O reencontro casual com um amigo de infância a quem há muito eu não via levou-me ao rum que não posso tomar e aos salgadinhos proibidos por dois arengueiros: a mulher e o endocrinologista. Acontece que determinadas situações sempre justificarão as brigas em casa e no consultório médico. A de ontem foi uma delas.
Eu já me punha à procura do Uber depois da compra do livro recomendado por uma alma santa, dessas que não bebem nem arengam, quando uma voz do além gritou meu nome. Virei-me para ninguém. Não dei mais do que cinco passos e lá me veio novo chamado. Olhei em volta apenas para caras desconhecidas logo atinando que uma daquelas colunas do Shopping escondia um moleque. Assim, decidi não mais dar-lhe ouvido.
Foi quando aquela cara vermelha e redonda veio ao meu encontro com um sorriso de orelha a orelha. Os primeiros minutos de conversa na Praça da Alimentação nos recomendariam a mesa e a carta de bebidas no andar superior.
Os assuntos mais sérios surgiram quando já havíamos esgotado a bisbilhotice: o flagrante que deram naquele viúvo inconsolável numa das ruas mais suspeitas do Recife, a coragem do padre ao peitar o poderoso chefe político e o medo do sargento, homem por todos temido, quando do anúncio da invasão da pequena cidade por um bando de sem-terra, no auge das Ligas Camponesas. Houve exercícios de guerra na rua principal com meia dúzia de soldados a simular disparos, deitar, rolar e se esconder por trás dos troncos de fícus. O que então nos chegaria era um grupo numeroso de roceiros, enxadas nos ombros, para a convocação dos companheiros de infortúnio à luta pacífica por um pedaço de terra onde plantar e criar os filhos.
Meu amigo vinha de uma bateria de exames caríssimos. Lastimava o desaparecimento dos antigos médicos de família. “Lembra quando Dr. Manoel saía de Itambé, pasta na mão, para visitas domésticas à clientela de Itabaiana, Juripiranga e Pilar?”, perguntou-me com o olhar distante, talvez fito nas salas de estar da nossa infância. E nas de refeição, pois o bom homem não se negava aos convites para o almoço, ou o jantar.
Contou-me que, oito anos atrás, quase sem dinheiro, reviveu um pouco daquelas “consultas humanizadas” – termo por ele empregado – ao ser atendido por um médico de sotaque estrangeiro embarcado desde Cuba para as Unidades Básicas de Saúde deste Brasil sofrido e desigual. Consulta minuciosa, demorada. Aperta aqui, ausculta ali, perguntas e mais perguntas com as cadeiras lado a lado, sem a barreira da mesa e, por fim, a prescrição correta do remédio, a julgar por seu pronto restabelecimento.
Um assunto puxa o outro e lá veio a observação de que o Programa Mais Médico não foi feito para cubanos. Estes surgiram como alternativa aos nacionais quase sempre indispostos ao exercício da profissão nos redutos menores e mais remotos. “Não há quem tire filhos adolescentes nem mulher de médico das beiras de praia e shopping-centers”, riu meu amigo. Concordei com ele e, em benefício da conversa, acresci um testemunho pessoal.
Quando, pela primeira vez, exercia a Presidência do Tribunal de Contas da Paraíba, o conselheiro Arnóbio Viana instituiu o Programa Voluntário do Controle Externo. A sigla era um achado: “Você”. Assim, também, o lema: “Você é o Fiscal”.
Os tais voluntários eram pessoas de meia idade indicadas por Associações de Amigos de Bairros, Clubes de Mães e organizações como o Sesc. Treinados por equipes do Tribunal, eles anotavam problemas capazes de prejudicar, ainda mais, o já precário funcionamento dos Postos de Saúde Pública. O médico inexistente, ou faltoso, a enfermeira em período de férias e não substituída, a falta de medicamentos, áreas mal iluminadas e inseguras, sanitários em petição de miséria, tudo isso era repassado ao Tribunal que, aí sim, despachava auditores para a confirmação, ou não, das falhas apontadas pelos voluntários.
Os queixosos sempre estavam com a razão. Em todos os casos, os prefeitos eram então convocados para assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta ao cabo do qual tinham 30 dias para a solução dos problemas, sob pena de multa pessoal e da repercussão do desleixo no julgamento de suas gestões. Mas vi, algumas vezes, prefeitos de primeiro mandato, jovens e apreensivos, abrirem a pasta para mostrar ao presidente do TCE editais de concursos vazios. Ou seja, ninguém se interessava por essas vagas.
“Como eu vou levar minha família para um lugar onde nem mesmo existe uma habitação decente?” – ouvi, muitas vezes, pergunta desse tipo feita por juízes ao então presidente do Tribunal de Justiça Raphael Carneiro Arnaud, a quem também assessorei.
O velho Raphael tentava fazer com que cumprissem a Lei Orgânica da Magistratura que a todos obriga a residência na Comarca. O Programa “Casa do Juiz” foi a resposta dada aos reclamantes. Assim, mandou edificar mais de 40 moradias confortáveis, com jardins, boas cozinhas, salas amplas e quartos refrigerados. O sucessor deve ter feito outras tantas para aqueles juízes. Hoje em dia, não sei quantas dessas casas permanecem fechadas, a não ser por ocasião de despachos ou júris, uma vez por semana.
Falamos de médicos, juízes, mas, ainda, de promotores e delegados de polícia igualmente afastados do convívio diário com as populações às quais servem.
Eu e meu amigo conseguimos lembrar do delegado que nos viu crescer e de boa parte dos seus comandados. Estes sabiam nossos nomes e conheciam nossos pais tanto quanto disso sabiam as professoras do Grupo Escolar. Pessoalmente, devo a um juiz, o Dr. Mário Moura Rezende, o socorro na queimadura severa com leite quente. Ouviu meus gritos de menino pequeno e pediu que minha mãe mandasse alguém à procura de bicarbonato de sódio, clara de ovo e uma levedura da qual não lembro para que a mistura disso tudo, como no preparo de uma omelete, me fosse passado no peito, suavemente, com uma pena de galinha.
Revi o querido Dr. Mário, já desembargador, com a alma em festa, quando chegou ao Jornal O Norte, cuja Redação eu então dirigia, para a publicação de um artigo. Pois não é que ele falou do episódio do leite quente à equipe inteira. Que bela alma.
Conto isso aos parentes mais novos quando das minhas viagens ao interior e eles me olham com cara de inveja. Afinal, cresceram e habitam uma terra de ninguém. Ali, hoje em dia, até o padre tem certa itinerância. Bem o sabem os que têm a idade e as memórias que temos eu e meu amigo brincalhão. Foi um prazer esse encontro, querido.
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