ATÉ QUANDO, PREFEITO? por José Mário Espínola

Imagem meramente ilustrativa (Foto Shutterstock | Reprodução)

Anteontem, pela segunda vez, escapei de ser atropelado por uma motocicleta SOBRE A CALÇADA, ao sair do prédio onde fica o meu consultório, onde estive trabalhando. Já me aconteceu outro dia, próximo ao mesmo lugar.

Tornaram-se corriqueiras essas tentativas de atropelamento que o cidadão pessoense corre o risco de sofrer, diuturnamente. E deprecia o julgamento que fazem da nossa cidade, tantos cidadãos de outros estados que escolheram esta linda cidade para morar.

Tudo isso acontece porque João Pessoa parece ser uma cidade sem lei para o controle do trânsito. Pelo menos do tráfego de motos. É gritante a ausência da Semob. Não vemos NENHUM agente de trânsito, os carrancudos amarelinhos, disciplinando a circulação das motocicletas.

Cumprir o tempo de entrega de encomendas? Chegar mais rápido ao seu destino? Nada disso justifica o que os motoqueiros estão fazendo pela cidade.

Circular sobre as calçadas, transformando-as em vias; circular sobre ciclovias; parar sobre faixa para pedestres; fazer a contramão; furar sinal vermelho; entrar à esquerda quando não é permitido… E tantas e tantas outras infrações cometidas.

A Semob tem que multar, não vejo outra solução para tamanha aberração. Somente pelo bolso é que conseguirá disciplinar a condução do motoqueiro irresponsável. O que tem responsabilidade nada sofrerá. E o que a prefeitura arrecadará em multas dará para pagar os salários dos amarelinhos.

Então, volto a perguntar: até quando, Senhor Prefeito? Vai esperar que adultos, mulheres e crianças morram, para tomar alguma atitude? Aí será tarde.

  • José Mário Espínola – Cidadão indignado

ENQUANTO ALZHEIMER NÃO CHEGA, por Francisco Barreto

Painel com fotografias de alguns mortos e desaparecidos durante a ditadura (Arquivo Nacional)

O Mal Alzheimer não apenas obscurece as nossas memórias e recordações; implacavelmente, sepulta as humildes histórias dos mortais

Em cada esquina, a nós os velhos, nos irrompem as ameaçadoras e sinistras teses de Alois Alzheimer sobre as nossas memórias que despencam num desfiladeiro do esquecimento. E como os nossos pensamentos e lembranças vem sem aviso prévio, e nos assomam é da boa virtude reparti-los, evitando assim, não permanecer diante do nada.

Já nos advertiu Martin Heidegger, o profeta existencialista, provavelmente secundado por Alzheimer seu confrade em Tübingen, que a memória dos homens é pendular entre os sentimentos de angustia que amedronta, e a felicidade que nos resgata do esquecimento do nada ter sido.

Como os malefícios preconizados pela perda de memória que nos encilham, diante dos após dias que se vencem, parece ser iluminado recorrer a incursões felizes ao se debruçar á memória deixar emergir os bons momentos, e agirmos como náufragos que desprezam as cores dos peixes e submergem à superfície para o respirar e recordar. É formidável olhar para trás, e a despeito da chaga “Alzheimeriana” que nos brutaliza. E apesar disto, por vezes quando ainda somos capazes de deslindar movidos pela certeza de que continuamos os mesmos transitando nos nossos sentimentos de consciência e ousadia.

Todas as contas feitas até parece que foi ontem passado mais de meio século quando ocorreram as turbulências do arbítrio, prisões, torturas, cassação, perseguição e processos políticos que me inclinariam à completa perda da liberdade. Fiz uma dura opção ao deixar a terra e os meus.

No ontem distante, vivi muito longe e convivi com a dialética do sofrimento que se espraiou na certeza de que o ânimo sair pelo mundo pelo desejo de se sentir livre do encilhamento do arbítrio. A massacrante e sofrida distância, longe e desolado foi difícil embora um alivio, ainda que, muito distante de uma tênue felicidade.

Exumando longas décadas, e retroagindo ao difícil ano de 1968/60, a minha juventude estudantil militante só havia duas dolorosas alternativas. A clandestinidade na luta armada, ou a opção de sair da cena do arbítrio e viver fora do país. Difícil decisão, porque ambas implicavam severas consequências.

Resisti aderir à resistência armada. Estribado na minha compreensão de que não tinha suficiente background ideológico, acreditava ainda que a relação de forças era brutalmente desfavorável para a nossa carbonária juventude, e que, finalmente, que não tinha armazenado coragem ideológica suficiente para consumar uma opção tão grave que prenunciava fatalidades letais.

Pressupunha ainda, que o despreparo político, ideológico e militar da juventude que eu havia ombreado no movimento estudantil era embrionário e inexistente. Não conseguíamos ir além de coquetéis molotov. Em segundo lugar, era mais do que presumível que as forças arregimentadas pela repressão militar iriam nos esmagar a qualquer custo diante da incipiente e pálida resistência que se armava. O poder de fogo do arbítrio seria impiedoso e massacrante.

A opção de me retirar de cena, e a resistência interna ao arbítrio não foram fáceis. Custou-me durante algum tempo, me pesava a sensação de um certo abandono e possível declínio da minha precária consciência da luta. Conhecia de perto a situação inorgânica, atropelada, e espontaneísta das nossas militâncias e, sobretudo, das equivocadas e carbonárias lideranças de que não teriam condições objetivas de ir ao enfrentamento do aparelho ideológico e militar que dominava a cena.

O trucidamento do valoroso Che Guevara era um argumento imbatível A nossa juventude, estribada em imatura rebeldia comprometida com um formidável e indeclinável desafio sob o signo das liberdades era extremamente sedutor. Difícil era desconsiderar a real desigualdade do letal combate entre a repressão e os sinais claros de nosso infantilismo infestado de utopias e de adolescências mal resolvidas.

Tive um encontro com militantes da ALN de Marighela, no Rio em Abril de 69. Das nossas conversas advoguei a tese de que a luta armada, do foquismo, embora fosse corajosa era inconsequente. Poderia ter um final suicida. Sempre respeitei a grandeza e a coragem dos que estavam optando pelo combate armado cujos efeitos ocorriam à conta das investidas de uma minúscula guerrilha fundada na surpresa dos ataques.

A dimensão amorosa dos militantes pela luta não for o suficiente para evitar o sacrifício que se verificou pelas perdas de vidas de jovens valorosos e idealistas. Compreendendo todas as impossibilidades, e feitas às contas na minha rente percepção política, não hesitei em seguir o recado histórico e sábio do Lênin – “Um passo adiante, e Dois atrás”.

Na minha decisão ficou claro que os sentimentos dos meus interlocutores não foram além de determinados e imaturos desejos estavam impregnados de emocionalidade e utopias quanto às condições históricas objetivas de realizar um enfrentamento profundamente desigual contra a Ditadura.

Os que não saíram e, com enorme coragem, ficaram, e optaram por um supremo sacrifício foram imolados, violentados, e deram suas vidas por um combate desigual e letal. A estes, minha mais distinguida admiração e respeito e que lutaram por conquistas históricas que a vida não lhes concedeu.

A nós, ainda restam as tristes e sofridas lembranças das vidas perdidas no auge do ardor de suas juventudes. E, se quiserem um dia escrever sobre estes heróis, apenas, digam que entre a data de seus nascimentos e de suas mortes existiram todos os dias que foram dedicados ao Brasil movidos grandeza de seus espíritos infantis e libertários.

A imolação da vida nem sempre é sucedida de uma história vitoriosa. Entre nós, para sempre, ficará o sentimento, e as tristes lembranças de todos os que tiveram a ousadia de sacrificar prematuramente as suas vidas. O tempo em sua razão histórica demonstra que a extraordinária coragem e determinação dos que lutaram bravamente tiveram aniquiladas as suas juventudes.

Há meio século, fui atraído pelo espirito libertário das luzes de Paris, que me atiçou o desejo e o ímpeto de não mais viver o pesadelo da Ditadura. Foi uma estranha e prudente decisão que, talvez tenha me patrocinado uma sobrevida, passando apenas a viver uma precipitada existência, e durante certo tempo uma inconformada dialética do sofrimento. Confesso que sofri, vivi uma via crucias e que não errei, ao declinar da minha possibilidade de enveredar num enfrentamento de um combate tão brutal e violento.

Ao assumir o meu gesto de partir, e ainda até hoje sou convicto de que foi como um duro e necessário recuo. Lágrimas derramei-as, há mais meio século atrás e me lembro de quando essas embaçavam o meu olhar. Derramei-as sentindo a desolação e a traumática dor da distância. dias, meses, anos de torturas e sofrimentos psicológicas, que vinham e me assolavam todo tempo.

Ainda ontem, vivi, em terras estranhas sem mãos e ombros para me segurar num salto dado no escuro. Deslizava num despenhadeiro em queda livre sem amparo que me amortecesse. Apenas despencava, com a certeza de que do chão não passaria.

Ave, Brasil! Os que morreram lutando pela Liberdade um dia te saudaram.

VOCÊ CONTRATARIA UMA SEGURADORA INEXPERIENTE PARA O SEU CARRO? por José Mário Espínola

Carrinho de brinquedo em cima de uma mesa com duas mãos cobrindo-o por cima com sombra; para matéria sobre golpe de seguradoras

Foto: Free Creative Commons/Vrum

A sociedade de consumo evoluiu muito, neste Século XXI. E tornou-se muito exigente, quando o assunto é defender o seu investimento. Nada de comprar só para ajudar ou por ser parente ou por amizade.

Investir num Conselho de Medicina moderno, íntegro, organizado e independente é na realidade o que o médico responsável deseja, para ter a garantia de que vai receber em troca um órgão igualmente responsável, que não se envolve com política, que será transparente, prestando contas aos seus médicos.

Pois num colegiado desses seus membros conduzirão os processos e as sindicâncias com isenção, sempre éticos, que nunca terão atitudes que possam vir causar prejuízo a alguém, também sem nunca tirar proveito próprio.

Fiscalizarão com bravura e responsabilidade o exercício do trabalho médico, percorrendo todos os municípios do Estado, tanto estabelecimentos públicos como privados.

Julgarão com isenção os seus colegas, não se deixando influenciar por nada que não possa ser provado.

É o que devemos exigir do Conselho Regional de Medicina da Paraíba. E é o que se espera da Chapa 1, se for conduzida.

É justamente o que esperamos que aconteça!

PAPEL COLOMY, por Frutuoso Chaves

Imagem meramente ilustrativa copiada de jornaldenegócios.pt

Os mais adentrados lembram, certamente, de uma das antigas brincadeiras infantis mais requeridas: aquela feita com maços de cigarros vazios e abertos, cuidadosamente, a fim de serem usados como se fossem dinheiro.

Jogava-se fora o papel de alumínio e o transparente. Em seguida, desmanchava-se o maço, pouco a pouco, pelas bordas coladas, estirando-o no sentido do comprimento. Depois, bastava dobrar as laterais sobre a face interna, em cima de cada vinco. Pronto, estava feito o “dinheiro”.

Naqueles idos de 1960, por aí assim, o valor das “cédulas” dependia do custo de cada marca então vendida, no mundo real, aos fumantes. Minister, Cônsul, Hollywood e Continental, decrescentemente, superavam em valor as notas de Astória, Gaivota e Clássico, por exemplo.

A brincadeira era uma espécie de ensaio para a vida adulta. Podia, assim, aguçar a ostentação e a ganância. Eu, particularmente, nunca fui tão rico e perdulário. Gastava à toa. Também, pudera, detinha minha própria Casa da Moeda: os maços sobrados da venda a granel de cigarros no bar que meu pai havia agregado à nossa padaria. Bem aquinhoado, não fazia questão de perder muito nos jogos de botão, bozó, ou na bola de gude. Ainda bem que, no meu caso, a vida não imitou as artes de menino. Não fiquei rico, mas, em compensação, não me viciei em jogo nenhum.

Muito novo, não tinha idade para fumar nem adquiri o hábito mais tarde. Sempre detestei o cigarro, fosse qual fosse a marca, embora os estímulos não faltassem. Nem os internos (o velho Juca acordava às 5 da manhã já com um cigarro no bico), nem os externos (caubóis, atletas e gente bem-sucedida). Ainda não se fazia uso do termo, mas fumar, àquela época, era algo politicamente correto, para honra e glória da Sousa Cruz. E se ele, ou ela, adotasse piteira, expunha-se ao olhar do mundo como símbolo de grande elegância e distinção.

Eu e minhas manias de Jeca… O que ainda me despertava algum interesse neste quesito era o cigarro feito à mão. Os fregueses mais pobres compravam os ingredientes em separado: um pedaço de fumo de rolo preto como a consciência de Judas e o papel Colomy, na bodega de Seu Raimundo. Com uma faquinha amolada picavam um pouquinho e já enrolavam aquele tico numa folhinha do papel, com as mãos no ar, sem apoio algum. Depois, passavam a língua na borda solta e o cuspe segurava tudo. Coisa de mágicos. “É para espantar mosquito”, diziam alguns. Mosquito e, também, a mim, que dava por encerrada a minha contemplação. Quando um isqueiro a gasolina feito com ampola de lança-perfume ali punha fogo aquilo fedia como os mil e seiscentos diabos.

Eis, porém, que isso tudo agora me vem à mente com o sentimento das grandes perdas. Um desejo desmedido da volta ao passado, aos cuidados paternos e à vida sem preocupações acaba de abrandar a crítica que eu pretendia fazer a todos os fumantes.

Mas, não menos, aos adeptos dos ditos “cigarros eletrônicos”, um modismo duramente criticado, fora e dentro do campo médico, em razão dos riscos para a saúde dos usuários e circunstantes, neste último caso, injustamente, porquanto não merecemos a fumaça que nos vem aos pulmões. De resto, percebo como a velhice é espantosa. Como é que pode fazer a gente sentir saudade do papel Colomy?

OS BÍBLICOS, por Jesus Soares da Fonseca

Imagem copiada do site Pregação e Personagens Bíblicos

A Nordeste do Nordeste era uma empresa de grande porte que tinha sua matriz na capital, espalhando suas filiais pelo interior do Estado. Empregava, aproximadamente, nove mil servidores, distribuídos por suas filiais e sede central, esta com mais de mil funcionários, grande parte pertencendo ao alto escalão.

Era uma empresa moderna e bem organizada com todos os seus diversos sistemas informatizados. Na qualidade de Técnico em Informática, eu era coordenador de um dos sistemas da empresa. Quis o destino que no Setor houvesse vários funcionários com nomes bíblicos, distribuídos em áreas estratégicas, e que vieram ser os protagonistas desta estória.

Aconteceu, então, que determinada filial, estando com um problema no Sistema de Contabilidade e impossibilitada de resolvê-lo, a fim de solucionar a pendência decidiu telefonar para a matriz.

– Alô, de onde fala?
– Aqui, é da Sede Central da Nordeste do Nordeste, diga o que deseja!
– Com quem estou falando?
– Com Madalena.
– Colega, eu queria falar com o analista encarregado pelo Sistema de Contabilidade.
– Olhe, eu vou transferir a ligação para o chefe do Setor, ele te informará.
– Muito obrigado, colega.

***

– Alô, diga o que deseja, amigo! Aqui quem fala é Nazareno!
– Nazareno, é o seguinte… Você sabe quem é o analista encarregado pelo Sistema de Contabilidade?
– Depende… Qual é o teu caso? É entrada de dados ou é rolo mesmo no Sistema?
– Rapaz, para ser sincero, eu não sei bem te informar qual a área. Você compreende, sou novato nesta filial e estou voando um pouco, mas acho que é entrada de dados.
– Ah! Então é com Cruz! Um momento que eu vou transferir a ligação para ele.

***

– Alô!
– Cruz, é o seguinte…
– Um momento aí, prezado! Cruz viajou para Salvador. Quer deixar algum recado?

A essa altura, o funcionário da filial já estava ficando desconfiado. Primeiro, quem atendeu, foi Madalena, depois Nazareno, que transferiu para Cruz, que viajara para Salvador…

***

– Oh, meu chapa, como é teu nome, mesmo?
– Jordão, pode dizer!
– É sobre o Sistema de Contabilidade. Com quem mais posso falar?
– Ah, sim, vou transferir. É com Jesus.
– Com quem?
– Jesus, o encarregado pelo sistema.

***

Quando foi atendido, o funcionário já foi falando com afobação!

– Posso saber com quem estou falandooo?
– Aqui é Messias. Diga o que deseja.
– É contigo, mesmo, cara, até que enfim! É o seguinte… Ontem, nós recebemos o movimento de Contabilidade e, ao que me parece…
– Um momento, um momento, por favor! Contabilidade é com Jesus, ele trabalha aqui nesta sala, mas no momento não está. Aguarde um instante. Pronto, localizei! Ele está na sala de operação do computador. Não desligue, não, que vou transferir a ligação.

O nosso personagem já estava com os nervos à flor da pele.

– Alôôô, é Jesuus?

– Não, é João Batista! Quer falar com Jesus? Amigo, se eu fosse você ligaria mais tarde, pois Jesus está uma fera! Houve um problema no Sistema e me parece que Sudário o enrolou na história! É coisa antiga, sabe? Não fosse Verônica, sei não…

O funcionário da filial, então, endoidou de vez e fulo de raiva esbravejou ao telefone:

– O que é que vocês estão pensando? Que por acaso sou um paspalho, um otário, um maluco? Que tantas coincidências são essas? Percorri a Bíblia toda e o meu problema não foi solucionado! Vou dar parte a instâncias superiores. Aí não existe Madalena, Nazareno, Cruz, Jordão, Messias, Sudário, Batista, Verônica, Jesus, sei mais lá o quê. Coisa nenhuma! Vocês vão ver!

E desligou, deixando João Batista bastante intrigado, sem entender aquela explosão de raiva do outro lado da linha.

  • Nota do autor: Todos os personagens desta estória eram funcionários da empresa, no Setor de Informática, que por motivos óbvios preferi usar o nome fictício de Nordeste do Nordeste.

O VELHO MACEDO, por Frutuoso Chaves

Imagem meramente ilustrativa copiada do site Prosa e Poesia

O pequeno grupo já estava formado e, como sempre, bem atento. Sem interromper o trabalho, Seu Macedo, sapateiro dos bons, deu sequência à conversa. Havia acabado de lembrar do que se passara com Antonio, o vizinho, nos idos de 1944. Precisamente, em 6 de junho, o Dia D do ataque aliado às tropas de Hitler, na França ocupada.

Não que a guerra na Europa tivesse algo a ver com aquilo que se preparava para narrar, uns 14 anos depois, aos ouvintes habituais, quase todos meninos de calças curtas. A data era citada apenas para situar o momento e a razão pela qual o Açude do Ronca perdera suas águas.

Antonio ali estava, vivinho da silva, para confirmar a história. Até porque foi com ele próprio que as coisas se passaram. O peixe que já havia desentortado uns vinte anzóis seus não escaparia desta vez. Afinal, iria abocanhar ferro inglês retirado de um pedaço de trilho da Gretueste (na verdade, Great Western) e malhado em brasa por Severino, ferreiro afamado na região.

Em 6 de junho de 1944, às 11 e 30 da manhã de um sol a pino, Antonio esperava em vão por uma fisgada. Parecia que o danado do peixe entendia que, agora, perderia a batalha, tal como Hitler. Eis que, de repente, lá vem o puxão. Pedro, o roceiro, ouviu os gritos de um Antonio arrastado de cima do paredão e correu em seu socorro. Cravou as duas mãos no cós da calça do amigo e passou, também, a ser dali arrastado para a água. O mesmo aconteceu com seis trabalhadores a caminho do eito. Todos se puseram em fila indiana, um a puxar o outro, na ajuda ineficaz ao pescador.

Guilherme punha toda a fé do mundo nos contos do avô, pois citavam nomes, local, data e hora das ocorrências. Tinham, enfim, jeito e cheiro de documento. Este último fora adaptado, sem que soubéssemos, de um enredo de Mazzaropi. O neto mais novo de Seu Macedo se agoniava, arregalava os olhos e, com isso, também divertia a plateia do velho sapateiro cativa e ansiosa por desfechos sempre surpreendentes e engraçados.

– O danado do peixe emperrou. Não saiu nem quando amarraram ao jipe de Hilário a linha daquele anzol grossa como uma corda de atracar navio. O jeito foi amarrá-la, também, no trem que partia da estação. Desta vez, o bicho saiu, mas saiu com açude e tudo.

– Não foi, Antonio?
– Foi, Seu Macedo.

As gargalhadas ecoavam até o Beco do Padre aborrecendo, como sempre, a velha Zefinha, dona da casa, mulher sisuda, sem o bom humor do marido. Também, sem a estima que a este dedicavam pobres e remediados, grandes e pequenos.

Mas até que era dada, ela mesma, a certas brincadeiras. Sentada numa cadeira de balanço, mandava a garotada perfilar-se para tomar, um após outro, o mais forte beliscão que um ser humano era capaz de aplicar em canelas alheias com os dedos dos pés. Não deixava de provocar risos, contudo, em razão da galhofa que de si próprio fazia aquele bando de cobaias em fila para a tortura: os primeiros zombando dos últimos.

O que a tudo isso agora me transporta é a foto de um antigo pé de ferro há pouco descoberta na Internet. O garoto que eu fui passava horas vendo aquele velhinho de bigodes longos a cortar, coser couros e pregar solas com o auxílio de uma máquina de costura robusta, apropriada ao ofício. A fazer uso, também, de modelos de madeira de todos os tamanhos a fim de moldar os calçados para a freguesia diversa em idade e altura.

Mas eu gostava mesmo era quando ele encaixava os sapatos no velho pé de ferro para fixar o solado e o salto. As marteladas enfiavam e retorciam as brochas, ato final do mais puro artesanato. Seu Macedo recorria, nessa fase do trabalho, à ajuda dos meninos que dele se acercavam. A pedido seu, procurávamos por pontas de pregos no interior de sapatos novinhos em folha. Em vão: todas estavam devidamente retorcidas pelas batidas do martelo contra o metal.

Pequeno, franzino e quase sempre presepeiro, ele contrastava, absurdamente, com a mulher de maus bofes. Quando vi aqueles avós de “A Era do Rádio”, filme de Woody Allen, foi dos avós de Guilherme que, de imediato, lembrei.

INDEPENDÊNCIA OU MORTE! por José Mário Espínola

Imagem: AHERJ

O crescimento da complexidade das sociedades organizadas, ao longo dos séculos, passou a exigir algum grau de controle para proteção dessas mesmas sociedades, que passaram a comprar os serviços surgidos e ofertados. Foram, então, elaborados instrumentos que pudessem exercer esse papel.

Três décadas atrás, por exemplo, a sociedade brasileira sentiu necessidade da maior fiscalização do que consumia, em termo de serviços. Foi quando foram criadas as agências reguladoras, a exemplo da Agência  Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para normatizar os medicamentos; Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta a oferta de assistência privada; Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que controla a oferta de energia em todo o território nacional, e muitas outras autarquias concebidas e criadas com a mesma finalidade.

***

A proliferação de profissões da área de saúde exigiu igualmente órgãos que possam controlar e fiscalizar o exercício profissional, contemplando não apenas a qualidade dos profissionais, mas também as condições de trabalho e a exclusividade das atividades prestadas por esses profissionais, baseadas em sua formação acadêmica.

Assim nasceram os conselhos reguladores da profissão. No caso dos médicos, os Conselhos Federal e Regionais de Medicina.

Da forma como foram concebidos, os Conselhos de Medicina têm a função insubstituível de normatizar e regulamentar a profissão do médico brasileiro.

Posteriormente, foi se tornando necessário ampliar as suas funções, tornando-os paladinos não somente da defesa profissional como da qualidade dos serviços médicos oferecidos à população.

A modernização e a complexidade dos serviços de saúde passaram a incluir como atividade conselhal a fiscalização do ato médico bem como as condições de trabalho para o médico exercer a sua profissão.

Tudo isso ampliou as funções dos conselhos: além de cartorial e defensiva do médico, também a defesa da população. Foram criados, então, os Departamentos de Fiscalização.

Seis décadas depois de sua criação, os Conselhos Regionais têm nos seus Departamentos de Fiscalização o setor de maior importância. São eles a garantia do bom trabalho oferecido à população, fiscalizando as condições de trabalho, não apenas nos serviços privados, mas principalmente no serviço público.

Condições físicas de consultórios, ambulatórios, centros cirúrgicos, UTIs… Todos têm que ser fiscalizado pelos conselhos. Também condições de trabalho, número de leitos e de pacientes sob a responsabilidade de cada médico, carga horária, disponibilidade de remédios e instrumentos de trabalho.

Assim, para exercer o seu papel, os conselhos têm que ter independência para garantir a oferta de uma boa assistência à população.

Se os conselhos forem promíscuos com o patronato ou com os políticos, jamais poderão garantir o bom trabalho do médico. Nem a qualidade de seus serviços para a população, especialmente a população carente, que depende do serviço público para ter uma boa saúde.

Assim, concluímos que a falta de independência dos conselhos compromete o trabalho do médico.
Será a “morte” dos conselhos.

José Mário Espínola é Médico Cardiologista e ex-Conselheiro do CRM-PB 

COITADISMO BIZARRO, por José Mário Espínola

Imagem: Duo Oftalmologia

Ao apresentar-se num encontro em João Pessoa para cumprir agenda política programada pelo Partido Liberal, no qual arranjou emprego de presidente do PL Mulher, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro protagonizou uma cena no mínimo grotesca.

Ao passar a palavra para a sua vice-presidente, a deputada federal Amália Barros, do Mato Grosso, Michelle pediu-lhe. Pediu-lhe, não! Insistiu que ela retirasse a sua prótese ocular, antes que lhe passasse o microfone.

“Eu amo vê-la sem prótese, gente. Eu sei que seu trabalho é esse, amiga, mas tira!”. A deputada retirou o globo do olho de vidro e deu-o a Michelle, que colocou-o em seu bolso.

Sorrindo, a deputada afirmou: “Ela sempre faz isso, e eu ainda não aprendi a vir sem prótese”.

***

A cena não teve nada de espontâneo. É estudada e ensaiada. Há, claro, as exceções de sempre, mas em geral é uma prática antiga do ser humano: explorar a própria fraqueza como instrumento para auferir vantagens. Mesmo que seja um verdadeiro ou falso defeito físico, da própria pessoa ou de outra que lhe sirva de coadjuvante no exercício da ludibriação.

Gente assim aposta na comiseração excessiva muito comum a uma parcela do povo brasileiro. Esses caem fácil no velho golpe para despertar a compaixão alheia. Que funciona bem quando se tem de um lado um espertalhão ou uma espertalhona; do outro, alguém com um coração aparentemente transbordando de piedade pelo coitadinho ou coitadinha. No meio, uma multidão de incautos ou fanáticos movidos a mentiras, embustes, impostura, armações e produzidas fake news que inundam o zap e telegrans dos ingênuos e néscios de todo calibre.

Chamam essa prática de exploração do coitadismo. Encontramos, pela vida e pelas ruas, muita gente que cresce e faz carreira agindo como coitado. Alguns recebem com muito gosto benesses de madrinhas e padrinhos poderosos para compor a cena pública e comovedora no papel de alvo da ‘extrema bondade’ de quem lhes dá amparo e carinho supostamente desinteressados.

Isso dá certo quando é oferecida ao mesmo distinto público um ato convincente para os dóceis crédulos. E tal montagem ajuda, também, a desviar a atenção (ou atrair o perdão) para possíveis defeitos, pecados ou crimes tanto do coitado quanto de quem o acolhe.

No Brasil esse truque tem mostrado eficácia, sim. Mesmo que o candidato deficiente não tenha conteúdo para oferecer, sua exposição pública o torna competitivo. Do mesmo modo, dá resultado algum(a) mala demonstrar publicamente, repetidamente, que apoia pessoas com deficiência. Ainda que, escancaradamente, esteja apenas usando PCD para ganhar ponto e voto junto ao segmento.

Toda essa esperteza vai na mesma linha do uso recente que fizeram de uma facada mal-explicada. Aquela… Aquela que ajudou muitíssimo a fazer a diferença nas eleições de 2018. E o ‘coitado’ dessa história, pelo visto, fez escola. Dentro de casa.