INACEITÁVEL! por Babyne Gouvêa

Imagem: Agência Brasil

É prazeroso assistir aos jogos de futebol transmitidos aos domingos. Contrariando essa afirmação, o último dia 21 foi desastroso. O estádio do jogo Valência X Real Madrid foi transformado em cenário de gladiadores, à semelhança das arenas da Roma Antiga.

Com uma diferença: dessa vez, todo um grupo agredia um único guerreiro naquele jogo do Campeonato Espanhol. Um alvo chamado Vinícius Júnior, brasileiro, negro, origem humilde. Provavelmente, o seu talento  incomoda muito quem pergunta como um atleta “de cor” pode brilhar tanto nos gramados.

Não há nada mais vil do que o preconceito. O racismo, particularmente, dói. É dor para a vítima e para quem assiste. Foi o meu caso. Vi as cenas me contorcendo de indignação e sentimento de impotência, por não poder fazer algo naquele momento.

Ao assistir àquela trágica cena, chorei. Chorei pelo jogador e por todos que passam por situação análoga. Procuro entender por que a cor provoca tanto ódio entre seres (ir)racionais. Várias indagações faço a mim mesma tentando compreender o incompreensível.

A vítima se defendeu, em nenhum momento se acuou. Desde que estreou no Real Madrid, ele sofre ataques racistas. Cansou de conviver com essa situação. Adotou um comportamento de quem quer dar um basta, partiu para a ofensiva.

Com essa conduta participou ao mundo a barbárie da qual estava sendo vítima e contribuiu para que as autoridades espanholas e brasileiras tomassem providências para combater a intolerância racial.

Na prática, o racismo vai muito além de ofensas verbais. Temos um longo processo de segregação que mantém uma cadeia de exclusão dos negros na sociedade dominada por brancos.

Historicamente, os negros foram sistematicamente escravizados, tratados como animais e, após a abolição do escravismo nos países ocidentais, excluídos e marginalizados. São fatores que tornam ainda mais abomináveis o preconceito e o ódio contra pessoas negras.

Queremos voltar a assistir aos jogos de futebol, basquete e outras modalidades de esportes sem ter que presenciar manifestações estúpidas, desumanas.

Todo o amor, todo o apoio e toda a solidariedade a Vini Jr.

LIVRE PRAZER, por Babyne Gouvêa

Menina, lendo um livro | Foto Grátis

Imagem: Freepik

“Você é livre quando gasta o tempo de sua vida com as coisas que te motivam”. Com essa menção de Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, mergulhei naquilo que absorve o meu tempo: ler e escrever.

Cada um segue um estilo quando a vontade é escrever. Pega o lápis, ou usa os dedos num teclado, e reproduz o que está na mente. Com a mesma liberdade escolhe a leitura do seu interesse. Comigo as ações de ler e escrever funcionam livremente.

Na adolescência, em cartas trocadas com o meu avô Eugênio, costumava narrar as minhas férias no Rio, com riqueza de detalhes. Ele, com a sua bela grafia, me incentivava a ser escritora, “quando crescesse”. Eu ria, e lhe dizia que seria presunção, se assim fosse.

Hoje, estou cá quase setentona, lendo e escrevendo, aceleradamente. O fato de saber que não terei tempo suficiente para ler tudo o que gostaria me angustia. Corro, tento devorar os livros em busca do tempo perdido. O desejo pelo saber conduz os meus passos.

No vai e vem do ler e escrever sigo para a escrita e procuro ser simples, embora muitas vezes escorregue e não consiga. Atribuo às distintas leituras que faço; acabo absorvendo redações incomuns na atualidade.

Volto a ler e seleciono o que me satisfaz. Sou curiosa e gosto de conhecer um pouco de tudo nas literaturas. Viajo nas letras e me torno protagonista nas histórias. Chorar, rir, tensionar, descontrair, são sentimentos que tomam conta de mim quando leio. Sou incapaz de ler por ler. Entro fundo na narração.

A escrita me aguarda e retorno a ela. Sinto prazer ao escrever. Entregue aos escritos busco inspirações para as páginas em branco. Anoto detalhes que levam a me conhecer melhor. Sinto o amor das letras; junto a elas não me perco e tento ter domínio de mim mesma.

A liberdade de ler e escrever está assim garantida. Adentro na felicidade de nos sentirmos livres para imaginar ideias que constroem os nossos prazeres.

TEMPOS BICUDOS, por Frutuoso Chaves

Imagem: petz.com.br

Em todo alvorecer é assim. Mal o Sol cuida de tanger uns restos de noite e já ocorrem os primeiros assovios. Uns sopros curtos e indecisos entre bocejos, quero crer. Quem desse modo anuncia a própria existência ainda não o faz totalmente desperto.

Não o vejo nesses momentos, mas imagino que se espreguiça, estica o pescoço e as pernas ao limite dos tendões. Céu mais claro, os gorjeios se elevam e se afirmam. Logo, dá para vê-lo no galho mais alto da algaroba.

A árvore escapou do corte total pelo grupo contratado para o acabamento do prédio que soma 28 andares, a poucos passos da minha varanda. A poda, apesar de severa, limitou-se às galhadas mais próximas dessa construção.

Todos os dias, com sono de passarinho, eu tenho ganho do Sol. Ergo-me mais cedo, o que me permite acompanhar os primeiros movimentos da avezinha.

Penso que ela se acostumou a isso e que disso gosta. E a impressão também me faz supor que seu primeiro canto, não mais um solfejo e já com todas as sílabas, é a mim dedicado. Afinal, trocamos olhares e estamos de pé, sozinhos, nuns ticos de sereno, quando o mundo ainda parece dormir.

Dei para me preocupar com a sorte desse vizinho. Já notei que é o único morador da algaroba. Os outros pássaros que nela trinam assim o fazem, dia já quente, em passagens rápidas. Descansam as asas e em poucos segundos retomam o voo do qual não se sabe o propósito nem o destino. Não há sentido na pressa que então demonstram, pois apenas vagueiam com invenções de roteiro, como penso ter ouvido de alguém. Nenhum deles veste o preto e o amarelo do residente.

Mais tarde, a caminho da padaria, conforta-me a esperança de que alguns bem-te-vis da Praça Sílvio Porto, a dois quarteirões da nossa rua, o tratem com o respeito e os cuidados dispensados, naturalmente, entre as criaturas que se aceitam e se gostam.

Ao retornar com um biscoito a ser esfarelado num cantinho da calçada, atino, porém, que estes não são tempos naturais. E a preocupação me volta.

São sentimentos confusos os que então me assaltam. Penso bem e, por fim, decido que não é um pária este ser com quem tenho acordado para os afazeres e obrigações de cada novo dia. Para meu conforto espiritual, eu me convenço de que nada o afasta do convívio com os seus. Belo, garboso, com asas que o levam a mergulhos e rasantes assombrosos, ele deve ter, de fato, quem o queira por perto e com quem se aninhar.

A solidão, em certas horas, talvez seja uma opção pessoal, uma fuga deliberada para o sossego noturno, uma providência necessária ao repouso da alma.

São tempos difíceis para bichos e gente estes que atravessamos. O que temos visto e ouvido, cotidianamente, beira os limites da barbárie. Facções se armam, inimizades se ampliam e elos se rompem, não raramente, entre nascidos no mesmo ninho.

O ódio floresce, absurdamente, com o discurso único da honradez, da ética e da decência. Aos pássaros, como a muitos de nós, deve estranhar o fato de que isso não sirva ao congraçamento, mas à desarmonia. Deus não há de caber por igual em todos esses nichos, assim considero e assim deve também acreditar meu bem-te-vi. Talvez seja por isso que dormimos pouco.

O grupo da Praça não corre para os meus farelos. Nem o passarinho da minha estimação, se entre eles estiver. É possível que não gostem de biscoito, ou, no seu caso, não queira revelar a amizade que edificamos, respeitosamente, com as devidas reservas. Ele, do seu galho. Eu, da minha varanda.

As rolinhas, sim, me chegam quase ao alcance da mão e adoram aquilo que lhes jogo. Fugidias e assustadas nos sítios e roças, estas últimas, imprudentemente, perderam o medo dos humanos, quando nas ruas. Urbanizaram-se, contrariando a natureza.

Uma coisa eu asseguro. Apesar do aparente descaso com que sou tratado em praça pública, não há desentendimentos entre mim e meu amigo. Não, isso não. Somos imunes à intriga. Eu o favoreço com minha atenção e meu carinho e ele não me sonega os gorjeios matinais.

Bem te vi, te vejo e verei, amiguinho. Que teus dias sejam sempre calmos e fartos. Que as larvas e besouros te encham o papo. É o desejo sincero deste que, mais do que nunca, anda a engolir sapos.

UM ENCONTRO NAS BAHAMAS, por José Mário Espínola

Médicos da turma de 1977 reunidos no Bahamas

E eis que Marinaldo voltou. Após passar cinco anos agitando a nossa turma à distância, finalmente ele chegou à cidade, trazendo consigo a sua habilidade de conciliar as opiniões irreconciliáveis.

Pois foi o que aconteceu. Em torno de si, alguns rapazes da nossa Turma Professor Genival Veloso – Médicos de 1977, voltaram a se reunir com a espontaneidade que sempre foi a nossa característica, nas priscas eras do curso médico.

Se não foram todos, alguns dos mais expressivos lá estiveram presentes. O encontro foi no Bar e Restaurante Bahamas. E foi como nos velhos tempos.

***

A princípio, houve um mal-entendido na escolha do local. Como fazia muito tempo que ele não nos dava as caras, nem na cidade, alguém, com a mente paralisada cinco décadas atrás, sugeriu que nós o levássemos para o cabaré.

Como estava organizando o Grande Encontro, fui até a Rua Maciel Pinheiro fazer uma reserva. Voltei de lá decepcionado: todos os cabarés foram extintos! Só faltou construírem lá um templo evangélico. Um daqueles bingões do Edir Macedo, como aquele da Epitácio Pessoa.

Só então me lembrei de uma célebre entrevista dada ao semanário A Carta, do falecido jornalista Josélio Gondim, dada por Hosana, também já falecida, a maior cafetina da cidade no passado e proprietária do melhor cabaré da Maciel Pinheiro.

Pois bem: Hosana atribuiu às alunas da Área 3 da UFPB, especialmente do curso de Arquitetura, como as grandes responsáveis pela extinção dos rendez-vous de João Pessoa.

Assim ela explicou: a maioria dessas alunas era de fora, boa parte do Rio de Janeiro, portanto muito evoluídas. Nos anos 70, elas passaram a prestigiar os poucos motéis da cidade, estimulando a geração de mais casas de hospedagem rápida. Em consequência, veio o declínio dos cabarés. Mas isso é outra história.

O fato é que tínhamos que levar o Grande Marina para algum lugar da cidade onde pudéssemos nos encontrar em torno dele. E foi ele quem decidiu.

Eu o havia chamado para jantarmos um nhoque de batata doce com carne de sol no Café São Braz do Manaíra Xópin. Mas xópin center é o que não falta em Brasília, e Marinaldo estava farto deles. Então, a seu pedido marquei o encontro na Sorveteria Friberg, pois ele queria praia, sentir o cheiro do mar! E para lá fomos cada um de nós.

Só que não dava para levar quatro horas de papo na base do sorvete. Então, atravessamos a avenida e fomos para o Bahamas, à beira-mar, onde pudemos comer do melhor camarão, regado a cervejas, uísque, coquetel com gin, água de coco e água com gás.

***

O papo não podia ter sido melhor. Juntamos nove dos piores, digo, nove dos melhores rapazes da Turma Genival Veloso de 1977.

Além de Marinaldo, Diá, Everaldo Belmont (êpa!), Lupicínio, Marcílio, Pedro Félix, Delfim e este cronista que vos fala, a grande surpresa foi a presença de Raldes, após tantas décadas longe da turma. Mas foi bem-vindo e teve uma boa participação.

Até Humberto Espínola, meu irmão, esteve presente, a pedido de Marinaldo, de quem é muito amigo desde quando Humberto morou em Brasília, onde jogavam futebol-de-botão.

Os assuntos variaram muito. Conversou-se de tudo, a maioria impublicável. OPS!: eu quis dizer publicável.

A alegria era geral. Relembramos os colegas, as colegas, os mestres, as melhores (e as piores!) histórias (Lupicínio estava com a memória afiada! Everaldo também).

Puxa, quantas histórias! E que histórias! Lembranças de figuras inesquecíveis, alguns que já se foram, como Marconi Popeiro, Fernando Ôinho, Chico C.A.

Senti muito a falta de Elias, que junto comigo descobriu, estudou e classificou a Raldose, uma dermatozoonose que atacou alguns colegas de nossa turma. É, portanto, coautor.

***

Algumas das melhores histórias de nossa turma tiveram Chico C.A. como protagonista. Duas vieram à baila no papo do Bahamas.
Uma explicação: Chico ganhou o apelido “C.A.” porque as suas hipóteses de diagnóstico eram sempre “câncer”. Até em Psiquiatria!

A primeira história. Chico C.A. comparecia às aulas, mas não assistia, pois ele não prestava atenção: só fazia copiar. A disciplina de Gastroenterologia foi dada no futuro auditório do Hospital Universitário, ainda em final de construção.

Foram juntadas duas turmas numa só: 77.1 e 77.2. Para evitar que algum aluno respondesse à chamada e fugisse da aula, os professores só faziam a chamada no fim, logo após a aula.

Nessa manhã, o professor José Eymard Medeiros deu todo o assunto; e logo que terminou ele iniciou a chamada. Pois Chico C.A. não percebeu o fim da matéria e copiou a chamada até o número 24, quando alguém lhe disse: “Pára, bicho! É chamada!”.

A outra foi numa aula de Neurologia. O professor José Alberto Gonçalves, figura muito séria, austera até, estava versando sobre Crise Convulsiva. E Chico copiando. Súbito, Zé Alberto interrompeu a aula para fazer um apelo aos futuros médicos, no sentido de desmistificar a Crise Convulsiva, pois muitos pacientes se agravam e complicam pela falta de socorro. Pois entre a população existe o falso medo de contaminação com a hipercialorréia, pois acham que “a baba pega”. E Chico copiando.

Feito o apelo, Zé Alberto perguntou para a turma: “Alguma pergunta?”
Chico parou de escrever e levantou a mão: “Professor, a baba pega?”.
Zé Alberto quase bate nele…

***

Foi esse o ambiente do nosso encontro, ao longo da noite. Cada um que contasse a sua história. Como aquela de Lupicínio, que chegou atrasado e perdeu a chamada da aula de Medicina Tropical. Ao final, pediu ao professor Mororó para tirar a falta dele. Mas este não tirou a falta. E justificou: “Se fosse a Velúsia ou a Maguy, perfumadinhas… Mas é o Lupicínio, suado, cheirando a gasolina de motocicleta…”

Essa foi APENAS uma das muitas histórias. Principalmente as de Belmont, que de tão verdadeiras, verdades afirmadas por ele com tanta veemência, que não podem ser publicadas.

***

Senti-me rejuvenescido, como se tivesse voltado aos anos 70, às noites de estudo na casa de Raldes, às tardes de farra ao final do período, quando depois da prova final nós nos reuníamos num bar para escolher a frase mais idiota do semestre.

Encontros assim só me fazem bem. Espero que Marinaldo volte mais vezes. Ou, melhor ainda, que não esperemos por Marinaldo, para nos encontrarmos outras vezes. E de preferência com as meninas presentes, pois elas não ficaram quietas ao longo do curso médico! Devem ter também as suas histórias. Talvez mais (im)publicáveis do que as nossas e, portanto, mais deliciosas!

Vamos pedir a Maria Clara que organize com Quintino, Marise e Walter outros encontros, tão inesquecíveis quanto a nossa festa dos 45 anos.

Que venham as meninas. Não consigo esconder a minha ansiedade por esses futuros encontros!

SÓ QUERIA ENTENDER, por José Mário Espínola

Imagem: Reading Acts (Reprodução)

Imagem: Reading Acts (Reprodução)

Meu querido amigo e colega,

Já faz um bom tempo que quero entender o que aconteceu, mesmo, com a cabeça das pessoas que conheço. Mais exatamente a escolha da idolatria política, que mais se assemelha à religião. Eu compreendo que o ser humano tem a tendência a venerar um pensamento, geralmente religioso. Mas existem aqueles que não veem sentido nisso. Porém, nem por isso podem ser classificados como não-humanos, ou pessoas melhores ou piores que a maioria dos humanos. Eu, pessoalmente, não tenho não tenho nenhuma religião. Mas daí a venerar pessoas de carne e osso, falíveis, complexas, há uma grande diferença. Então, voltemos ao nosso assunto.

Compreendo que a opção político-ideológica geralmente tem alguma influência. A pessoa pode ter um pensamento liberal que, dentro do espectro político, possa ser situado à direita. Há aqueles que não têm nenhuma identificação ideológica. Ou até mesmo abominam a política. Nem por isso deixam de ser pessoas honestas, bondosas, responsáveis, bons profissionais. São aquelas que se situam no centro do espectro político. Outras pessoas têm uma tendência mais social, mais preocupada com o pensamento coletivo, com as minorias à margem da sociedade e aquelas que simplesmente vivem para servir à elite social. As pessoas que têm esse pensamento podem ser situadas à esquerda do espectro político. É o meu caso.

Feita essa introdução, importante para o nosso diálogo, vem a pergunta: por que tantos brasileiros em torno de mim (parentes, amigos, vizinhos e, especialmente, colegas médicos) fizeram a opção pela extrema-direita nos últimos anos? Compreendo a aversão provocada por erros cometidos nos três últimos (e únicos, nos 134 anos de República) governos administrados pela esquerda. Alguns muito graves foram cometidos e foram objetos de processos rumorosos. Mas também outros erros, comportamentais. Coisas como exageros de expressões que possam soar mal. Do tipo “todos, todas e todes”; “presidenta”; “eu, enquanto…”; “posso fazer uma colocação?”; “politicamente incorreto”; “empoderada”… E tantas outras que causaram aversão a muita gente neste país.

Algumas dessas expressões também não me agradam, e por isso eu não uso. Mas respeito quem as usa. No entanto, isso não chega a embotar os benefícios, as conquistas sociais, o crescimento da importância do Brasil na ordem mundial e o grande desenvolvimento econômico dos primeiros oito anos dessas administrações de esquerda, com reflexo muito positivo para todas as classes sociais, principalmente as marginalizadas pelo capitalismo. O que incomodou mesmo, mais exatamente, as elites brasileiras, foi a política social adotada pela esquerda quando esta administrou o Brasil. Compreendo essa rejeição, pois a nossa sociedade é extremamente conservadora. É tão elitista que até o século 21 ainda não desmontou a senzala: apenas aprimorou o escravagismo.

Entendo, porém, que essa política é extremamente necessária, voltada para uma maioria da população que sempre foi marginalizada, permitindo-lhe oportunidades nunca dantes imaginadas: desde o acesso à educação superior até as oportunidades de ascensão política, econômica e social. Mas digamos, contudo, que você seja alguém que se posicione à direita e todas as iniciativas citadas acima lhe incomode. É uma questão de escolha pessoal, que se há de fazer, senão respeitar as suas escolhas? Gostaria apenas de entender.

Assim, meu amigo, explique: por que escolher, para idolatrar, um ídolo de pés tão sujos e de barro? Justamente a antítese da formação doméstica, religiosa, educacional e ética da maioria esmagadora daqueles que até hoje o idolatram? Vocês não tinham opção melhor? Senão, vejamos. Vamos começar pelo item Educação Doméstica. Faço comparações com os exemplos que vocês tiveram ao longo da formação familiar: vocês viam esses exemplos nos seus pais? Assistiram alguma vez seus pais tratarem as pessoas humildes, especialmente mulheres, com o desprezo e a agressividade que assistimos estarrecidos ao longo dos últimos anos? O comportamento acanalhado? A limitação de vocabulário? As expressões vulgares? O ódio explícito?

Honestidade. Vocês conhecem algum funcionário público que nunca teve outra renda senão a proveniente do erário, acumular de forma honesta a riqueza que esse cidadão e seus familiares hoje exibem? Comportamento ético. É honesto mentir sem nenhum escrúpulo, descaradamente, além de proteger notórios marginais e pessoas nocivas à sociedade? Formação Religiosa: o que foi que vocês aprenderam, em casa, na escola e na igreja? Vejam, por exemplo, os Dez Mandamentos, dogma do cristianismo. Vosso ídolo fere pelo menos seis. São eles:

  • 2º: Não tomar o Seu santo Nome em vão. Diuturnamente, para impressionar as pessoas religiosas, ele costuma invocar Deus, mesmo que escancaradamente não esteja sendo sincero.
  • 6º: Não pecar contra a castidade. Você considera casto alguém que se vangloria de só ter usado o apartamento funcional de deputado federal para atividades extraconjugais? Alguém que admite estuprar uma mulher, desde que ela enquadre-se nos seus critérios
  • 7º: Não furtar e…
  • 10º: Não cobiçar as coisas alheias.

Estes mandamentos foram simultaneamente violados em pelo menos uma ocasião: quando tentou apossar-se dos presentes milionários que foram ofertados pelo príncipe da Arábia Saudita, por motivos AINDA não esclarecidos.

  • 8º: Não levantar falso testemunho. Ao longo de toda a sua vida pública é só o que ele tem feito, irresponsavelmente, tornando vulgar as máximas: “Não se escreve o que ele diz.” E também: “Ele não é autor que se cite”.
  • 9º: Não desejar a mulher do próximo. Já vai no terceiro casamento. Até quando? Nem Deus sabe!

Pois é esse o mito adotado como modelo por uma boa parcela da população brasileira. O que me permite concluir que ele não passa de um espelho: vocês são exatamente assim!

E OS BURROS NÃO SE ENTENDERAM, por Jesus Fonseca

Imagem copiada de El País

No meu tempo de criança, quando minha família morava em Misericórdia, hoje Itaporanga, na Rua 5 de Agosto, havia quase em frente de nossa casa dois pés de ficus benjamina, conhecido mais como pé de figo. As árvores ficavam em frente à casa vizinha.

Naquela época, o Ficus ou Pé de Figo era a árvore que arborizava nossa cidade. Frondosa, propiciava muita sombra. Essas duas, que assistiam a nossa infância, distavam uns oito metros uma da outra, com suas copas entrelaçadas fornecendo-nos sombra até o meio da rua.

O terreno de terra batida, recebendo a sombra protetora, era o palco de nossas brincadeiras – batalha de caco de telha enterrado no chão, jogo de castanha, de bolinha de gude, amaré, peteca e muitos outros. Entretanto, a molecada se comprazia, às vezes, com outra, digamos assim, inusitada. Urinar num formigueiro! Perto do tronco de uma das árvores havia um cujos habitantes eram as destruidoras formigas de roça.

Durante o dia, se ninguém viesse incomodá-las, viam-se três ou quatro formiguinhas entrando e saindo daquele pequeno orifício na terra. Quando a meninada fazia sua traquinagem, urinando na entrada do formigueiro, num espaço curto de tempo, cinco segundos no máximo, um espetáculo impressionante acontecia! Centenas de formigas endemoniadas surgiam na boca do formigueiro e se espalhavam rapidamente, procurando picar o seu agressor.

A gritaria se fazia presente, cada um se afastando como podia das formigas embravecidas. Algumas vezes, um menino desprevenido sofria a sanha dos insetos. Gritos, choros e lamentos do desditado, risadas e gozações dos demais. E lá se foram os bons tempos de nossa 5 de Agosto. Não tínhamos a parafernália eletrônica de hoje, mas éramos felizes com nossos ”rudes” brinquedos, frutos de nossa imaginação.

Jamais meu cérebro me presentearia com o fruto destas recordações, se não fosse o desalento, a aflição enfurecida, em não saber o que fazer, daquela garotada, vendo seu espaço de lazer invadido por Otacílio de João Crizanto, como era conhecido, que aparentava ser pessoa de boa índole, risonho, brincalhão nos seus 22 ou 23 anos de idade. Morava no sítio Cajazeiras, propriedade dos Crizanto, daí o epíteto como era conhecido.

Vinha à cidade geralmente aos sábados, conduzindo, às vezes, um burro de carga, ocasião em que amarrava o animal num daqueles pés de figo, citados parágrafo acima. Devo dizer que, aos sábados e domingos, a meninada não se utilizava das sombras benfazejas das frondosas árvores, para seus folguedos semanais. Por que? Não sei explicar! Talvez em função da feira que acontecia naquele dia, lá em Misericórdia.

Contudo, me reporto aqui a um dia da semana, quando a molecada se comprazia com seus brinquedos embaixo das figueiras. Ignorando a criançada, Otacílio amarrou seu burro num dos pés de ‘figo’ e cheio de galhofa zombou dos meninos com chacotas – “cuidado o burro é brabo e é coiceiro!”.

Que fazer? Indefesos e privados maldosamente em suas brincadeiras, os meninos  resolveram dar o troco! Juntos, quatro ou cinco, passaram a urinar no bueiro das formigas e saírem em desabalada carreira para as calçadas em frente.

Segundos depois, o que se viu, foi um espetáculo dantesco! Centenas de formigas afloraram à boca do formigueiro em busca de seu agressor e o encontraram. O pobre do burro, atacado pelas terríveis cortadeiras, dava coice para tudo que era lado. Para cima, de lado, procurando se desvencilhar da corda que o segurava à arvore.

A garotada, nas calçadas em frente, se deleitava aos gritos com a cena.
Ouvindo a gritaria e o ronco do animal, Otacílio correu para solucionar o episódio. Ao tempo em que chegou próximo ao jegue, este conseguiu se soltar e lhe aplicou um tremendo coice saindo em desenfreada carreira, relinchando.
Restou a Otacílio, estatelado no chão com fortes dores, vociferar para garotada, a esta altura, silenciosa, talvez por medo, ante os impropérios do desditoso rapaz – “vocês não tem mãe, não, bando de ‘fi’ duma égua!”.

TERRA DE NINGUÉM, por Frutuoso Chaves

Imagem copiada de imagocomunicacion.com/diga-33/

O reencontro casual com um amigo de infância a quem há muito eu não via levou-me ao rum que não posso tomar e aos salgadinhos proibidos por dois arengueiros: a mulher e o endocrinologista. Acontece que determinadas situações sempre justificarão as brigas em casa e no consultório médico. A de ontem foi uma delas.

Eu já me punha à procura do Uber depois da compra do livro recomendado por uma alma santa, dessas que não bebem nem arengam, quando uma voz do além gritou meu nome. Virei-me para ninguém. Não dei mais do que cinco passos e lá me veio novo chamado. Olhei em volta apenas para caras desconhecidas logo atinando que uma daquelas colunas do Shopping escondia um moleque. Assim, decidi não mais dar-lhe ouvido.

Foi quando aquela cara vermelha e redonda veio ao meu encontro com um sorriso de orelha a orelha. Os primeiros minutos de conversa na Praça da Alimentação nos recomendariam a mesa e a carta de bebidas no andar superior.

Os assuntos mais sérios surgiram quando já havíamos esgotado a bisbilhotice: o flagrante que deram naquele viúvo inconsolável numa das ruas mais suspeitas do Recife, a coragem do padre ao peitar o poderoso chefe político e o medo do sargento, homem por todos temido, quando do anúncio da invasão da pequena cidade por um bando de sem-terra, no auge das Ligas Camponesas. Houve exercícios de guerra na rua principal com meia dúzia de soldados a simular disparos, deitar, rolar e se esconder por trás dos troncos de fícus. O que então nos chegaria era um grupo numeroso de roceiros, enxadas nos ombros, para a convocação dos companheiros de infortúnio à luta pacífica por um pedaço de terra onde plantar e criar os filhos.

Meu amigo vinha de uma bateria de exames caríssimos. Lastimava o desaparecimento dos antigos médicos de família. “Lembra quando Dr. Manoel saía de Itambé, pasta na mão, para visitas domésticas à clientela de Itabaiana, Juripiranga e Pilar?”, perguntou-me com o olhar distante, talvez fito nas salas de estar da nossa infância. E nas de refeição, pois o bom homem não se negava aos convites para o almoço, ou o jantar.

Contou-me que, oito anos atrás, quase sem dinheiro, reviveu um pouco daquelas “consultas humanizadas” – termo por ele empregado – ao ser atendido por um médico de sotaque estrangeiro embarcado desde Cuba para as Unidades Básicas de Saúde deste Brasil sofrido e desigual. Consulta minuciosa, demorada. Aperta aqui, ausculta ali, perguntas e mais perguntas com as cadeiras lado a lado, sem a barreira da mesa e, por fim, a prescrição correta do remédio, a julgar por seu pronto restabelecimento.

Um assunto puxa o outro e lá veio a observação de que o Programa Mais Médico não foi feito para cubanos. Estes surgiram como alternativa aos nacionais quase sempre indispostos ao exercício da profissão nos redutos menores e mais remotos. “Não há quem tire filhos adolescentes nem mulher de médico das beiras de praia e shopping-centers”, riu meu amigo. Concordei com ele e, em benefício da conversa, acresci um testemunho pessoal.

Quando, pela primeira vez, exercia a Presidência do Tribunal de Contas da Paraíba, o conselheiro Arnóbio Viana instituiu o Programa Voluntário do Controle Externo. A sigla era um achado: “Você”. Assim, também, o lema: “Você é o Fiscal”.

Os tais voluntários eram pessoas de meia idade indicadas por Associações de Amigos de Bairros, Clubes de Mães e organizações como o Sesc. Treinados por equipes do Tribunal, eles anotavam problemas capazes de prejudicar, ainda mais, o já precário funcionamento dos Postos de Saúde Pública. O médico inexistente, ou faltoso, a enfermeira em período de férias e não substituída, a falta de medicamentos, áreas mal iluminadas e inseguras, sanitários em petição de miséria, tudo isso era repassado ao Tribunal que, aí sim, despachava auditores para a confirmação, ou não, das falhas apontadas pelos voluntários.

Os queixosos sempre estavam com a razão. Em todos os casos, os prefeitos eram então convocados para assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta ao cabo do qual tinham 30 dias para a solução dos problemas, sob pena de multa pessoal e da repercussão do desleixo no julgamento de suas gestões. Mas vi, algumas vezes, prefeitos de primeiro mandato, jovens e apreensivos, abrirem a pasta para mostrar ao presidente do TCE editais de concursos vazios. Ou seja, ninguém se interessava por essas vagas.

“Como eu vou levar minha família para um lugar onde nem mesmo existe uma habitação decente?” – ouvi, muitas vezes, pergunta desse tipo feita por juízes ao então presidente do Tribunal de Justiça Raphael Carneiro Arnaud, a quem também assessorei.

O velho Raphael tentava fazer com que cumprissem a Lei Orgânica da Magistratura que a todos obriga a residência na Comarca. O Programa “Casa do Juiz” foi a resposta dada aos reclamantes. Assim, mandou edificar mais de 40 moradias confortáveis, com jardins, boas cozinhas, salas amplas e quartos refrigerados. O sucessor deve ter feito outras tantas para aqueles juízes. Hoje em dia, não sei quantas dessas casas permanecem fechadas, a não ser por ocasião de despachos ou júris, uma vez por semana.

Falamos de médicos, juízes, mas, ainda, de promotores e delegados de polícia igualmente afastados do convívio diário com as populações às quais servem.

Eu e meu amigo conseguimos lembrar do delegado que nos viu crescer e de boa parte dos seus comandados. Estes sabiam nossos nomes e conheciam nossos pais tanto quanto disso sabiam as professoras do Grupo Escolar. Pessoalmente, devo a um juiz, o Dr. Mário Moura Rezende, o socorro na queimadura severa com leite quente. Ouviu meus gritos de menino pequeno e pediu que minha mãe mandasse alguém à procura de bicarbonato de sódio, clara de ovo e uma levedura da qual não lembro para que a mistura disso tudo, como no preparo de uma omelete, me fosse passado no peito, suavemente, com uma pena de galinha.

Revi o querido Dr. Mário, já desembargador, com a alma em festa, quando chegou ao Jornal O Norte, cuja Redação eu então dirigia, para a publicação de um artigo. Pois não é que ele falou do episódio do leite quente à equipe inteira. Que bela alma.

Conto isso aos parentes mais novos quando das minhas viagens ao interior e eles me olham com cara de inveja. Afinal, cresceram e habitam uma terra de ninguém. Ali, hoje em dia, até o padre tem certa itinerância. Bem o sabem os que têm a idade e as memórias que temos eu e meu amigo brincalhão. Foi um prazer esse encontro, querido.

PÍLULAS DA VIDA, por Frutuoso Chaves

“Pílulas de Vida do Dr. Ross fazem bem ao fígado de todos nós”. Quem, entre os mais adentrados, não ouvia isso o tempo inteiro no rádio dos anos de 1950 e início dos 60? E até antes disso porquanto as pílulas em questão ultrapassaram as fronteiras desse mundão de Deus ao longo de quase todo o século passado.

O Dr. Ross dos anúncios impressos e cantados por vozes masculinas e femininas nos aparelhos do tipo bunda quente (alusão às válvulas incandescentes que existiam antes da invenção dos transistores), foi o farmacêutico Sydney Ross dono do laboratório americano que desenvolveu esse medicamento por volta de 1890, ao que se conta.

Para que servia? Pois bem, para males que iam da prisão de ventre ao intestino frouxo, passando pelo sangue impuro. Com raízes e extratos vegetais na sua composição, as pílulas, de cor rosa, eram apresentadas em propaganda de 1940 como “o remédio que corrige mais erros do que qualquer outra descoberta da ciência moderna”. Servia, até contra divórcio, se a encrenca entre marido e mulher decorresse apenas do mal humor acarretado pela digestão difícil, como em alguns anúncios se pode ver.

As notas do jingle das Pílulas de Vida, de tão populares, serviram para musicar o deboche de Alvarenga e Ranchinho à campanha política de Plínio Salgado, nos idos de 1955. “Plínio Salgado quando abre a voz faz mal ao fígado de todos nós”, cantava aquela que por muito tempo foi a dupla caipira mais famosa do País.

Fossem tão antenados quanto seus ancestrais, os caipiras modernos (hoje, eles preferem o termo “sertanejo”, candidatos indigestos, guitarras elétricas e chapéus de cowboy) teriam em muitas expressões da política atual motivos para a zombaria de norte a sul. E, assim, prestariam um enorme serviço à Nação.

Mas, em plena madrugada, ocorre-me perguntar por que diabo fui eu lembrar do Dr. Ross. Deve ser, ainda, por causa do Covid e do surto de gripe atual, essa coisa brutal que também nos exige cuidados, entre eles, em boa dose, a reclusão.

O isolamento, de fato, inverte o metabolismo, tira o sono de quem precisa dormir e faz o pensamento voar ao destino invariável: o passado. Nunca tive tanta saudade dos meus verdes anos. Agora mesmo, sinto falta até do óleo de fígado de bacalhau.