Itaporanga (Foto: Wikipedia)
O alto sertão nordestino sempre foi castigado por uma das piores intempéries da natureza, a seca. Com o evento, as paragens ficam desoladas, a temperatura, durante o dia, quase insuportável. Tem-se a impressão que o dia é mais longo. Há, até, um dito meio sarcástico e gozador criado pelo próprio sertanejo de que: se o dono da Mercedes Benz quisesse ficar mais rico, era bastante montar uma fábrica de carro, ali, no semiárido nordestino, pois como o dia é comprido, daria para fazer mais carro que em qualquer outro lugar!
Ao meio dia, a evaporação que limita a umidade do ar, já bastante seco, é tanta, que ao olhar para o horizonte tem-se a impressão visual que a terra está a tremer. É o mormaço quente, como diz o sertanejo. Mesmo assim, no meio desta desolação, surgem cidades, vilas e povoados com seus habitantes sempre à espera das chuvas salvadoras que acontecem, geralmente, entre longos períodos de estiagem.
Itaporanga é uma dessas cidades, encravada no alto sertão paraibano, a sofrer o castigo das secas. Nossa estória remonta aos anos cinquenta, do século XX, quando o desenvolvimento passeava muito longe daquelas bandas.
Localizada à margem esquerda do Rio Piancó, cujas águas só se fazem presentes em seu leito em períodos chuvosos, a cidade abrigava pouco mais de dois mil e quinhentos habitantes em suas dezoito ruas, maioria com pouca ou quase nenhuma estrutura urbana. A energia era precária, advinda de um gerador com a única finalidade de não deixar a cidade às escuras quando a lua não se fazia presente. Em função disto, a população, sequer, tinha ouvido falar em eletros domésticos e muito menos no seu uso. Os poucos refrigeradores ou geladeiras existentes possuíam um pequeno motor movido a querosene, que gerava o gás refrigerador do aparelho.
Os fogões eram a lenha e aí surgia aquela gente que abastecia a cidade com o produto, conhecida, na região, como “butadores” de lenha. Eram homens que, geralmente, morando em sítios na circunvizinhança da cidade, passavam quatro dias da semana colhendo a madeira necessária ao consumo.
Entretanto, nem toda árvore servia para este consumo. As preferidas eram angico e aroeira, consideradas lenha de fácil combustão, encontradas em grande quantidade em função de sua resistência às intempéries naturais do sertão. Naturalmente, havia outros tipos de madeira menos apreciada, entre elas uma conhecida como “catinga de porco”, pomo das constantes discussões entre o abastecido e o abastecedor, uma vez que a madeira a muito custo desempenhava seu papel lá dentro do fogão, era de péssima combustão.
No sítio, a madeira colhida era posta no terreiro da casa, onde era rachada para ser levada à cidade. Uma ache tinha em torno de um metro de comprimento, conhecida pela população como “laxa de lenha”. Tomava-se o tronco da árvore, cortava-o em toras, mais ou menos em torno de um metro de comprimento e as abria pelo meio, em duas ou três “laxas”, dependendo da grossura do tronco. Após o serviço, era hora de conduzir a lenha para a venda.
O jumento, conhecido como jegue, era o meio de transporte da preciosa lenha. Em cangalhas preparadas para o uso, colocavam-se quinze aches de cada lado do “jegue”, formando a carga que iria abastecer determinada casa na cidade.
Partindo dos sítios, lá iam eles com suas tropas de jumento em direção à rua, conduzindo o combustível tão necessário à existência da Comuna. Sem rancor, sem ódio, no descarrego da lenha, começavam as discussões, as teimas, naquele linguajar peculiar do sertanejo, onde a gramática andava a quilômetros de distância.
– Seu Luis, o sinhô mi perdoi, mas esta lenha não é da boa, não!
– Dona Zefa, a sinhora ta inganada! A lenha é ispiciá e eu só trabaio pensando nas freguesa!
– Como ispiciá, se aqui tem laxa de catinga de porco! Pra catinga de porco pegá fogo a gente tem que gastá duas ou mais garrafa de gás (querosene) e além disso a cumida sai fedendo a gás!
– Dona zefa eu vou repeti, a sinhora ta inganada, essa laxa de lenha é de angico, é pruquê a lenha ta verde, esta semana foi um pouco nuiblado e a lenha não inxugou direito!
– Seu Luis, o sinhô é um home de veigonha, faz mais de mês qui o céu de Deus é azuzin, azuzin, aonde o sinhô foi incrontá as nuvem?
– Não sinhora, lá pra nois fez sombra sim, sinhora. Lá teve dia qui não era tam azuzim, o céu, como a sinhora diz! Mas vamo fazê o siguinte! A sinhora acende o fogo com a aroeira, lenha boa, a sinhora sabe disso, quando o tição pegá fogo, a sinhora mete a madeira aqui, a qui tá mais verde, ta certo?
– Tá bom, seu Luis – resignava-se a mulher. – quanto devo?
– Dez mi reis!
– O sinhô ficô maluco? Todo mundo ta vendendo por oito mi reis a caiga e o sinhô vem mi cobrá os oio da cara?
– Eita mulerzinha xorona! Dona Zefa, minha lenha é da boa! Os outo pode vendê inté pru menos, mais eu agaranto que num tem trinta pau de lenha cuma a minha, num dá nem pru mês!
– mais a lenha do sinhô ta misturada, o sinhô num pode negá isso!
– Dona Zefa, minha lenha é boa eu já ispliquei isso, aquilo ali é lenha verde, eu já falei. Pronto, pra num perdê o freguei, a sinhora basta mi dá nove mi reis, pru meno num dá!
– Olhe Seu Luis, eu só vou pagá os nove pruquê o sinhô é um home pontuau, num deixa agente na mão, mais de outa veiz o sinhô num traga lenha misturada qui eu num aceito, não!
Assim, a vida cotidiana do bravo sertanejo prosseguia por aquelas paragens castigadas pelo tempo, contudo, o bom humor imperava ali, ninguém se maldizia nem entregava os pontos, a luta era ferrenha contra o quase eterno verão.
Com a ignorância reinante, os políticos tiravam proveito da situação e o progresso circulava a muitas léguas de distância, Quando muito, construíam uma Casa de porte médio na periferia da cidade com quatro compartimentos, chamando-a de Escola, onde a meninada aprendia o bê-á-bá através de uma professora mal remunerada e de pouca cultura. O ensino mais adiantado residia num Grupo Escolar mantido pelo Estado, freqüentado pelos filhos de famílias um pouco mais abastadas, como compradores de algodão, negociantes, etc, pois, o Estado arcava, apenas, com o salário dos professores, o fardamento e material escolar era por conta dos Pais.
Nossa estória acontece e tem como enredo um dos muitos fatos ocorridos na Comunidade, razão porque se faz necessário o conhecimento dos costumes desta gente, naquela época. Ademais, sempre é bom relembrar para as gerações de nossos dias, alguns costumes, como os expostos, que em função do atraso daquela época, mostram-nos como a gente do povo era obrigada a se tornar rica em criatividade.
Dentro deste contexto, apareço com outra figura que foi de suma importância, assim como o botador de lenha ou lenhador, para o desenvolvimento de muitas destas cidades que pululam pelo interior de nosso País, as “butadeiras d’água”, como eram conhecidas.
A cidade, como a grande maioria das comunas que se espalhavam pelo interior do País, naquela época não possuía o Serviço de Saneamento d’Água, fornecedor do líquido precioso tão necessário, não só como consumo humano, mas sobretudo, à saúde. Como a água é um líquido necessário à sobrevivência dos seres vivos, o homem, de uma forma ou de outra, sempre haverá de encontrá-la.
Em Itaporanga não era diferente. O leito seco do Rio Piancó era o seu manancial. Durante as ocasionais e raras cheias que ocorriam no Piancó, as águas, como uma bênção dos Céus, acumulavam-se sob sua superfície, formando grandes lençóis freáticos, fontes das inúmeras cacimbas existentes por ali.
O Sertanejo, em sua busca perene pela sobrevivência, além de ser um forte, como disse Euclides da Cunha, também, é criativo. Para usufruir do líquido subterrâneo e dos espaços porosos que se formam nas areias do rio seco, fazia-se um caixão retangular em sua profundidade de, aproximadamente, metro e meio de fundura, de base quadrática com oitenta centímetros de lado ou, mais precisamente, três metros e vinte centímetros de perímetro, e é óbvio, oco em suas bases.
Na ausência das pás modernas feitas para escavação, era utilizado um enorme caneco dentado de alumínio, fruto também de sua criação, com trinta centímetros de diâmetro, com enorme cabo de madeira enfiado, quase que em sua base, em diagonal, para facilitar o manejo. Colocava-se, então, o caixão no leito seco do rio com ligeira pressão para baixo e, com o caneco, ia-se retirando a areia do seu interior gradativamente, que, em virtude da pressão exercida para baixo, afundava-se, até atingir o lençol freático que se achava a pouco mais de um metro da superfície.
O líquido precioso, como um milagre, tìmidamente, dava o ar de sua graça, surgia graciosamente preenchendo a área da caixa, à proporção que esta penetrava no areal do rio, até ficar quase a altura de sua superfície. Estava pronta a cacimba que se espalharia em grande quantidade naquela área delimitada do rio, própria para aquela finalidade.
Surge, então, a figura dos “butadores” e das “butadeiras” d’água, heróicos anônimos que, incansavelmente e involuntariamente, de uma forma ou de outra, fizeram a sobrevivência do Sertão, coadjuvantes do futuro progresso da Região.
Para completar o palco onde se desenrolará o nosso enredo, outro costume daquela gente sertaneja não poderia deixar de ser exposto. Atemos a ele, pois!
O zelo e o respeito aos mortos, certamente faziam ou fazem parte do povo do sertão, como herança não só da contribuição africana, sobretudo, da cultura indígena. Como o seguimento Católico predominava, quase, em cem por cento a fé da população, na cidade havia duas igrejas, a Matriz, onde eram realizados os diversos cultos, batizados, casamentos, novenas, missas dominicais, e a do Rosário, relíquia de sua fundação, que se prestava, apenas, a uma finalidade, receber em seu interior aquele que cumprira sua missão terrena.
Todo morto, ao se iniciar a condução do féretro a sua derradeira morada, inevitavelmente, teria que passar por aquela Casa de Deus. No interior do recinto, os participantes do enterro rezavam um padre-nosso, uma ave-maria e uma salve-rainha em intenção da alma do falecido e, só então, seguiam em direção ao cemitério.
Nesta ocasião, um sino situado na torre da igreja, plangentemente soava, como que, em despedida ao que se ia para sempre. A pessoa encarregada do toque fúnebre era um senhor que recebia alguma pecúnia para exercício de tal mister, o que fazia com denodo, virando o sino, em determinados momentos, fazendo-o girar em suas bases de sustentação situadas lateralmente em uma das quatro janelas do campanário, aquela virada para o cemitério.
Era um espetáculo triste, mas ao mesmo tempo, deslumbrante, quando o badalo, impulsionado pela rotação do sino, tocava seu interior, fazendo ecoar um som nostálgico e melancólico, era o sinal dobrado, como se dizia, para aquele tipo de toque. “Seu” Zezim Pacato era este homem! Mais adiante, iremos encontrá-lo na nossa estória.
Quinca Cordinha era um daqueles lenhadores. Era um indivíduo alto, esguio, um pouco magro para sua altura, setenta quilos para um metro e noventa e cinco de altura, com o caminhar típico sertanejo, de passadas largas e céleres, como exigia sua profissão, pois a vagareza era proibida naturalmente para aqueles que achavam, ali, seu ganha-pão. Com uma tropa de dez jegues, juntamente com seu filho Pedro, fazia semanalmente a entrega da lenha nas casas da cidade.
As botadeiras d’água, cada qual com sua rodilha na cabeça, artefato, não só de proteção ao peso da lata de vinte litros, como para seu equilíbrio, faziam seu périplo diário, do rio à cidade e vice versa, numa algazarra infernal, dando conta da vida da cidade inteira, fofoqueiras, muito mais pelos “ossos” do ofício.
Foi num dia desses vai-e-vem de fofocas que surgiu uma estória que viria abalar a Comunidade. Quinca Cordinha morrera! O boato logo tomou conta de toda população. Como era uma sexta feira, suas freguesas, além de constrangidas pelo passamento daquele homem bom e trabalhador, como era conhecido, também estavam preocupadas com a falta da lenha que, certamente, iria acontecer.
Como não poderia deixar de ser, a notícia chegou aos ouvidos de Zezim Pacato que, de pronto, pensando muito mais no possível dinheiro que iria ganhar do que no falecimento de seu conterrâneo, partiu como um raio em direção a Igreja do Rosário para, ali, executar os primeiros dobres funerários.
Vez por outra, ele parava de tocar o sino e verificava, através de uma janela da torre, a estrada que saia por detrás dos muros da última rua da cidade, em relação ao rio, se o enterro já se aproximava. O relógio da Matriz badalou duas horas da tarde! Zezim Pacato correu para a janela a espiar, novamente, então avistou Pedro Cordinha tangendo seus cinco jegues repletos de lenha.
Um tanto quanto intrigado com o que via, indagou: – Ô Pedro cadê teu pai? Ato contínuo, ouviu a resposta: – Vem aí atrás! Zezim Pacato voltou correndo para o sino e dobrou o sinal com todo ímpeto que podia, para informar à comuna inteira que o cortejo fúnebre do inditoso lenhador já entrava na cidade.
De repente, entre os sons barulhentos do dobre ele pensou ter ouvido vozes e correu para a janela do campanário. Ficou estupefato com o que via, lá do alto da torre da Igreja, Quinca Cordinha, gritando a plenos pulmões para a tropa de jumento: – “Xô jegue! Anda pretinho! Dipressa roxim!” – Meio abobalhado e sem acreditar no que via, gritou alto e bom som de onde se encontrava: – Ôxente, home de Deus tu num tinha murrido? Me diz pur amô de Deus, Quinca, fala home, mi isplica tu ta vivo mermo? Lá de baixo, então, Quinca Cordinha com toda ingenuidade que lhe era peculiar e muito sério, respondeu: Tu é besta Zezim, tu acha qui se eu morresse eu ia ti negá! E tocou a manada para frente, deixando Zezim Pacato, não só decepcionado, como furioso pela grana que não receberia.