MEUS PÁSSAROS, por Frutuoso Chaves

“Espie no caminho que vem gente”. Era assim mesmo, exatamente assim, que o Pitiguari cantava no meu quintal, lá por volta dos meus dez anos de vida. Não era “gente de fora vem”, como querem os da Bahia e de outros quintais brasileiros. Outro pássaro mensageiro das nossas mais caras visitas, o Vem-Vem, cantava, justamente, como nos soava seu nome. Não era o “fim-fim”, nem o “vim-vim” de outras paragens.

Como eu gostava do negro Tiziu, bicho que não se expressava com voz de gente, nada contava, mas nos divertia com seus saltos curtos, rápidos e repetidos. Um pulo de um segundo na vertical a cada “tiziu” com algumas batidas de asas antes do pouso no mesmo lugar, em cima dos calcanhares. Talvez assim pulasse, miudinho que era, a fim de ser visto como dono do galho, ou para se mostrar às namoradas.

E o Bem-te-vi? Quem danado inventou que anuncia dissabores? E que história é essa de que indicou aos soldados de Herodes a rota de José e Maria na fuga com o menino Jesus? Não dá para acreditar em que esses três foram salvos pelo João de Barro, construtor de uma casa enorme onde a Família Sagrada se escondeu. Isso é doidice pura. Bem-te-vi nenhum jamais pôs os pés na Galileia, minhas e meus camaradas. Isso fica para os lados do Oriente Médio, ali onde a Ásia, a Europa e a África se abraçam quando não estão aos sopapos. Contam-me que é natural da América Latina e que até se arrisca pelo Texas, na beirada do México. Nada mais além disso.

Outra história na qual não se deve acreditar é a de que trouxe desgraça para o povo Asteca ao violar algo muito proibido: a nudez da Princesa num banho de riacho. A bruxa que protegia o local não o viu até que saísse do tronco oco onde se escondera para, debochado e azarento, surpreender a moça: “Bem te vi”… No dia seguinte, os espanhóis chegariam com suas espadas e canhões. Pois é, há gente capaz de tudo. Até de inventar uma maluquice dessas.

Bem-te-vi é pássaro dos bons desejos. Ele te quer bem e bem te vê. Pessoalmente, eu tomo seus assovios como votos de paz e saúde. E assim já os tomava no quintal da minha infância, onde também aprendi que cada pássaro tem suas preferências.

O negro Tiziu não pousava em outro galho que não fosse o da goiabeira, aquele que se esticava até quase arranhar a caixa d’água. Acho que pretendia se afastar do Beco do Padre, ponto do trânsito de carros e gente no vai e vem da estação ferroviária.

O Bem-te-vi saltava do muro para o pé de manga sob cuja sombra Maria, ocasionalmente, armava a trempe para a queima dos grãos de café. E fugia dali à primeira batida da mão de pilão empunhada por essa ajudante da minha mãe a fim de transformar em pó os torrões com açúcar bruto.

A timidez do Pitiguari sempre o levava, de tempo em tempo, ao galho mais alto do sapotizeiro, de onde mal podia ser visto. Mas era seu canto aquilo que mais esperávamos. Em muitas ocasiões falhava, mas acertava em várias outras. Eu e meus três irmãos sempre a ele obedecemos. “Espie no caminho que vem gente”, assim mandasse já nos púnhamos de olhos compridos no beco, rota obrigatória para quem saltasse do trem. E lá vinha Boanerges, o mais querido dos tios, para rever a irmã, o cunhado e os quatro sobrinhos. Às vezes, era a Tia Mariinha com o marido. Ao cabo de uma dessas visitas aqueles dois, que não tinham filhos, me carregaram para o estudo primário no Recife.

Cada acerto do Pitiguari anulava a raiva que dele tínhamos quando dos anúncios falsos dessas chegadas. Mas é bem possível que o pobrezinho não fosse dado a mentiras. Pode ser que seus alertas ocorressem antes de nossos parentes desistirem das viagens. Culpa deles, portanto.

Dava-se o mesmo com os avisos do Vem-Vem. Mas, neste caso, púnhamos os olhos mesmo era na Sopa de Seu Eimar. Um de nós decidiu que um passarinho anunciava chegadas por trem e, outro, pela Sopa. Falo daquele ônibus pequeno, de lombo arredondado, focinho comprido e bagageiro no teto para acomodação de sacos e malas. Acho que assim se chamava por ter o retorno na hora do jantar. Mesa posta e já ouvíamos a buzina do bicho lá para os lados da Rua do Silva. Era aviso ao pessoal da praça prestes ao embarque para Itabaiana, ou à espera de alguém advindo de João Pessoa e cidades ao longo do percurso.

Toda a movimentação dava-se em frente da nossa casa. Lembro do motorista, mas não guardei o nome do ajudante, um moço magro encarregado de cobrar o bilhete e de subir e descer malas acondicionadas no bagageiro em cima do velho Chevrolet. Uma escada de ferro afixada na traseira do veículo facilitava essa tarefa. A Sopa me ajudava a acordar para o café da manhã e a escola, mas eu gostava mesmo era do seu regresso quando, vez ou outra, ora nos trazia a bela Zica, prima do meu pai, ora uma sobrinha da professora Sílvia, de quem gostávamos muito.

A praça em questão era (e ainda é) estreita e comprida. Começava mais larga no pátio da Igreja e afunilava-se em frente à Prefeitura. Dona Guajarina, a secretária de sucessivos prefeitos e, a bem dizer, a mandatária de fato porquanto prima do poderoso chefe político local, não gostava que ninguém tocasse naquelas flores. Certa vez, destacou o jardineiro para impedir que donas de casa, a meio caminho de suas viagens e não resistindo aos canteiros públicos, descessem do ônibus para colher margaridas, violetas, crisântemos ou papoulas. Empavonado com a autoridade a si conferida, o moço terminou destituído do posto depois da descompostura passada na mulher de alguém muito importante. O chefe político fizera ver à prima que era melhor perder flores do que votos.

Espanta-me, agora, a frequência com a qual essas coisas tão passadas me voltam à lembrança. O que explica isso? A perda da juventude? A dos parentes e amigos subtraídos das nossas vidas e, assim, incapazes de respeitar os anúncios de vem-vens e pitiguaris? Seja como for, essas ausências nunca me doeram tanto.

É BOM ESCLARECER
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Uma resposta para MEUS PÁSSAROS, por Frutuoso Chaves

  1. Ângela Bezerra de Castro escreveu:

    Muito tocante essa memória. Somos crianças que se comunicavam com os pássaros. Acreditávamos em suas mensagens e respondíamos aos seus cumprimentos. Ainda hoje, digo ao bem-te-vi: também te vi. E pergunto ao vem-vem: quem vai chegar? E lá, no mais recôndito do meu coração, ainda se faz a esperança de uma presença querida, chegando de repente. Nada acontece. Mas, assim mesmo, experimento uma rara felicidade, porque ainda não morreu em mim aquela menina que tinha sonhos alimentados pelo canto alegre do vem-vem.