PRESENTE E FUTURO DA TRANSPOSIÇÃO, por Francisco Jácome Sarmento

Infográfico da palestra do Professor Sarmento no Seminário do Fórum Celso Furtado

O Fórum Celso Furtado da Paraíba promoveu semana passada, no Centro Cultural Ariano Suassuna, em João Pessoa, o seminário intitulado “O Futuro da Transposição das Águas do Rio São Francisco. A água chegou. E agora? Como alcançar o esperado desenvolvimento sustentável? ”.

Foram convidados instituições da esfera federal e estadual, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco e do Ceará, estados beneficiados pelo projeto da Transposição de águas do Velho Chico. Secretários de Estado, diretores de órgãos públicos, técnicos ligados ao setor de Recursos Hídricos discutiram tanto o estágio atual em que se encontra a preparação para receber e bem utilizar as águas a serem transpostas como as propostas de uso e alocação aos diversos usuários públicos e privados com interesse na segurança hídrica propiciada pelo projeto.

O projeto da Transposição consiste em dois canais de captação de águas sanfranciscanas que totalizam uma capacidade de transporte de 127 m³/s, vazão que, para se ter uma ideia, se alocada para o abastecimento de pessoas com um sistema hidráulico eficiente, seria suficiente para abastecer 13 vezes toda a população atual da Paraíba.

Sarmento: ainda “não caiu a ficha” da população

O porte físico dessas obras foi dimensionado a partir da concepção de cenários de desenvolvimento futuro dos quatro estados receptores das águas. À época, foram elaborados tanto cenários tendenciais quanto alternativos. Assim, para cada setor usuário de águas, como o saneamento, a indústria, a agricultura irrigada, a pecuária, a aquicultura e o turismo, foram estudadas as taxas evolutivas históricas (cenários tendenciais) bem como foram prospectados quais os impactos que ações governamentais positivas poderiam ter sobre os cenários tendenciais, incrementando suas taxas de crescimento, gerando assim cenários mais otimistas, ditos alternativos.

Uma vez determinadas as vazões necessárias ao atendimento dos cenários tendenciais e alternativos, partiu-se então para se avaliar a segurança hídrica de cada estado, nas situações de dispor ou não do projeto de Transposição. A conclusão inequívoca foi a de que, mesmo no cenário tendencial mais pessimista (ou seja, no qual ocorreria estagnação do desenvolvimento regional), a situação de não se dispor do projeto implantado produziria um verdadeiro apagão
hídrico na região.

Essa constatação técnica lastreou a vontade política do Presidente Lula, responsável por tirar o projeto do papel, em priorizar essa interligação hidráulica entre o rio da Integração Nacional e o Nordeste Setentrional. Atualmente, o BNDES formata uma Parceria Público Privado (PPP) com vistas a colocar em disputa licitatória pela iniciativa privada a gestão do sistema de Transposição.

O objetivo é deixar a cargo de uma empresa privada a venda da água bruta aos estados e a consumidores privados (e.g. grandes irrigantes, indústrias etc.), tendo-se, no primeiro caso, a garantia do pagamento com parte do FPE (Fundo de Participação do Estado) consignada para esse fim, como forma de atrair concorrentes para o certame. A segunda mesa redonda do evento discutiu o tema, encabeçado pela representante do BNDES.

Algumas conclusões importantes ganharam ênfase ao final do seminário. Em primeiro lugar, a realidade comum aos quatro estados beneficiados pelo projeto é a de que, em nenhum deles, se deu, ao longo da última década, um planejamento voltado a articular ações multissetoriais para criar a ambiência socioeconômica necessária ao aproveitamento sistemático das águas transpostas. Depreende-se daí que, pelo menos a curto prazo, não se cumpre o papel instrumental da Transposição, a saber, uma solução de engenharia fomentadora do desenvolvimento regional no que esse depende de segurança hídrica.

Outro ponto merecedor de destaque é recorrente no serviço público brasileiro. Falo em relação à substituição das equipes técnicas, banalizada quando das mudanças de governo, com prejuízos à eficiência da máquina estatal, ineficiência essa tanto mais onerosa para o contribuinte, quanto mais complexa for a ação governamental demandada. No caso da água da Transposição, para a maioria da população, certamente, ainda “não caiu a ficha”.

A conta de dispor e de usar água bombeada do Velho Chico, expressa na forma de uma tarifa de demanda (paga de qualquer maneira, usando-se ou não a água “importada”) e de outra, referente ao consumo (proporcional ao volume solicitado pelos estados a cada ano), respectivamente, será paga pelo contribuinte, ou seja, pelos usuários do sistema de saneamento (Cagepa/PB, Cagece/CE, Caern/RN, Compesa/PE e, em alguns casos, pelos usuários dos serviços prestados pelas companhias municipais).

Se os responsáveis pela gestão dos recursos hídricos locais e “importados”, leia-se, os estados beneficiados pelo projeto, ainda sequer compreenderam a magnitude da economia que pode advir da operacionalização do conceito de Sinergia Hídrica, o preço desse desconhecimento sobrará, como sempre, para a população.

A Sinergia Hídrica, principal pilastra da concepção da Transposição, parte do conhecimento de que o volume anual de água que, em média, chega a uma barragem pelo rio onde ela se encontra se reparte em três parcelas: uma que é retirada para atendimento das demandas; outra que, nos anos de cheia, termina por verter, sempre que essa cheia é maior do que a capacidade máxima de armazenamento da barragem, e, por fim, a parcela que as elevadas taxas de evaporação subtraem continuamente dos espelhos de água nordestinos.

É intuitivo perceber que, se houver uma maneira de diminuir a parcela de água que evapora, assim como a parcela de água que verte nos anos de cheia, sobrará mais água para atender mais consumidores. Com a descoberta e o aperfeiçoamento do conceito de Sinergia Hídrica, tornou‑se possível calcular, para cada reservatório de grande porte receptor das águas da Transposição, qual seria a vazão ideal para nele ser lançada, i.e., a vazão que minimizaria as perdas de água por evaporação e por vertimento.

Concluída agora a obra, urge por em prática, nas esferas governamentais federal e estadual, o conceito de Sinergia Hídrica. Com isso, a Transposição passa a ser muito mais do que um mero reforço de infraestrutura para aumento de oferta de água, o que era um flanco muito atacado pelas forças contrárias ao projeto; poderia ser uma obra indutora da boa gestão hídrica nos estados do Nordeste Setentrional, com efetivo poder transformador da cultura estabelecida
em torno do seu valor.

Mais ainda, poderia possibilitar a efetivação, em macroescala (estados), do sentido do texto legal da Política Nacional de Recursos Hídricos em fazer com que os usuários de água no país dessem o valor devido a esse insumo precioso à vida e à produção que aquela viabiliza.

  • Francisco Jácome Sarmento é Professor Doutor da UFPB em Engenharia Civil e Ambiental, foi consultor e membro da equipe de Coordenação Técnica do Projeto de Integração do São Francisco junto ao Ministério de Integração Nacional de 2003 a 2009, período em que também chefiou a Assessoria Técnica da Vice-Presidência da República designada para viabilizar as obras da transposição das águas do Velho Chico para o Nordeste Setentrional
  • Artigo publicado simultaneamente com o Diário de Vanguarda

O SABOR DO PERIGO, por Frutuoso Chaves

Churrasco grego (Imagem copiada do Reclame Aqui)

Para começo de conversa, um conselho de amigo. Não tente reproduzir em casa o tempero das ruas. Creia-me, não conseguirá. Digo mais: você nem chegará ao pão na chapa de boteco, aquele das seis da manhã com café pingado, se o preparo acontecer no santo recesso do lar.

Desista. Certos condimentos somente alcançam a plenitude quando feitos de mistérios e riscos, ingredientes geralmente faltosos às panelas domésticas em cozinhas assépticas como salas cirúrgicas.

Um velho amigo definiu à perfeição o sarapatel que lhe ia à boca numa barraca de higiene duvidosa, antes do nascer do sol: “Tem o sabor da emoção”. Com as licenças da juventude, ele havia saído morto de fome daquilo que a minha e a avó de vocês, entre a esconjuração e o sinal da cruz, tratariam por casa de tolerância.

Por falar nisso, aquele sobrado da rua de comércio então vibrante à luz solar, mas um templo noturno da boemia, ganhou seu respeito quando a proprietária insatisfeita com o calote institucionalizado afixou o cartaz na parede: “Proibido o ingresso de cachorro, menor de idade, jornalista e político”.

Como tantas ruas antigas, aqui e lá fora, aquela, de fato, tinha duas caras e duas almas, umas para o sol e outras para a lua. Os de passadas gerações, provadores de seus quitutes, bem o sabem.

Agora, responda, antes que percamos o rumo da conversa: o frango assado em casa tem o mesmo sabor do galeto das esquinas? Duvi-dê-odó, com o perdão dessa outra expressão das avós. E o cachorro-quente doméstico? E o pernil caseiro compara-se ao fatiado num pão francês chapado e oferecido pela garçonete depois da meia-noite e de uns cinco chopes?

Pois é, minhas e meus camaradas. Faltam aos pratos domésticos o molho e o segredo dos bares, lanchonetes e tendas do comércio ambulante. Coxinhas, pastéis, bolinhos de bacalhau, casquinhas de caranguejo, batata frita, ovos cozidos (até eles) têm o santuário das ruas. Sei de muita gente para a qual nem a hotelaria de cinco estrelas consegue reproduzir a contento os pratos e aperitivos típicos das barracas e botequins de pequena grandeza com chapa e fogão ocultos, misteriosos, mal percebidos.

A convocação para reforçar a equipe da Sucursal d’O Globo, no Recife, antes e depois da visita de João Paulo II, obrigou-me a viver de restaurante por duas semanas. Ao cabo da primeira eu já não mais suportava o que me vinha à mesa, apesar do bom e amplo serviço a la carte do então conceituado Pedro I. Fui salvo pelo colega Inaldo Sampaio que me apresentou ao Chambaril de Dona Maria, uma palhoça em terreno baldio próximo da Faculdade de Direito aonde se chegava por um buraco enorme aberto no muro. A superlotação do lugar bem falava daquela mão de fada.

Tempo depois, ao visitar duas antigas vizinhas da minha mãe, moças viajadas com experiências de Ásia e Europa, fui surpreendido com suas boas referências àquele prato. Desculpadas a pose e a afetação que não conseguiam conter quando no trato dessas viagens, espantaram-me ao dar ao ossobuco pernambucano o tempero de um restaurante da Lombardia. Pronto, foi o que me faltava para perceber que as palhoças também podem ter o apego dos esnobes.

Ah, o caldo de camarão da recifense Rua do Riachuelo… Não mais do que um balcãozinho de fórmica embaixo do lance de escada no térreo de um sobrado aos pedaços. No caixa, a mulher com sete meses de barriga. No fogão de uma só boca, às voltas com o caldeirão, o marido recém-demitido em razão do fechamento do Banco do Estado de Pernambuco por obra e graça de Miguel Arraes.

A raiva e o propósito do tiro no governador já haviam sido substituídos pela satisfação daquele moço com a fila enorme na calçada. Funcionava assim: você entrava, comprava dela uma ficha, buscava a cachaça contida em um filtro de barro tendo à mão um copinho de plástico feito para café e, finalmente, o caldo servido por ele em semelhante copo, divinamente saboroso. De quebra, a azeitona num palito e, graciosamente, também, uma fatia de limão. O toque ácido seria o símbolo da superação e da resistência. Afinal, o casal fizera uma limonada do fruto que colhera da sorte madrasta.

Acho que assim tem sido com muitos dos que hoje vivem de pães assados, sarapatéis, caldinhos e petiscos diversos. A vida severina que deles subtraiu o estudo, o bom emprego e a boa sina não impediu que de melhor forma se houvessem com seus fogões e chapas, muitas delas lavadas não se sabe com quais cuidados nem com que frequência. Os sabores incomparáveis que nos oferecem talvez advenham disso: do suor, do esforço e do propósito de servir, no mais das vezes, aos perdidos nas noites.

Seria uma irresponsabilidade afirmar que todos não primam pela limpeza nem pelo bom acondicionamento daquilo fritam, assam ou aferventam. Ninguém, em seu bom senso, é capaz de tamanho disparate. Há deles muito bem asseados, do mesmo modo como há restaurante bem estabelecido na mira ocasional da Vigilância Sanitária. Quem disso não sabe?

Mas o jovem que um dia eu fui ainda teima, eventualmente, em dar ouvidos à avaliação de um velho companheiro de batente para quem a melhor feijoada seria aquela com ambulância à porta. Eventualmente, repito, pois de uns tempos para cá me tem falado mais alto o septuagenário que agora foge das intoxicações como o diabo da cruz. Ainda bem.

TIA ERCÍLIA, por Babyne Gouvêa

Num instante de contemplação penso na minha Tia Ercília (foto), irmã do meu pai. Que as demais tias não fiquem enciumadas, mesmo em outro plano, mas foi a ela que, instanteamente, a minha mente se dirigiu. Inspiração sobre ela terei infinitas vezes.

Essa tia foi realmente marcante em minha vida. Era uma mulher que não se sobressaía por um belo rosto, mas o corpo era esbelto e realçava com todos os vestidos de cintura que costumava usar. Por baixo deles vestia uma combinação de seda para se sentir mais composta.

Usava sapatos salto baixo e, nem por isso, rebaixava o seu porte elegante. Seus cabelos grisalhos estavam sempre alinhados com uma discreta presilha, indispensável para segurar as madeixas muito lisas e finas.

Aplicava pó de arroz no rosto, um delicado tom de batom nos lábios e um moderado rouge nos seios da face, para amenizar a palidez.

Envolvia no colar uma medalha com o seu santo protetor, orgulhosa de sua devoção. Tinha um sorriso bonito a quem lhe era caro, mas sempre evitava apertos de mãos e troca de beijos. A sua acentuada misofobia impedia a aproximação de corpos. Costumava se borrifar com fragrâncias leves para não aborrecer o olfato de quem estava por perto.

O cuidado com a pele era estendido a todos com quem tinha intimidade. A sua cútis – era assim que ela falava -, era incrivelmente alva. Recomendava não se expor ao sol, e sempre usar uma sombrinha para se poupar das irradiações solares e suas consequências.

Mulher nascida no final da primeira década do século XX tinha consigo um arsenal de histórias que repassava para os sobrinhos, e eu era uma espécie de xodó por manifestar interesse em suas memórias. Sempre foi enorme a minha admiração por ela, como o amor aos livros – leitora de Camões, Dante Alighieri, Machado de Assis e tantos outros célebres escritores.

Escrevia poemas, transcritos no papel com uma grafia de provocar elogios pela beleza e esmero. Memorizava trechos do que lia e reproduzia com ênfase e oralmente para os seus familiares, despertando neles a curiosidade em saber de quem era a autoria.

Caprichava na pronúncia correta de todas as palavras, e os erres eram bem acentuados. Eram instantes prazerosos, dificilmente reproduzidos pelas atuais gerações.

A sua existência foi notável em minha formação. Do seu inesquecível legado destaco a retidão de caráter. Viveu sem conhecer a mentira. Alguém podia lhe contar algo absurdo e ela acreditava, porque no seu mundo não existia o moralmente incorreto.

Tia Ercília era entusiasta da juventude e abominava o fato de ter saído da mocidade – termo assíduo em suas conversas. Dizia sempre ser velha contra a sua vontade. Não demonstrava ter consciência de que a sua velhice era sábia e, contribuía, sobremaneira, para a formação intelectual dos seus sobrinhos.

Foi um prazer imensurável tecer palavras sobre essa criatura iluminada por quem tenho enorme gratidão – minha Tia Ercília.

UMA SENHORA DE 265 ANOS, por Frutuoso Chaves

Casa Grande do Engenho Corredor, berço do romancista José Lins do Rego (Foto: Frutuoso Chaves)

Pilar, inscrita entre as cidades mais antigas do Nordeste, completou 265 anos. Adquiriu status de vila em 14 de setembro de 1758, por carta régia de Dona Maria I, embora tenha seu povoamento começado ainda em fins do Século 17. Em 1630, ao aprofundarem a invasão, os holandeses advindos de Pernambuco ali já encontraram fazendas de gado.

Quarenta anos depois, na companhia de índios Cariris, um grupo de jesuítas capitaneado por Frei Francisco, natural da italiana Modena, fundava o colégio em torno do qual o povoado se formaria. Depois disso, Pilar, que então concentrava levas de garimpeiros, pouco a pouco se transformaria em centro de produção açucareira.

Foi nesta condição que Dom Pedro II a visitou um dia depois do Natal de 1859. Desceu do vapor “Apa”, no Porto do Capim, em João Pessoa, e cobriu o percurso em lombo de cavalo, com dona Teresa Cristina, a Imperatriz, em carruagem, tomando poeira.

Curiosamente, o setembro que demarca o surgimento da vila também assinala o tempo da morte do mais aclamado dos pilarenses, o escritor José Lins do Rego, a quem essa terra deve a projeção de sua gente, seus costumes e sua paisagem em livros traduzidos para mais de dez idiomas.

Recantos com o tempo de existência da paraibana Pilar costumam parir certas expressões da política, da história e da cultura. Que o digam os também pilarenses Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque (presidente da Província de Sergipe, por carta imperial de dezembro de 1824) e Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Cavalcanti.

Este último foi ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, ministro da Justiça e dos Estrangeiros, além de presidente das Províncias do Piauí, Ceará e Pernambuco, na segunda metade do Século 19. Conta-se que Diogo Velho determinou a construção, na Paraíba, da Estrada de Ferro Conde d’Eu que ligaria Cabedelo a Alagoa Grande.

Pilar ainda inclui na relação de filhos famosos Albino Gonçalves Meira (presidente de Pernambuco, em 1890) e Manoel Maroja Neto (desembargador e governador do Pará, de novembro de 1945 a fevereiro de 1946).

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“Lugar que já teve forca não progride”. Quantas vezes os meninos da minha geração não ouvimos isso dos mais velhos quando de uma ou outra queixa dos pais e avós, ora contra a falta de mercadorias no comércio local, ora em razão dos avanços da vizinha Itabaiana.

De fato, os nomes de peso da política regional, ou nacional, nascidos à beira do Rio Paraíba, pouco ou nada ajudaram no desenvolvimento de Pilar. Nem estes nem os que depois deles adviriam para o comando do município.

Pessoalmente, eu vejo essa senhora de 265 anos como uma daquelas velhas donas de engenho saudosas dos tempos áureos, dos seus anos de fartura e prestígio. E sem que tenha, ela mesma, posto alguém no mundo com a força de vontade e o talento necessários à recuperação de parte daquilo que perdeu.

O coração da zona canavieira que atraiu Dom Pedro há muito sucumbiu. Foi-se com a desgraça das usinas, que Pilar nunca teve, e dos engenhos de açúcar, dos quais já teve quarenta, todos de fogo morto.

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Em princípios de 1990, fui procurado, em João Pessoa, por gente ligada à produção de “Menino de Engenho”, o especial da TV Globo para a Terça Nobre, sob a direção de Roberto Farias. A indicação fora feita, creio eu, por alguém da Sucursal recifense do Jornal “O Globo”.

Forneci alguns nomes para os contatos de que eles precisavam e soube, dias depois, que haviam desistido das filmagens em Pilar, por falta de tudo: galpão para alugar, restaurante para a equipe e casario típico do início do Século 20. Até a estaçãozinha de trem já estava depredada.

Ali, também, não mais encontraram símbolos evidentes do mundo de José Lins, a exemplo do canavial e do carro de boi. Assim, transferiram a locação para o interior de Pernambuco, se não me engano.

O fato é que Pilar perdeu a oportunidade da convivência, por alguns dias, com atores e atrizes da dimensão de Lucélia Santos, Francisco Cuoco, Marcelo Serrado, Ilka Soares, Paulo Gorgulho, Jacira Silva e outros mais. Isso, poucas décadas depois de haver ambientado os filmes “Menino de Engenho”, rodado em 1965 por Walter Lima Jr., e “Soledade”, por Paulo Thiago, em 1976.

Hoje em dia, certamente, Pilar tem no turismo (pouquíssimo explorado) a mais sentida das suas vocações. O Engenho Corredor, onde José Lins nasceu, está disposto à visitação pública, graças ao empenho e bom senso dos atuais proprietários que se articularam tempo atrás com o poder público para a necessária e urgente restauração, antes que tudo desabasse.

Mas a cidade ainda perde, sem remédio, expressões locais das artes, dos costumes e do folclore. Antigo núcleo de produção de louças, a Rua da Lagoa é um exemplo doloroso desse descuido. Morreu ali, há muito tempo, a tradição das louceiras passada das mães às filhas, enquanto os mais pobres, sobretudo estes, ficam, desse modo, sem fonte digna de subsistência.

Pilar precisa exigir dos candidatos a seus postos eletivos – estes que se repetem de pais para filhos à eternidade – algo além dos discursos ufanistas de tantos setembros. Estes devem estar avisados de que o amor à terra natal requer, mais do que louvores ao passado, os cuidados com o presente e o futuro. Devem provar que valem um voto.

7 DE SETEMBRO, por Guiany Campos Coutinho

Imagem copiada de Poemas & Ideias

Hoje a data ativou a minha memória afetiva e voltei no tempo… Chego a lembrar o cheiro do café reforçado e apressado ao som da alvorada.

Marchando na cadência da banda marcial, atravessávamos as ruas de Bananeiras, ladeira acima, pra nos organizar no largo da matriz.

A descida triunfante, sob os aplausos da grande plateia que se espremia nas calçadas, fazia o meu pequeno coração palpitar mais forte. Era uma grande emoção ouvir o ritmo da marcha perfeita e tão ensaiada no frio agosto, pelas ruas da cidade.

Jogos, apresentações nos grêmios estudantis, teatros, músicas, festa no clube, desfile… animavam a “Semana da Pátria” e hoje me rendem muitas recordações.

Não lembro da expressão patriota de amor ao país, apesar da disciplina Educação, Moral e Cívica, incluída no currículo pelos governos militares, mostrar um Brasil bonito, ordeiro e justo.

O colorido das fardas, as bandeiras tremulando, a cadência dos desfiles me chegavam como uma grande festa popular e estudantil.

E com o tempo me foram sendo desvendadas as atrocidades da ditadura que na época acontecia e a dureza dos governos da era de chumbo. Me era apresentado um país real, injusto e desigual. Um país violento sobretudo com os pobres, pretos e povos originários. Um país que precisava de minha indignação e mais ainda da minha ação, como gota d’água no oceano, para mudar sua história.

E hoje estou aqui…

Me chamam de esquerdopata, comunista, socialista, radical, vermelha, petista, defenssora de bandido… mas sigo meu caminho… sempre na contramão da história e sempre do lado dos pobres.

O encontro com um “prisioneiro, condenado e morto” que defendia “vida para todos”, me leva hoje a gritar, juntos a meus irmãos no vigésimo sétimo Grito dos Excluidos, embora sem participar hoje do ato, Vida em primeiro lugar! “Na luta por participação popular, saúde, comida, moradia, trabalho e renda, já!”

(Republicado do blog Poemas & Ideias. Publicado originalmente em 7 de setembro de 2021)

O GRITO, por Frutuoso Chaves

Recorte do famoso quadro de Pedro Américo (Google Arts & Culture)

Pergunte-se à grande massa dos colegiais do Brasil qual o sujeito da frase “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante”.

Falo daqueles às vésperas do vestibular, recém-saídos de cursinhos, ou colégios caríssimos. À turma da escola pública desaparelhada e, salvo raríssimas exceções, com professores mal pagos e desmotivados, nem adianta perguntar.

Pois bem, a maioria responderá: “Sujeito indeterminado. Eles, ou elas, ouviram”. Calma, crianças. Vou dar uma boa dica. Antes da resposta, vocês precisam colocar a frase, que está invertida, na voz direta: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”. Agora, ficou mais fácil, não é?

Perdoemos os poetas. Eles, geralmente, gostam de inverter muito daquilo que compõem. Notadamente, em 1822, quando Dom Pedro I com diarreia correu para a moita à margem do rio que São Paulo já matou há priscas eras.

Sim, há muita gente boa a jurar que o Grito do Ipiranga esteve longe de ser um brado retumbante. E a negar que a cena se tenha passado como descrita na tela gigantesca (tem 4,15m de altura por 7,60m de largura) pintada por outro Pedro, este último o Américo, paraibano de quatro costados. Quem visita São Paulo pode vê-la no Salão Nobre do Museu do Ipiranga. É a mais famosa obra de todo aquele acervo, segundo o catálogo da Casa.

Mas vamos ao Grito. Recorram ao Google e inscrevam no espaço reservado às buscas: “Dom Pedro grito disenteria”. Façam isso e, numa fração de segundo, vocês terão mais de 21 mil resultados.

Adquiri, desde muito novo, a mania de desconfiar dos gestos heroicos. Perdi a fé nessas coisas quando percebi que um dos heróis da minha infância, o barbeiro Parcela, havia me enganado com a história de que, sozinho, pusera para correr metade do time de Cruz do Espírito Santo num jogo contra o Modena, de Pilar, nossa terra. E, isso, na casa do adversário. O que me contaram depois foi que Parcela correu de um vaqueiro que para cima dele partiu com uma faca na mão. O medo fez com que arrombasse no peito uma cerca de aveloz, plantinha leitosa também chamada dedo-do-cão da qual até bicho foge.

Parcela me enganou, porém, depois dele, ninguém mais, nem Dom Pedro. É por isso que estou disposto a acreditar na história da disenteria e da entrega, por Paulo Bregaro, à beira da moita, da carta em que dona Leopoldina, a Imperatriz, informava sobre aquelas exigências de Portugal. Aquelas que teriam feito o homem clamar: “Laços fora, soldados”. Pois, sim. Mas acredito que tenha sido por conta dessa entrega que Bregaro virou o patrono dos carteiros.

Dona Leopoldina… Ah, que mulher resoluta. Aposto, mesmo, na versão de que foi ela quem escreveu e assinou o decreto da Independência. Que paciência tinha com aquele marido farrista e mulherengo. Ou alguém pensa que ela não sabia o que havia puxado Pedro até Santos, de onde voltava com dor de barriga? É claro que sabia. E sabia tanto quanto Domitila, a marquesa.

No meu tempo do Grupo Escolar Dr. José Maria, da farda com calça azul marinho, camisa branca e gravata que eu detestava, um colega de alma pura quase ia às lágrimas durante a leitura do Grito da Independência: “Laços fora, soldados. As cortes de Lisboa querem escravizar o Brasil. Independência, ou morte”. Quase fomos aos tapas quando eu ri disso.

Eu pensava cá, com meus pequenos botões: “Não fora o mesmo Dom João, pai de Pedro, que largara o filho por aqui com o conselho para abiscoitar o trono antes que algum aventureiro o fizesse?”. Já não estava tudo em casa?

Depois, fiquei sabendo que o Grito do Ipiranga custou mais aos brasileiros do que uma barriga ruim e uma garganta rouca. Custou 2 milhões de libras esterlinas pagas à Inglaterra para honrar o empréstimo tomado por Dom Pedro. Débito saudado, a coroa britânica enviou suas bênçãos a este país tropical.

A BANDEIRA É NOSSA! por José Mário Espínola

Começou a Semana da Pátria. Enfim, após quatro anos atípicos, voltamos a ter comemorações normais do Dia da Independência do Brasil, 7 de setembro, sem medo e cercadas de alegria espontânea.

Ano passado, a data significou o clímax da ansiedade pública, do medo do golpe contra a democracia no Brasil. Na realidade, isso vinha acontecendo desde o ano de 2019, num crescendo de ameaças. Nesses quatro anos, durante a Semana da Pátria, o então mandatário da nação anunciava o advento de um golpe.

Em 7 de setembro de 2022, ele chegou a roubar a comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil. Isso mesmo: ele furtou a nossa bandeira! Uma imensa maldade histórica praticada contra nós, os brasileiros autênticos. Tudo isso para amedrontar a população e incentivar o apoio nacional ao seu intento contra a democracia.

Hoje, sabemos que era um blefe, o se-colar-colou. Mas parece que quase aconteceu. Pois só não se concretizou por resquício de juízo de parte significativa do Comando das Forças Armadas. O suficiente para enxergarem que iam entrar numa enrascada armada pelo inominável. O medo foi maior que a vontade.

***

A bandeira é o símbolo-mor da nacionalidade. Hasteada, significa que aquele lugar, aquele país, é território de um povo, pertence a uma nação.

Nos últimos quatro anos, radicais da extrema-direita apossaram-se do Brasil, tomando atitudes irresponsáveis com imenso prejuízo para o país e para o povo brasileiro. Por isso o Brasil teve um retrocesso significativo em sua evolução, em todas as áreas.

A educação, por exemplo, recuou uma década. A saúde, quase isso. O prejuízo social também foi muito forte: as famílias ficaram divididas, muitas vezes de forma irreconciliável. Amizades foram irremediavelmente pulverizadas.
Pouco a pouco estão sendo revelados detalhes de como tudo aconteceu.

Ao longo desse curto período, eles criaram uma cleptocracia: roubaram muita coisa, o que ainda está sendo pouco-a-pouco desvendado e contabilizado. Mas eles roubaram também a nossa bandeira, revelando a sua forte tendência à apropriação do alheio. Especialmente jóias pertencentes ao Governo brasileiro.

Agiram, portanto, como verdadeiros cleptocidas, pois também roubaram corpos e almas de brasileiros, invadindo corações e mentes de boa parte da população, especialmente os mais frágeis de personalidade, que têm a tendência de acreditar em tudo, sem se preocupar em saber se é verdadeiro ou não.

Além disso, roubaram as vidas de milhares de outros, ao negar-lhes vacinas. Também quando adotaram medidas que resultaram em mortes, como a distribuição de armas para a população. Essas armas viriam reforçar os arsenais do crime.

Eles também liberaram a Amazônia para grileiros e garimpeiros, deixando o crime correr solto, tirando a vida de indígenas e da população ribeirinha. Esses foram mortos pela fome e a falta de medicamentos, propositadamente causadas pelo governo federal e seus cúmplices regionais.

Graças à resistência heróica de muitos brasileiros, contudo, o país foi resgatado, com tudo o que foi possível salvar. O pendão, a nossa bandeira, retornou para a nação. Não pertence mais a um pequeno grupo.

A bandeira é nossa, é do povo brasileiro. Vamos comemorar, minha gente!

ATÉ QUANDO, UFPB? por Francisco Barreto

Segregado por seus pares, no Senado, Catilina ouve o duro discurso acusatório de Marcus Tullius Cícero – então Cônsul de Roma com poderes excepcionais conferidos pelos senadores romanos (pintura de Cesare Maccari, 1888). Foto e legenda copiadas de ambientelegal.com.br

Parafraseando o enorme tribuno romano Cícero, digo: “Quousque tandem abutere, UFPB, patientia nostra?”

Há 54 anos impulsionada pelo regime ditatorial a UFPB perpetrou uma criminosa violência politica na vida acadêmica extirpando e banindo Professores e Alunos que se somaram às centenas, e que partiram numa brutal diáspora e exílios. Era o ano de 1969 após o Ato 5 e Decreto 477.

Voltei do exilio em 1974. Passei dez anos sem direito a ter emprego publico. Na UFRJ, UNB, UFPE, IBAM, e no IPEA/IPLAN SEPLAN-PR, CNPU, fui impedido de entrar no setor publico federal por severas restrições impostas pelo famigerado SNI. Dez anos sem poder contar tempo de serviço, em 2022 finalmente me aposentei.

Fiz concurso e aprovado como Prof. Adjunto na UFPB/CG, em Economia em 1996 fui admitido tendo a titulação de Mestre e Doutorado de IIIº Ciclo pela Universidade de Paris-Pantheon Sorbonne, após defesa de Tese em 03 de Julho de 1973 há 50 anos. Após 26 anos estive na Academia. Em 2001/02 fiz estágio pós-doutoral com apoio da CAPES na Universidade François Rabelais/ Tours onde lecionei uma disciplina aos alunos do DEA/Maitrise. Terminei o meu caminho universitário como Professor Associado I.

Há dias recentes no instado pela PROGEP/TCU/UFPB a apresentar a revalidação do citado Doutorado com base numa Lei/Resolução Nº 3 de 23 de Junho de 2016. Em toda a minha vida professoral, 26 anos, nunca fui submetido ao citado procedimento acadêmico. 50 anos depois, já aposentado, fui instado a apresentar a referida avaliação que não fui obrigado a fazer, nem nunca demandado.

Um desvalido algoritmo incógnito originário do TCU, e a UFPB, passou a me exigir sob conivência desta ultima, e sob o rigor de um diploma legal de 2016 promovendo a desumanidade de uma absurda e retroativa brutal ilegalidade.

Com este infeliz desatino e exigência burocrática poderei passar “sob varas” coercitivas a ter a suspensão dos meus subsídios da minha sofrida aposentadoria.

A UFPB tem a suprema obrigação de reconhecer, e por isto, ser penalizada por nunca ter me exigido e/ou alertado formalmente durante 26 anos quando ingressei, como Professor Adjunto cargo privativo a Doutores.

Sabe-se, no entanto que era inexistente o preceito legal obrigatório, e que nos mais repetidos Acordos Culturais France/Brasil diplomas doutorais franceses sempre foram liminarmente aceitos pela sua excelência acadêmica.

É lidimo que a UFPB outra vez aponte o frio cutelo aos que já foram extirpados pela voracidade ditatorial há meio século?

Espera-se que a consciência e a dignidade públicas sejam exercidas, e faça a defesa intransigente de quem for atingido. Não sendo assim cumplice, omissa e desatinada como o foi no passado ditatorial.

Até quando ocorrerão vitimados?