ENQUANTO ALZHEIMER NÃO CHEGA, por Francisco Barreto

Painel com fotografias de alguns mortos e desaparecidos durante a ditadura (Arquivo Nacional)

O Mal Alzheimer não apenas obscurece as nossas memórias e recordações; implacavelmente, sepulta as humildes histórias dos mortais

Em cada esquina, a nós os velhos, nos irrompem as ameaçadoras e sinistras teses de Alois Alzheimer sobre as nossas memórias que despencam num desfiladeiro do esquecimento. E como os nossos pensamentos e lembranças vem sem aviso prévio, e nos assomam é da boa virtude reparti-los, evitando assim, não permanecer diante do nada.

Já nos advertiu Martin Heidegger, o profeta existencialista, provavelmente secundado por Alzheimer seu confrade em Tübingen, que a memória dos homens é pendular entre os sentimentos de angustia que amedronta, e a felicidade que nos resgata do esquecimento do nada ter sido.

Como os malefícios preconizados pela perda de memória que nos encilham, diante dos após dias que se vencem, parece ser iluminado recorrer a incursões felizes ao se debruçar á memória deixar emergir os bons momentos, e agirmos como náufragos que desprezam as cores dos peixes e submergem à superfície para o respirar e recordar. É formidável olhar para trás, e a despeito da chaga “Alzheimeriana” que nos brutaliza. E apesar disto, por vezes quando ainda somos capazes de deslindar movidos pela certeza de que continuamos os mesmos transitando nos nossos sentimentos de consciência e ousadia.

Todas as contas feitas até parece que foi ontem passado mais de meio século quando ocorreram as turbulências do arbítrio, prisões, torturas, cassação, perseguição e processos políticos que me inclinariam à completa perda da liberdade. Fiz uma dura opção ao deixar a terra e os meus.

No ontem distante, vivi muito longe e convivi com a dialética do sofrimento que se espraiou na certeza de que o ânimo sair pelo mundo pelo desejo de se sentir livre do encilhamento do arbítrio. A massacrante e sofrida distância, longe e desolado foi difícil embora um alivio, ainda que, muito distante de uma tênue felicidade.

Exumando longas décadas, e retroagindo ao difícil ano de 1968/60, a minha juventude estudantil militante só havia duas dolorosas alternativas. A clandestinidade na luta armada, ou a opção de sair da cena do arbítrio e viver fora do país. Difícil decisão, porque ambas implicavam severas consequências.

Resisti aderir à resistência armada. Estribado na minha compreensão de que não tinha suficiente background ideológico, acreditava ainda que a relação de forças era brutalmente desfavorável para a nossa carbonária juventude, e que, finalmente, que não tinha armazenado coragem ideológica suficiente para consumar uma opção tão grave que prenunciava fatalidades letais.

Pressupunha ainda, que o despreparo político, ideológico e militar da juventude que eu havia ombreado no movimento estudantil era embrionário e inexistente. Não conseguíamos ir além de coquetéis molotov. Em segundo lugar, era mais do que presumível que as forças arregimentadas pela repressão militar iriam nos esmagar a qualquer custo diante da incipiente e pálida resistência que se armava. O poder de fogo do arbítrio seria impiedoso e massacrante.

A opção de me retirar de cena, e a resistência interna ao arbítrio não foram fáceis. Custou-me durante algum tempo, me pesava a sensação de um certo abandono e possível declínio da minha precária consciência da luta. Conhecia de perto a situação inorgânica, atropelada, e espontaneísta das nossas militâncias e, sobretudo, das equivocadas e carbonárias lideranças de que não teriam condições objetivas de ir ao enfrentamento do aparelho ideológico e militar que dominava a cena.

O trucidamento do valoroso Che Guevara era um argumento imbatível A nossa juventude, estribada em imatura rebeldia comprometida com um formidável e indeclinável desafio sob o signo das liberdades era extremamente sedutor. Difícil era desconsiderar a real desigualdade do letal combate entre a repressão e os sinais claros de nosso infantilismo infestado de utopias e de adolescências mal resolvidas.

Tive um encontro com militantes da ALN de Marighela, no Rio em Abril de 69. Das nossas conversas advoguei a tese de que a luta armada, do foquismo, embora fosse corajosa era inconsequente. Poderia ter um final suicida. Sempre respeitei a grandeza e a coragem dos que estavam optando pelo combate armado cujos efeitos ocorriam à conta das investidas de uma minúscula guerrilha fundada na surpresa dos ataques.

A dimensão amorosa dos militantes pela luta não for o suficiente para evitar o sacrifício que se verificou pelas perdas de vidas de jovens valorosos e idealistas. Compreendendo todas as impossibilidades, e feitas às contas na minha rente percepção política, não hesitei em seguir o recado histórico e sábio do Lênin – “Um passo adiante, e Dois atrás”.

Na minha decisão ficou claro que os sentimentos dos meus interlocutores não foram além de determinados e imaturos desejos estavam impregnados de emocionalidade e utopias quanto às condições históricas objetivas de realizar um enfrentamento profundamente desigual contra a Ditadura.

Os que não saíram e, com enorme coragem, ficaram, e optaram por um supremo sacrifício foram imolados, violentados, e deram suas vidas por um combate desigual e letal. A estes, minha mais distinguida admiração e respeito e que lutaram por conquistas históricas que a vida não lhes concedeu.

A nós, ainda restam as tristes e sofridas lembranças das vidas perdidas no auge do ardor de suas juventudes. E, se quiserem um dia escrever sobre estes heróis, apenas, digam que entre a data de seus nascimentos e de suas mortes existiram todos os dias que foram dedicados ao Brasil movidos grandeza de seus espíritos infantis e libertários.

A imolação da vida nem sempre é sucedida de uma história vitoriosa. Entre nós, para sempre, ficará o sentimento, e as tristes lembranças de todos os que tiveram a ousadia de sacrificar prematuramente as suas vidas. O tempo em sua razão histórica demonstra que a extraordinária coragem e determinação dos que lutaram bravamente tiveram aniquiladas as suas juventudes.

Há meio século, fui atraído pelo espirito libertário das luzes de Paris, que me atiçou o desejo e o ímpeto de não mais viver o pesadelo da Ditadura. Foi uma estranha e prudente decisão que, talvez tenha me patrocinado uma sobrevida, passando apenas a viver uma precipitada existência, e durante certo tempo uma inconformada dialética do sofrimento. Confesso que sofri, vivi uma via crucias e que não errei, ao declinar da minha possibilidade de enveredar num enfrentamento de um combate tão brutal e violento.

Ao assumir o meu gesto de partir, e ainda até hoje sou convicto de que foi como um duro e necessário recuo. Lágrimas derramei-as, há mais meio século atrás e me lembro de quando essas embaçavam o meu olhar. Derramei-as sentindo a desolação e a traumática dor da distância. dias, meses, anos de torturas e sofrimentos psicológicas, que vinham e me assolavam todo tempo.

Ainda ontem, vivi, em terras estranhas sem mãos e ombros para me segurar num salto dado no escuro. Deslizava num despenhadeiro em queda livre sem amparo que me amortecesse. Apenas despencava, com a certeza de que do chão não passaria.

Ave, Brasil! Os que morreram lutando pela Liberdade um dia te saudaram.

É BOM ESCLARECER
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