O Fórum Celso Furtado da Paraíba promoveu semana passada, no Centro Cultural Ariano Suassuna, em João Pessoa, o seminário intitulado “O Futuro da Transposição das Águas do Rio São Francisco. A água chegou. E agora? Como alcançar o esperado desenvolvimento sustentável? ”.
Foram convidados instituições da esfera federal e estadual, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco e do Ceará, estados beneficiados pelo projeto da Transposição de águas do Velho Chico. Secretários de Estado, diretores de órgãos públicos, técnicos ligados ao setor de Recursos Hídricos discutiram tanto o estágio atual em que se encontra a preparação para receber e bem utilizar as águas a serem transpostas como as propostas de uso e alocação aos diversos usuários públicos e privados com interesse na segurança hídrica propiciada pelo projeto.
O projeto da Transposição consiste em dois canais de captação de águas sanfranciscanas que totalizam uma capacidade de transporte de 127 m³/s, vazão que, para se ter uma ideia, se alocada para o abastecimento de pessoas com um sistema hidráulico eficiente, seria suficiente para abastecer 13 vezes toda a população atual da Paraíba.
O porte físico dessas obras foi dimensionado a partir da concepção de cenários de desenvolvimento futuro dos quatro estados receptores das águas. À época, foram elaborados tanto cenários tendenciais quanto alternativos. Assim, para cada setor usuário de águas, como o saneamento, a indústria, a agricultura irrigada, a pecuária, a aquicultura e o turismo, foram estudadas as taxas evolutivas históricas (cenários tendenciais) bem como foram prospectados quais os impactos que ações governamentais positivas poderiam ter sobre os cenários tendenciais, incrementando suas taxas de crescimento, gerando assim cenários mais otimistas, ditos alternativos.
Uma vez determinadas as vazões necessárias ao atendimento dos cenários tendenciais e alternativos, partiu-se então para se avaliar a segurança hídrica de cada estado, nas situações de dispor ou não do projeto de Transposição. A conclusão inequívoca foi a de que, mesmo no cenário tendencial mais pessimista (ou seja, no qual ocorreria estagnação do desenvolvimento regional), a situação de não se dispor do projeto implantado produziria um verdadeiro apagão
hídrico na região.
Essa constatação técnica lastreou a vontade política do Presidente Lula, responsável por tirar o projeto do papel, em priorizar essa interligação hidráulica entre o rio da Integração Nacional e o Nordeste Setentrional. Atualmente, o BNDES formata uma Parceria Público Privado (PPP) com vistas a colocar em disputa licitatória pela iniciativa privada a gestão do sistema de Transposição.
O objetivo é deixar a cargo de uma empresa privada a venda da água bruta aos estados e a consumidores privados (e.g. grandes irrigantes, indústrias etc.), tendo-se, no primeiro caso, a garantia do pagamento com parte do FPE (Fundo de Participação do Estado) consignada para esse fim, como forma de atrair concorrentes para o certame. A segunda mesa redonda do evento discutiu o tema, encabeçado pela representante do BNDES.
Algumas conclusões importantes ganharam ênfase ao final do seminário. Em primeiro lugar, a realidade comum aos quatro estados beneficiados pelo projeto é a de que, em nenhum deles, se deu, ao longo da última década, um planejamento voltado a articular ações multissetoriais para criar a ambiência socioeconômica necessária ao aproveitamento sistemático das águas transpostas. Depreende-se daí que, pelo menos a curto prazo, não se cumpre o papel instrumental da Transposição, a saber, uma solução de engenharia fomentadora do desenvolvimento regional no que esse depende de segurança hídrica.
Outro ponto merecedor de destaque é recorrente no serviço público brasileiro. Falo em relação à substituição das equipes técnicas, banalizada quando das mudanças de governo, com prejuízos à eficiência da máquina estatal, ineficiência essa tanto mais onerosa para o contribuinte, quanto mais complexa for a ação governamental demandada. No caso da água da Transposição, para a maioria da população, certamente, ainda “não caiu a ficha”.
A conta de dispor e de usar água bombeada do Velho Chico, expressa na forma de uma tarifa de demanda (paga de qualquer maneira, usando-se ou não a água “importada”) e de outra, referente ao consumo (proporcional ao volume solicitado pelos estados a cada ano), respectivamente, será paga pelo contribuinte, ou seja, pelos usuários do sistema de saneamento (Cagepa/PB, Cagece/CE, Caern/RN, Compesa/PE e, em alguns casos, pelos usuários dos serviços prestados pelas companhias municipais).
Se os responsáveis pela gestão dos recursos hídricos locais e “importados”, leia-se, os estados beneficiados pelo projeto, ainda sequer compreenderam a magnitude da economia que pode advir da operacionalização do conceito de Sinergia Hídrica, o preço desse desconhecimento sobrará, como sempre, para a população.
A Sinergia Hídrica, principal pilastra da concepção da Transposição, parte do conhecimento de que o volume anual de água que, em média, chega a uma barragem pelo rio onde ela se encontra se reparte em três parcelas: uma que é retirada para atendimento das demandas; outra que, nos anos de cheia, termina por verter, sempre que essa cheia é maior do que a capacidade máxima de armazenamento da barragem, e, por fim, a parcela que as elevadas taxas de evaporação subtraem continuamente dos espelhos de água nordestinos.
É intuitivo perceber que, se houver uma maneira de diminuir a parcela de água que evapora, assim como a parcela de água que verte nos anos de cheia, sobrará mais água para atender mais consumidores. Com a descoberta e o aperfeiçoamento do conceito de Sinergia Hídrica, tornou‑se possível calcular, para cada reservatório de grande porte receptor das águas da Transposição, qual seria a vazão ideal para nele ser lançada, i.e., a vazão que minimizaria as perdas de água por evaporação e por vertimento.
Concluída agora a obra, urge por em prática, nas esferas governamentais federal e estadual, o conceito de Sinergia Hídrica. Com isso, a Transposição passa a ser muito mais do que um mero reforço de infraestrutura para aumento de oferta de água, o que era um flanco muito atacado pelas forças contrárias ao projeto; poderia ser uma obra indutora da boa gestão hídrica nos estados do Nordeste Setentrional, com efetivo poder transformador da cultura estabelecida
em torno do seu valor.
Mais ainda, poderia possibilitar a efetivação, em macroescala (estados), do sentido do texto legal da Política Nacional de Recursos Hídricos em fazer com que os usuários de água no país dessem o valor devido a esse insumo precioso à vida e à produção que aquela viabiliza.
- Francisco Jácome Sarmento é Professor Doutor da UFPB em Engenharia Civil e Ambiental, foi consultor e membro da equipe de Coordenação Técnica do Projeto de Integração do São Francisco junto ao Ministério de Integração Nacional de 2003 a 2009, período em que também chefiou a Assessoria Técnica da Vice-Presidência da República designada para viabilizar as obras da transposição das águas do Velho Chico para o Nordeste Setentrional
- Artigo publicado simultaneamente com o Diário de Vanguarda