SOL POENTE, por Frutuoso Chaves

Foto: Frutuoso Chaves

Antes do mergulho no horizonte o Sol dispõe um rastro de luz a um homem e seu barquinho. Em retribuição, ganha, nessa despedida, os belos acordes do Bolero, a imortal composição do francês Maurice Ravel. O espetáculo repete-se, diariamente, há uns 20 anos. E já mudou a vida de muita gente porquanto inscrito no Calendário Turístico da Paraíba.

O homem em questão, o saxofonista José Jurandir Félix, virou verbete do Guinness Book, o Livro dos Recordes Mundiais, ganhou fama internacional e homenagens na França, terra de Ravel. Ali, ampliou o número de execução do Bolero (motivo da referência pelo Guinness) ao tocá-lo à beira do túmulo do compositor francês. Fez o mesmo aos pés da Torre Eiffel e num barco sobre o Rio Sena.

Nenhum roteiro de viagem à Paraíba sugerido pelos Cadernos de Turismo dos jornalões brasileiros e nenhum programa da tevê nacional sobre o mesmo tema despreza o espetáculo encenado em quase todo santo entardecer. Estima-se que mais de duas mil pessoas aqui vivem dessas despedidas do Sol, somada a mão de obra de bares, restaurantes, lojinhas de artesanato, mercado ambulante e o pessoal do transporte turístico.

Também se conta que tudo começou, há coisa de três décadas, quando a paraibana Leonora, casada com um europeu, decidiu receber amigos em sua casa para a degustação de vinhos e queijos à margem do vasto curso d’água formado pelo abraço do Sanhauá no Paraíba, à pequena distância da desembocadura de ambos os rios no mar. Os temas clássicos na vitrola, a boa conversa e o silêncio na contemplação final dos últimos raios solares seriam substituídos por Jurandir e seu sax, com o passar do tempo.

O silêncio não. Este, na verdade, continua repetido por uma plateia embevecida a cada Pôr do Sol. Nada o impõe, a não ser a emoção, o palpitar dos corações e uns suspiros da alma, venha-se de onde vier, tenha-se o sotaque que tiver.

Salve, Jurandir. Foi dele a ideia de percorrer aquele trecho de rio em seu barco diminuto, com espaço apenas suficiente para si, seu saxofone e seu remador. E de fazer coincidir a última nota do seu instrumento com o mergulho do Astro Rei ante o aplauso das multidões.

Minha última visão desse espetáculo, a fim de mostrá-lo a um casal de primos advindos de São Paulo, tem tempo anterior ao da terrível pandemia. Essa mesma para a qual a Organização Mundial de Saúde declarou, dias atrás, não o fim, como muitos supõem, mas o término do estado de emergencial global em que o Planeta vivia.

Percebi, na ocasião, que o culto ao sol poente poderia ser, também, uma homenagem de todos nós ao rio que deu nome a esta Unidade da Federação. Um acalanto ao padecimento, às dores resultantes das insuficiências d’água com que se mostra, na maior parte do percurso, a multidões de sedentos.

Enfim, antes que o trajeto sofrido se consuma, o abraço amigo do Sanhauá, o sax de Jurandir e um Sol inesquecível enfeitam o Paraíba a pouca distância da sua morte. Ainda bem que é assim.

FEITO RIO E SÃO PAULO, por Frutuoso Chaves

Praça do Colégio Agrícola de Bananeiras, vendo–se à direita parte do pavilhão de salas de aula

Tomei dois sustos na manhã seguinte ao dia da minha chegada ao Colégio Agrícola André Vidal de Negreiros, em Bananeiras, naqueles idos de 1960. Compus um grupo de cinco pilarenses despachados pelos pais para a continuidade, ali, dos estudos.

Quatro de nós havíamos passado, dias antes, num vestibularzinho dos diabos para ingresso no curso Secundário da escola, o que valeu dos professores locais elogios ao bom nível do Primário ministrado na escola pública de Pilar. Na verdade, eu e o amigo Wolney havíamos estudado no Recife. Espantosamente, este, a quem considerávamos o mais bem preparado dentre todos nós para a seleção de Bananeiras, foi nela reprovado. Entendemos que Wolney, apegadíssimo à família e de nariz torcido para a farda de mescla cinza e aquela comida de quartel, deu um jeito de escapar do internato.

Mas vamos aos sustos. O primeiro foi com a temperatura da água. Nunca a senti tão fria, nem nos dias mornos de Pilar nem no subúrbio recifense de Sucupira, onde morei com um casal de tios. Seis da matina, toalha no pescoço, sabonete e escova de dentes à mão, caminhar de pijama uns 50 metros desde o dormitório até a bateria de banheiros, já era um suplício naquele clima polar. Meu primeiro contato matinal com o Brejo deu-me arrepios.

Também ericei todos os pelos quando olhei a cidade, distante alguns quilômetros, pela janela acima da pia. O Sol dissipando a névoa, as duas torres da Igreja, a estradinha e as colinas cobertas de verde bateram-me nos olhos e nos sentidos com jeito de paisagem já vista e sabida. “Meu Deus, como é possível? Como isso me é tão familiar se estou aqui pela primeira vez?”, perguntei-me, em pensamento.

Fiz a bobagem de comentar o assunto, tempos depois, com um colega e ele me deixou ainda mais assustado. Aprendera com os pais, espíritas, que às vezes nós carregamos conosco restos de memória de antigas encarnações. Vôte!

Estudei menos de um ano em Bananeiras, pois adoeci e retornei a Pilar num momento em que a família preparava a mudança para João Pessoa. Mas nunca me esqueci dessa experiência. Ouvi, ainda, de outras pessoas que o ser humano também pode ser assaltado por premonições. Pode ver o que está por vir. Seria isso parte dos tais mistérios shakespearianos entre os Céus e a Terra? Vá lá saber…

No pouco tempo de vivência nessa parte do Brejo formei a impressão (com as imprecisões, talvez, da pouca idade) de que Bananeiras está para Solânea assim como o Rio de Janeiro está para São Paulo. Com o perdão do estereótipo, uma é despreocupação e festa. Outra é realização e trabalho. Uma gasta. A outra sabe ganhar.

Tal impressão refez-se, há pouco tempo, quando resolvi mostrar aos filhos o colégio agrícola onde estudei. Parei o carro, desliguei o motor e notei que o sistema de ventilação (aquele que se liga e desliga, automaticamente) permaneceu ativado.

Saí, então, na busca de um mecânico, mas onde encontrá-lo em pleno domingo? “Em Solânea”, disseram-me os três ou quatro bananeirenses a quem recorri. Um deles deu-me um nome e endereço, na esquina de um supermercado, de onde saí com o problema resolvido. O camarada largou o almoço e, além disso, fez um amigo abrir a lojinha a fim de fornecer a peça que havia pifado. Atendimento de primeiríssima como, naquelas paragens, apenas Solânea sabe proporcionar. Não é, meu amigo Arnóbio?