Gosto das tardes chuvosas, com pingos d’água suficientes para molhar o chão ou, quando muito, para o despertar de algumas biqueiras. Sei que nos sítios e roças, elas ainda enchem potes e jarras a serviço do banho e da cozinha. Na cidade, dão tons de cinza à paisagem, espantam os meninos das ruas e forçam as reuniões da família quando coincidentes com as férias, ou com as folgas de fim de semana.
Hoje, foi assim. Pus-me em casa, à tarde, a bisbilhotar a internet em busca das novidades do mundo nem sempre boas, infelizmente. Isso feito, voltei a atenção para a chuva e senti seu cheiro.
Será que todos o pressentem da mesma forma, com um mesmo odor? Talvez, não. Talvez, a brisa transporte a cada ser vivente fragrâncias diferentes de terra molhada – ou de asfalto, por que não? – conforme lhe sejam as misturas de lembranças e sentimentos. Primeiro, invadem o cérebro, a emoção. E, somente depois, as narinas.
Para mim, pessoalmente, a chuva tem cheiro de infância. Desperta-me algumas recordações e me devolve os bons momentos. Ora me traz as histórias da Carochinha contadas por minha avó, ora o som do búzio tocado por moradores ribeirinhos para o aviso de enchentes no Paraíba.
Às vezes, sob o protesto da minha mãe, meu pai acordava os filhos pequenos, noite alta, para ver a cabeça da cheia. Os adultos fincavam pequenas estacas na margem do rio, exatamente na linha d’água, para medir o progresso do alagamento. “Vai ser cheião” – antevia alguém mais experiente, se as tais estacas fossem logo encobertas. E tratavam de deslocá-las para a nova linha d’água no rio agora mais largo.
Lanternas varriam a correnteza, a fim de permitir a seus donos a visão daquilo que era levado a boiar, rio abaixo. Passasse bicho morto, ou madeira trabalhada, não era outra a conclusão: o Paraíba tinha invadido rua, de Itabaiana para cima. E um temor assaltava a todos, naquele momento: “Será que a barragem de Boqueirão aguenta?”.
Dia amanhecido, águas contidas em leito seguro, a cidade inteira acordava mais alegre. A freguesia do meu pai achegava-se ao balcão da Padaria com semblantes risonhos. O inverno seria bom, o que significava colheita farta, gado gordo e dinheiro no bolso. A chuva, então, recendia a felicidade. E é assim, exatamente, como eu, ainda hoje, a percebo.
O CHEIRO DA CHUVA, por Frutuoso Chaves
FOME, por Babyne Gouvêa
Difícil ir à rua e não se deparar com a pobreza. A carência é visível, fala alto, maltrata qualquer coração minimamente sensível. Entra pelos sete buracos da cabeça como um entorpecente forte, deixando a mente literalmente embriagada.
A imagem aqui descrita não envolve exageros ou demagogias, é simplesmente um fato incontestável. Quem duvidar deve fazer um giro pelos supermercados, feiras, semáforos e outros lugares públicos. Os necessitados estarão no entorno mendigando.
Saia preparado para ser abordado ou fitado por pessoas marcadas pela fome. A tez do faminto é esverdeada, a boca é seca com traços brancos como giz, os olhos esbugalhados e a consciência um tanto obnubilada. Essa imagem é a assimilada por mim.
Há dias assisto cenas de mães e filhos sentados nas calçadas sob sol ou chuva. Já conversei um pouco com eles, interessada em conhecê-los. Talvez para abrandar problema de consciência. Eu me alimento, eles não.
Numa oportunidade, uma das crianças, muito bonita, com presumíveis onze anos, olhou para dentro do porta-malas do meu carro – que abri para pegar algo para dar – e visualizou um bichinho de pelúcia. Era uma toalha. Teimou em ter razão. A confusão foi desfeita, mas ficou a frustração. É um exemplo do mal que a fome provoca na mente. Imagina ver o que sonha.
O que fazer? Já escrevi sobre a angústia em presenciar gente buscando comida em caixas e caminhões de lixo. Doações solidárias são paliativos – aliviam os sintomas, mas não curam a dor da fome. Essas atitudes não bastam. É muito pouco.
Ações públicas, sem objetivos políticos, devem ser exigidas pela população em prol dos desassistidos. “A fome tem pressa, não pode esperar”, repetia Betinho. Prover os pobres de condições dignas de vida é emergencial, assim como não usá-los como moeda eleitoral é imperativo.
Conclamo os sensíveis a se mobilizarem em torno dessa causa. Após dez anos fora do Mapa da Fome, há três o Brasil voltou ao ‘Top 10’ da miséria humana. Mas, juntos, podemos enfrentar e superar esse flagelo humano.
Mais de 20 milhões de brasileiros não têm hoje o que comer nem com o quê comprar qualquer comida minimamente nutritiva.
A mendicância cresce a olhos vistos nas ruas de todo o país. A continuar do jeito que está, dobraremos o número de famintos até o final do decênio em curso.
Mais fome, mais miséria, mais violência. É o que nos espera, se não fizermos o que devemos e podemos fazer. E cada um sabe o que deve ser feito. No momento certo da escolha mais certa.
O PORTEIRO DA NOITE, por Francisco Barreto
Um emaranhado de lembranças de mais de meio século me pegam pelas mãos e me levam ao passado quase esmaecido.
Fiz uma idílica viagem para rever o Almirante. Refiro-me ao Hotel de L’Amiral no 90 na Rue de L’Amiral Roussin no 15º no histórico “arrondissement” ou um dos distritos administrativos de Paris.
Uma parte de minha vida laboral de estudante trabalhei clandestinamente e fui porteiro de hotel. Trabalho este que me ajudava nas minhas parcas finanças.
Aceitava, apesar de me saber explorado, doze horas noturnas ininterruptas das sete da noite às sete da manhã. Sem direito a nada, com riscos eventuais de deportação.
Eu e a minha mulher Lucinha repartíamos este submundo do trabalho clandestino, ela no Opera 2000, perfumaria.
Tínhamos que nos municiar para pagar alojamento, metrô e alimentação em restô universitário. Juntos, amealhávamos cerca de duzentos dólares.
Mme Martin, minha patroa, não fazia concessões. A seco, nada de lanches ou café da manhã. Passava as noites sentado, atendendo hóspedes que quase sempre despejavam mau humor e pacientavam quando sempre declarava que não era árabe.
Pontas de sorriso ficavam à mostra diante da minha condição de brasileiro. Para os franceses, a leitura era imediata: mulheres nuas, carnaval, pleno sol tropical, Amazônia e indígenas.
Era um hotel precário, cheirava a mofo, carpetes fétidos, com raros banheiros privados e sanitários nos intervalos dos lances de escada. A clientela era quase sempre de aposentados, de casais jovens que se aninhavam por uma noite.
Durante quase um ano dei os meus plantões noturnos. Durante as noites frias, tinha que alimentar algumas vezes com carvão a calefação nos mal iluminados porões. Tinha que driblar um danado de um macaco Prego agressivo que era mantido acorrentado numa estreita escadaria que insistia pegar a minha frondosa cabeleira.
À noite, com o encerramento dos metrôs, ficava em paz, tinha apenas uma incômoda companhia de uma antiga central de linha telefônica e de interfones com cabos que lembravam cenas de filmes de guerra e da nouvelle vague do cinema francês. Não podia errar os plugs com varias conexões. Era um desastre. Mme Martin era uma péssima e impaciente pedagoga.
Durante o tempo em que permaneci nunca me foram concedidas folgas remuneradas semanais ou vantagens. Nenhum adicional financeiro e sempre minguadas gorjetas. De vez em quando, hóspedes me davam tickets de metrô.
Só aos domingos via a minha mulher. Ela saia às sete da manhã, hora em que eu chegava, e às seis eu retornava ao hotel. Não a via.
Minhas noites eram dedicadas a escrever minha tese de doutorado. Acobertava cuidadosamente a minha Olivetti Lettrera assegurando o silêncio. Consegui terminar com ajuda do Prof. Milton Santos e a defendi no dia 3 de julho de 1973. Muito sacrifício.
Para tirar as raras folgas, tinha que encontrar um substituto. Um deles foi Rubens Pinto Lyra, que se inimizou com a central telefônica e arranjou conflitos com patroa. Uma noite, para ficar na escuridão da sala, puxou as vistosas e belas cortinas da sala que eram postiças e imóveis. Caiu tudo. A dona acordou uma fera.
Naquela madrugada, ele abandonou o trabalho e debandou. Não foi nem buscar o dinheiro com medo da dona. A Mme Martin ainda me perguntou se ele era doido? Disse-lhe sorrindo que ele era apenas fraco dos nervos. Assim terminou o ensaio laboral de Rubens.
De hóspedes idosos ouvi sofridos relatos dos horrores da 2ª Guerra, inclusive de um casal judeu. Tive também o encantamento de conhecer um grande grupo de bailarinas do Taihiti que se apresentou por semanas num restaurante da Torre Eyffel que ficava nas proximidades. Com prazer as servia. E, ao ir a um dos quartos atendê-las, deparei-me com uma cena digna de Gaughin. Estavam apenas de sarong, seminuas, fazendo movimentos nos quadris com coloridos colares me saudando com a Hula Hula havaiana. Com os sabonetes e toalhas requisitados fiquei paralisado. Elas alegremente me agradeceram e pasmo permaneci apenas alguns segundos. Retomei as escadas estonteado com tanta beleza.
No clandestino convés do hotel do Almirante passei maus pedaços, ganhei alguns níqueis e consegui terminar aos 27 anos minha Licence (2º ciclo) Maitrise e a minha tese de Doutorado do 3º Ciclo.
Não me fizeram falta os bancos acadêmicos da Faculdade de Direito da UFPB, de onde fui extirpado em 1969 pelo AI-5/Decreto 477. Apenas sobrevivi, sob o leme nas aguas turvas do Almirante Roussin.
Também distribui folders, vendi o France Soir no Metrô George Washington, fui operário da Höechst em Munique, da Fabrica Kleber de Pneus e cabeceiro de verduras no antigo Mercado des Halles, entre outros. Tive uma clandestinidade de mão de obra desqualificada. Tudo isto à conta da Ditadura.
E TEMOS DITO, por Frutuoso Chaves
“O pior cego é aquele que não quer ver”. Mal ingresso em jornal, vi a expressão creditada ao paraibano José Américo num comentário político cuja autoria não guardei. Seria mais uma daquelas tiradas geniais atribuídas ao homem. Coisa à altura de outra citação: “Ninguém se perde na volta”.
Nova leitura, muito tempo depois, me encaminharia para outra origem do termo, desta vez com o endereço de Câmara Cascudo. O cego em questão, de nome Angel, cuja visão fora recuperada em cirurgia feita na cidade francesa de Nimes, em 1647, ganharia na Justiça o direito de voltar à cegueira, decepcionado que estava com as cores e as coisas do mundo.
Agora mesmo, ponho meus olhos de catarata em texto contendo explicações para outros ditos populares. A coisa começa com o famoso Amigo da Onça. O caçador mentiroso contava que, desarmado, havia espantado a bicha com um grito. Ao ouvinte que então debochava de sua história ele perguntou: “Você é meu amigo, ou amigo da onça?”.
O “Maria vai com as outras” adviria do tempo de D. Maria I, a rainha louca. E de seus passeios a pé sob escolta de numerosas damas de companhia. E sabe onde Judas perdeu as botas? No lugar ermo onde se enforcou e de onde também desapareceram os 30 dinheiros que tinha na bolsa. As tais moedas, há quem diga, nunca voltaram para Roma, nem as botas para o defunto.
“Comer com os olhos” era o que restava aos comensais dos banquetes oferecidos aos deuses, na Roma Antiga. A ninguém era permitido, nessas ocasiões, tocar na comida.
No tempo das carroças e dos cavalos, a determinação para alguém “tirar o cavalinho da chuva” reforçava o convite à permanência. O animal iria para lugar coberto porque a conversa com os donos da casa seria demorada, ao contrário do que pensasse o visitante apressado. O termo é, hoje, a expressão do contraditório: esqueça, de jeito nenhum.
Originalmente, não se faziam ouvidos de mercador e, sim, de marcador, o cara que nos escravos aplicava ferro em brasa insensível aos gritos dos desgraçados.
“Queimar as pestanas” advém dos tempos anteriores ao aparecimento da lâmpada elétrica quando a leitura noturna requeria a vela próxima dos olhos.
Se você fosse o governante que naqueles idos não mandava nem em Chipre nem em Jerusalém, você seria o Duque Emanuele Filiberto de Savoia, o Testa de Ferro.
“Jurar de pés juntos”. Deus nos livre. Isso vem dos pés atados pela Santa Inquisição. Vem do óleo quente no lombo de seres humanos e gatos de bruxos assim também pingados.
“Pensando na morte da bezerra?”. Então, você está como o filho menor de Absalão, o hebreu que à falta de outros animais sacrificou para Deus a bezerrinha do garoto. Este último, a partir de então, postava-se triste e pesaroso ao lado do altar das oferendas.
Coitada de Joana, a Rainha de Nápoles, a condessa de Provença, aquela que libertou os prostíbulos de Avignon. Cada bordel daqueles, depois disso, passou a ser tomado como Casa da Mãe Joana.
E nem queira saber dos inícios do termo “afogar o ganso”. Era ganso mesmo. O bicho tinha a cabeça afundada na água para ampliação do prazer que certos degenerados sentiam com seus espasmos. Pois é, nem sempre é pura e bela a origem das expressões nossas de cada dia.
COM O SURSIS DA VIDA, por Francisco Barreto
Existem dias em que vencidas as noites escuras ao amanhecer despertamos com ânimo para reverberar esparsas e arrebatadas ilações sobre o que somos e o que temos vivido num profundo mergulho que nos faz refletir sobre a alma e o tempo.
Ancoramo-nos em reflexões debruçados sobre o saldo temporal declinante que nos regateia a vida. A lucidez episódica nos aguça uma breve avaliação sobre os prazeres, temores de ontem e de sempre, sacolejando afetuosas e duras avaliações sobre a nossa trajetória de vida.
Creio ser de fundamental importância creditar aos nossos entes, família e amigos queridos, que leais legatários dos nossos afetuosos sentimentos. Inevitável é que temos a certeza – e sentimos nas nossas longas caminhadas – que os nossos passos foram um dia firmes e hoje patinam lentos, vacilantes, anunciando a sua tendência ao exercício findo.
A ninguém é permitido fazer “mise en scène” ignorando e se ludibriando em não querer admitir que um dia desses não teremos mais forças para o caminhar. Sempre acontece a qualquer um ou uma, ao mais comum dos mortais.
Como um andarilho de olhos abertos, percorri caminhos em marcha forçada sem me desviar dos embates que a vida sorrateiramente me impôs. Nunca deixei de enfrentar os ônus e desgraças que me ocorreram e poderiam ter maculado o meu destino, ferindo a minha honra, dignidade, moral pessoal e pública.
Espero ter conseguido, salvo melhor juízo, sob a proteção de minha fé e da minha consciência política, discernir entre o que é certo e o que fora errado. Plantei e cultivei toda a minha convicção de que neste mundo cumpre agir com honestidade, servir aos outros, ser generoso, solidário e abraçar os que sofrem injustiças em nome do respeito à condição humana.
Sinto claramente que os meus caminhos trilhados foram sempre do bem e fui uma pessoa honesta sem perseguir a glória. Omissões, atos dolosos ou culposos, voluntários ou inconsequentes, por lapsos de memória não lembro tê-los cometidos. Se os fiz, peço clemência aos eventuais ofendidos.
Nunca busquei acumular riquezas materiais, vaidades e vantagens ilícitas, ilusões e vanidades derivadas de podres poderes políticos e pessoais fictícios edificados pela arrogância e presunção de superioridade.
Ao meu tempo, a minha alma pequena fez a minha história com andanças de quem “se arriscou, chorou, riu, amou, sofreu, teve dúvidas, se apaixonou por pessoas, por ideias, crenças e lugares”, como me disse o meu grande e fraterno amigo Cristovam Buarque.
Não colecionei amarguras, decepções, tristezas e rancores. Se as tive, dissiparam-se com o amanhecer de todos os meus dias. A solidão sempre foi a minha eterna companheira, minha fortaleza, que procurei e encontrei como o alimento da minha alma sempre pequena. Nela me escudei para continuar vivendo como um danado.
Sempre me enterneci feliz com algumas poucas homenagens, sabendo-as, entretanto, que muitos as recebem, poucos as merecem. A franqueza afetuosa dos familiares e amigos me ensinou viver. As agressões que na vida pública me foram feitas nunca me atingiram, porque eram frutos do ódio. Passaram ao largo.
Sobrevivi aos amargos dias de exílio da minha juventude. Passou o sofrimento. Saí dele, mas ele sempre viveu dentro de mim. Foram anos de uma juventude massacrada. A ditadura conseguiu o malefício de congelar, senão de sepultar, a juventude dos que a combateram por nobres causas.
Ao longo daqueles intermináveis anos, as sofridas lembranças me propiciaram me conhecer e descobrir quem eu sou, o que sou e os meus limites.
Tive uma família linda, meus pais e muitos filhos, todos sadios de caráter, com espíritos superiores e arrebatados. Embora sempre a distância, e na minha inquietude, os quis livres e autodeterminados. Foi-me uma dádiva divina.
No ocaso da minha vida, busquei refúgio na natureza do Engenho Laranjeiras. Dias luminosos. Flores radiantes dos meus jardins e lampejos sonoros de muitos pássaros me projetaram longe, muito longe, da solidão.
Da natureza, procurei ser o patrono, e com meu olhar permanente sobre as plantas e os animais, estes me deram certa longevidade e alegria de viver. Aprendi a ver a natureza sob olhar do Divino e compreender que ao assim fazer não apenas a contemplava, estava diante de uma bela oração.
Exiladamente afastei-me de uma vida mundana numa sociedade injusta e inaceitável. Pelos meus livros e escritos busco exalar os meus modestos sentimentos, os mais íntimos e afetuosos, gestados no meu hoje coração já cambaleante.
Tempus fugit. Imprevisível, suspeito apenas o que me irá acontecer. Não desejo conviver com inusitadas surpresas. Preparo-me para o inevitável. Quero estar lúcido como se soubesse a verdade, pronto como se estivesse para morrer, como nos insinuou a alma poética de Fernando Pessoa.
Desejo ardentemente que a família e os amigos recorram aos afetos que os dediquei. Sorriam. Continuarei sempre de mãos dadas com eles. Digam a não à Tristeza, porque foi a Alegria e a Felicidade que guiaram os meus passos. Assim, sobrevivi como náufrago num mar de afetos. Vivi como um danado.
CINEMA ENGENHO, por Frutuoso Chaves
Acabo de rever “Cinema Engenho”, o curta-metragem dirigido por Dácia Pitangui, uma piauiense com graduação em Engenharia, mestrado em Comunicação e especialização na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, Cuba.
Professora, também, da Universidade de Brasília, Dácia esteve em Pilar, em 2006, para concluir seu documentário sobre o premiadíssimo cineasta paraibano Vladimir Carvalho que, na ocasião, realizava as filmagens de “O Engenho de José Lins”. Ali, conheceu outra figura que a encantou: Seu Zé Ribeiro, homem de poucas letras e origem campesina cuja paixão pelo cinema o levou não apenas a projetar filmes em praças e mercados públicos, mas, ainda, a construir seu próprio prédio, tijolo por tjjolo, cadeira por cadeira.
Particularmente, devo ao Seu Zé o gosto pela Sétima Arte, assim tida e havida. Menino, eu costumava aguardar seu retorno, às quartas-feiras, do Recife, para onde ele seguia de trem a fim de encomendar nos escritórios da Fox, RCA ou Metro as fitas que exibiria na sala modesta de Pilar, três vezes por semana: aos sábados, domingos e quartas-feiras. Neste último caso, tratava de reprisar o filme que rendera a melhor bilheteria semanal, todavia, com um daqueles seriados que levavam a criançada ao delírio.
Na escola, tentávamos adivinhar de que jeito o mocinho, a mocinha ou os amigos dos dois (a turma do bem) escapariam dos perigos a que foram expostos no episódio anterior. “Ficar em episódio”, aliás, foi por muito tempo expressão usual de conversas que mantivéssemos sobre qualquer situação pessoalmente arriscada. A resposta ainda não dada a pedidos de namoro, a nota da prova escolar prestes a sair, a bronca esperada do pai ou da mãe, tudo isso deixava o camarada em episódio.
Tarzan, Capitão Marvel, Nyoka e, até mesmo, a Guarda Costeira americana fizeram-me perder muitos sonos por culpa de Seu Zé Ribeiro que demorava uma semana entre uma exibição e outra.
Tive a oportunidade de entrevistá-lo para uma das páginas amarelas da Revista “A Carta”. Título da matéria, proposital, simbólico: “E o vento levou!”. Sua vida e sua morte, meses depois do falecimento da mulher, dona Beatriz, foram tratadas por mim em Editorial do “Jornal da Paraíba” que, aliás, quase sem conter as lágrimas, vi emoldurado na parede de sua casa por um dos seus filhos.
Ah, Seu Zé, quanta saudade. Do senhor e do tempo em que os perigos do mundo sucumbiam aos cuidados paternos e à bravura dos mocinhos da tela. “Cinema Engenho” traz-me de volta a imagem desse homem e de sua missão formidável: retirar da maleta os sopapos de Buck Jones, a beleza de Grace Kelly, os encantos de Brigitte Bardot com seu convite irresistível ao pecado, aquele, o cometido na privacidade do banheiro, com que enchíamos os ouvidos do Padre Gomes sem medo da surra em casa. Afinal, confissão é confissão.
OLHOS AZUIS, por Ana Lia Almeida
Faça isso não, Rita mulher. Abre esses olhos. Tu não acha estranho essa bença aparecer logo agora? Uma luta danada pra tu ganhar esse dinheiro, quase perde esses anos todos de serviço, pra agora vir me dizer que vai dar tudo de mão beijada prum sujeito que reapareceu do nada, direto das cinzas do passado, justamente agora? Taci tinha razão. Rita meditava sobre as palavras dela enquanto observava pela janela do ônibus aqueles montes de carros parados no trânsito da manhã.
Já estava a caminho do banco para sacar o dinheiro que Paulão pedira depois de quinze anos de sumiço. Seus olhos azuis ainda a enfeitiçavam, como na primeira vez que se viram. Desde então, Rita permitiu que a vida virasse uma grande bagunça. Paulão praticamente se mudou para a casa dela, e de repente ganhou uma espécie de marido-filho. Rita levantava cedo, fazia o café, acordava Paulão com cosquinhas. Os dois riam, ela saía para trabalhar e ele ficava em casa sem fazer nada.
Rita não ligava, no começo. Mas Clarinha começou a reclamar que não tinha sossego para estudar, que o homem passava o dia assistindo televisão no volume máximo e andava o dia todo só de cueca pela casa. Depois disso, não deu nem um mês, ele sumiu. Escafedeu-se. Clarinha acendeu velas e pagou promessas. Rita, contudo, esperava por ele toda chorosa pelos cantos.
Depois de quinze anos sem dar notícias, Paulão reaparecia exatamente na semana em que a Justiça liberava o FGTS, as horas-extras e as férias atrasadas de Rita, após ser inocentada no processo criminal da morte de dona Laura. Doutor Felipo, o advogado que Taci arranjou, tinha acabado de explicar tudo bem direitinho ao telefone quando Paulão bateu na casa dela.
Ô de casa. Rita ficou branca, azul e amarela, parecia ter visto um fantasma diante do homem que jamais esquecera. Ele veio com uma história de que tinha saído às pressas, fugindo de uma dívida que vieram cobrar, e de tanta vergonha, afinal, o que Rita pensaria dele, achou melhor desaparecer. Que nunca deixara de pensar nela e finalmente resolvera voltar. A dívida, porém, continuava, e havia crescido. Resolvera ter coragem, desta vez, para pedir-lhe o dinheiro emprestado.
E precisa de coragem pra isso? Taci questionava, indignada; quanto mais detalhes Rita contava, mais a história parecia uma grande furada. Rita, Rita… olhe, eu não vou nem dizer mais nada. Vou-me embora que a minha parada é a próxima.
AS MÃOS DA MINHA MÃE, por Babyne Gouvêa
Sonhei com elas. Impossível esquecê-las, mas como descrevê-las?
Desde pequenina eu sentia a suavidade das mãos da minha mãe Cidinha (foto), como era carinhosamente chamada. Percebia a delicadeza delas em tudo que tocava. Eram mãos aveludadas, que conseguiam tornar bonito o feio, tornar agradável o incômodo. Verdadeiras mãos de fada. Esses dotes contribuíram para as lembranças se sedimentarem em mim.
Penso como suas mãos me serviram com maestria através dos anos. Dos acalantos aos ensinamentos educativos e triviais, responsáveis pela formação da minha personalidade.
Lembro bem de suas belas mãos me alimentando. E no segmento cozinha era insuperável, servindo de parâmetro para os amantes da arte culinária. Manipulava os pratos com muito amor, e o resultado era a satisfação estampada no semblante de quem saboreava as suas iguarias.
Inesquecível a imagem de suas mãos mexendo com uma colher de pau o grande caldeirão de canjica ou de doce de banana, que distribuía entre os familiares e vizinhos. E com a mesma destreza procedia com outros preparos gastronômicos.
Eram inúmeros os seus dons culinários. As receitas se transformavam em guloseimas irresistíveis, recheadas de afeto – o ingrediente principal. O ritual diário não a desmotivava e o seu entusiasmo atraía os comensais.
Bordar e costurar eram outras atividades desenvolvidas com primor. Ao bordar uma colcha florida, tinha o esmero de adotar pontos diferentes em cada flor do seu desenho. O perfeccionismo lhe perseguia.
As suas mãos continuavam hábeis na música, ao dominar a técnica do piano. Executava as notas musicais nas teclas do grave ao agudo e vice-versa, com competência e graciosidade. Os ouvintes se encantavam com os majestosos movimentos.
Era exímia motorista. Guiava o seu automóvel com uma aptidão admirável. Coordenação motora, reflexo, posicionamento correto das mãos ao volante eram reconhecidos por todos que a viam dirigindo.
Num quadro de enfermidade ela me aplicava injeção de um jeito indolor, num toque de mágica. Conseguia essa proeza. A doçura do seu gesto agia como um analgésico. Ao aferir a minha temperatura colocava a palma da mão nos locais indicados, funcionando como um auxiliar antitérmico.
Conciliava uma discussão entre os filhos com a delicadeza das palavras empregadas. Chamava-os para uma conversa e usava as mãos entre as laterais do rosto das crianças, afagando-o. Era uma forma carinhosa de abrandar os ânimos infantis.
Anatomicamente, as mãos da minha mãe eram perfeitas. Empregava nelas a fineza que a natureza lhe deu. Gastas pelo constante uso, mas eficientes em todos os serviços que delas precisavam.
No dia em que ela se encantou, as suas mãos descansavam imaculadamente. Refletiam a maneira pura como conduziu a sua vida. Demonstravam serenidade, prontas para serem eternizadas.
Anos se passaram. E certa vez em minha vida, atravessando uma adversidade, senti as suas mãos acariciando a minha face. Deixei fluir aquele momento. Afinal, eram das mãos de minha mãe que eu precisava.