viajantes da segunda classe. Estes dispunham de assentos duros de madeira no fim do comboio, ao contrário do seu, acolchoado e macio, em vagão mais à frente, novo e bem cuidado.

E lá vinha o moço de farda e quepe com o malote dos Correios. Encomendas, documentos, correspondências amorosas e comerciais também tomavam o trem, naquele instante, com endereços ditados pelas urgências do comércio e da indústria, ou pelas aflições do peito com suas carências e saudades.

Bem que gostava daquele movimento, estação após estação. Ora descia gente para o reencontro e os abraços, ora embarcava com o choro das despedidas. E ainda havia passageiros como ele, viajantes de percursos repetidos para a labuta longe de casa, com retornos aos fins de semana.

Não conseguia entender a razão de sua preferência, em meio a tantas outras paradas, por aquele lugar. A saleta do chefe com mesinha, cadeira, telefone e telégrafo ladeava o guichê voltado para a plataforma de embarque e desembarque, tudo em linha reta e sob o mesmo telhado de duas águas. Por fim, a sala de espera com poucos bancos compunha, tal e qual, os traços das demais estações com aquele tamanho. E as maiores eram bem parecidas.

Algo, porém, diferenciava aquela estaçãozinha. Talvez fosse o aroma forte e gostoso das cajazeiras que por ali floresciam com certa abundância. Talvez, a encosta suave e bem próxima do morro em cujo cume se erguiam três casinhas avarandadas. Ou, quem sabe, a paisagem vista das janelas à direita do vagão em que estivesse quando no rumo da fazenda: uma linha de eucaliptos e, por trás dela, as águas mansas daquele rio. Tinha esse quadro na mente e, fosse pintor, trataria de reproduzi-lo em moldura real, concreta.

De tanto ir e vir e de tanto se enamorar do que ali via, terminou por querer bem ao moço dos Correios, ao menino da cocada, ao guarda-freios encarregado de mover a agulha para fazer seu trem tomar a linha de Pernambuco e ao chefe da estação, Seu Inácio. Aprendeu cada nome com o tempo ao escutar seus atendimentos e chamados. E passou a dar a cada um a importância atribuída ao conjunto da paisagem com seu relevo, árvores, águas, casas e cores. Nenhum deles, a seu ver, caberia fora dali. Eram todos elementos indispensáveis à composição da mesma e adorável cena.

Deu para puxar conversas curtas, da janela mesmo, antes de o trem retomar o percurso, comprar as cocadas que às vezes não comia, perguntar da saúde de um ou de outro. E passou a explicar as razões das viagens semanais aos que sobre isso perguntassem. Ele e seus interlocutores já se tratavam como velhos amigos.

Até que naquele dia de trem preguiçoso um par de olhos escuros como uma noite sem lua quase o deixou mudo. Teve o tempo do aceno e de perceber, felicíssimo, a retribuição da moça. Caminho retomado, foi para o vagão-restaurante e mal comeu do prato que lhe foi servido, apesar do bom preparo, como de costume.

A menina dos olhos negros não lhe saiu da cabeça a semana inteira. Mesmo quando tratou da venda de algumas reses, da colheita e do transporte de cana para a usina de açúcar da região. A fazenda que lhe coube por herança resultara da rejeição das duas irmãs afeitas à beira-mar e mais interessadas nos negócios urbanos da família. Pensou em vendê-la para aplicar parte do dinheiro na ampliação do escritório de advocacia que já começava a ganhar fama. Entretanto, tomou gosto pela agricultura e a pecuária de pequena extensão. Do fundo do coração, descobriu-se mais fazendeiro do que advogado e largou a cidade, a não ser nos fins de semana.

Seu Inácio, o vendedor de cocadas, o guarda-freios e o despachante dos Correios já pouco mereciam dele além do “bom dia” das segundas-feiras (se o trem não atrasasse) e do “boa tarde” quando do regresso à Capital, nas sextas, antes do pôr do sol. A dona daqueles olhos, ela sim, recebia toda a sua atenção, em suas idas e vindas.

“É sobrinha do chefe e mora na rua”, foi a resposta que obteve ao pedido de informação sobre a moça que também já não mais faltava às duas passagem dos seus trens. Sem intermediários, ouviu, embevecido, certo dia, daqueles lábios: “Sou Lucianita, mas todos me conhecem por Cianita, o mesmo nome daquela pedra”. Isso mesmo, tal como a gema negra, o cristal usado na limpeza de feitiços e magias.

Seu Inácio teve o prazer de recebê-lo em casa pouco tempo depois. Assim, também, logo em seguida, os pais daquele encanto de menina. Eu soube que tiveram cinco filhos.

E fico a pensar: que força misteriosa é essa que junta corpos e espíritos, sem mais nem menos, numa esquina qualquer do tempo? Tais encontros se dão mesmo ao acaso, ou tudo já estava escrito? Fosse outra a cor daqueles olhos, a pequena estação receberia um passageiro de meio percurso ali desembarcado para uma vida nova com mulher e filhos? E a paixão mal explicada pelo lugar inteiro? A alma teria percebido aquela criatura antes que os olhos a vissem?

Ninguém comigo se aborreça. É que os mistérios do mundo sempre me darão arrepios. Nunca deixarão de me surpreender e inquietar. Assim, ainda me resta outra pergunta, a fim de que a respondam os entendidos do assunto. Por ser a Cianita também conhecida como “vassoura de bruxa”, será que tanto limpa quanto enfeitiça? Será?

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CONTRADIÇÕES DO NATAL, por Sebastião Costa

Um nasceu na pobreza de uma manjedoura; o outro, gerado no berço do capitalismo.

Papai Noel, voando no seu trenó puxado a renas, visita todo ano residências chiques e seletas. Sua miopia social não enxerga a pobreza dos morros, favelas, palafitas.

A sensibilidade ‘cristã’ de Jesus visita todo dia casas de taipa, barracos e abrigos. No seu caminhar de sempre, se faz renascer em morros, favelas e palafitas.

Papai Noel, com sua roupa europeia, sua arrogância capitalista, não suporta o calor do sol africano nem a aridez do solo nordestino.

Jesus convive muito bem em meio ao calor humano dos pobres e desabrigados.

Papai Noel é o representante fosforescente da superficialidade capitalista.
Cristo se configura no amor e na solidariedade.

No dia do nascimento de Jesus, que pregou a humildade, todas as luzes para o símbolo do consumismo. E o aniversariante, sem brilho no coração das pessoas.

É a força do capitalismo triturando os ensinamentos do cristianismo.

Há de se perguntar se Papai Noel, vivo fosse há mais de dois mil anos, teria pousado seu trenó naquele estábulo da Galileia para entregar um presente àquele  menino, filho de um carpinteiro?

Sebastião Costa é médico e cronista

É BOM ESCLARECER
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