A ÚLTIMA VEZ QUE VI PARIS, por Francisco Barreto

Cena do cotidiano no Quartier Latin, Paris, Anos 60 (Foto: Francisco Barreto)

Existem livros e filmes que aterrissam como um corisco na memória. Por felicidade ou tristeza, entranham-se em nós para sempre. Viram tatuagens. Deles emergem profundas lembranças que nos excitam a controversos e necessários sentimentos. Retornar prodigamente a enevoados pensamentos por devoção à memória, quaisquer que sejam as sequelas, há de ter a força de revisitar o passado no presente. A memoria não se esvai e nunca se foge dela.

Subitamente, lembro-me de Rosebud, palavra pronunciada pelo Charles Foster Kane, segundos antes de morrer, numa cena final do filme de Orson Welles (Cidadão Kane, 1941), cultuado como um dos melhores da cinematografia universal. Intrigou a todos que viram filme o balbuciar terminal do magnata Kane: Por que Rosebud? A cena traz à tona a imagem de um trenó infantil envolvido pelas chamas. Tinha Rosebud como marca. Nos estertores, Kane (Orson Welles) recorreu à imagem da sua infância pobre, fazendo-se refém da memória que o tutelaria até a morte.

Assim somos nós, mortais viajantes, de olhos abertos nas curtas sendas que nos separam da vida e da morte que nos espreita. Apenas a velhice é capaz de nos dar as mãos até a infância, à juventude, aos felizes e terríveis tempos.

Paris entrou muito cedo na minha vida, sem pedir licença, e invadiu a minha alma. Depois, sob a influência de Hemingway e de Eric Maria Remarque, que com suas memórias me descortinaram o extraordinário cenário parisiense. Pelas mãos de Remarque, em vários dos seus livros passei a transitar por muitos anos nas avenidas, bulevares, parques, monumentos, sobretudo, e perambular nos cais dos buquinistas do Sena. Hemingway, apressado e equivocado, havia intuído que “quando jovens, quem viveu em Paris aprendeu que Paris é uma festa”. Não foi isto que vivi. Muito ao contrario. O meu ser e estar se repartia entre o pesadelo e o sonho.

De Paris, quando lá cheguei ao final dos anos sessenta, tudo que via não me era totalmente estranho. Em pleno apogeu da Ditadura brasileira, fui atraído pelo espírito libertário e sedutor das luzes de Paris. Feito uma esvoaçante e atônita libélula despencando em admiradas e estranhas terras, tal como descreve Albert Camus no ‘Estrangeiro’, após a sua saída da Argélia, saltei em queda livre no escuro, sem mãos e ombros para me amortecer, e o pior, sem perspectiva de volta.

Ainda quase ontem em Paris, à revelia do esplendor urbano, vivi a distância e convivi com a dialética do sofrimento ao estar longe e submisso ao encilhamento imposto pelo autoritarismo. Passei a sentir um forte alívio combinado com uma grande angústia alimentada pelo massacrante sentimento do exílio e de ser um desenraizado.

Um final de tarde no Café Cluny, em St. Germain-des-Près, infelicitado, deu-me a clara percepção de que o meu chão era o da Paraíba e não me seduziria ser colonizado, menos ainda aculturado. As graves circunstâncias políticas impuseram evadir-me para longe da terra. Do além-mar iria algum dia voltar. Entendi que umbilicalmente era paraibano.

A diáspora parisiense me fez ver que o sofrimento tem virtudes dialéticas e pode haver um enorme aprendizado com a dor. O tempo, este pode, pari passu, se alternar, fazendo também fluir o prazer e a alegria de viver. Aprendi que o frio e o calor e os duros invernos andam de mãos dadas com as primaveras.

Passados 52 anos, nada diminuiu minha gratidão à grandeza de sempre de Paris e da França,  a “plaque tournante” dos exilados, dos apátridas, dos desenraizados. Ali fui também acolhido.

Em Paris, eu vi e vivi quase tudo. O amor e o desamor. A alegria e a tristeza. A paz e a desolação. A exclusão e a solidariedade. A distância e a intimidade. O respeito e a agressão. A grandiosidade e a estreiteza. O olhar e a cegueira. Os pesadelos e os sonhos. O bem e o mal. O mundo se descortinou. A juventude desabrochou. A maturidade colheu flores. Amores lindos e findos.

Paris nunca seria a minha terra, mas o lugar do acolhimento, da cultura, da inteligência e do saber. Lá, aprendi a intensidade dos princípios humanos e a louvar a retórica da humanidade pela grandeza dos sentimentos universais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Hoje, mais do que nunca, fica a sensação de que, mesmo tendo saído do exílio, Paris nunca me deixou. Ficou tatuada para sempre na minha memória. Dela me despedi há décadas. Em Outubro de 69, a última vez que vi Paris. Dieu Merci.

SÓ UMA PERGUNTINHA, por Babyne Gouvêa

Imagem meramente ilustrativa (foto: Blog iClinic)

A clínica de exames de imagem estava repleta de pacientes aguardando serem atendidos. Todos com senhas em mãos, cada qual manifestando gestos de ansiedade – do banheiro ao bebedouro, da circulação aos assentos.

Um senhor de certa idade tomava água para encher a bexiga a fim de fazer um exame de próstata. Vez ou outra passava uma das atendentes e perguntava como estava se sentindo, se estava com vontade de esvaziar aquele órgão.

Para inflar o seu sistema urinário mais rapidamente o senhorzinho resolveu ficar na vertical e caminhar no entorno da clínica, deixando a sua esposa sentada lhe esperando com uma cadeira vazia ao seu lado.

O lugar passou a ser ocupado por um outro senhor com a mesma estatura e idade. Era grande a semelhança física entre os dois homens: o que saiu para caminhar e o outro que sentou em seu lugar.

A responsável em conduzir os clientes para os respectivos exames, parou diante do recém acomodado, e sem perceber que estava encarando uma outra pessoa, indagou-lhe sobre a ingestão de água.

Ele lhe respondeu afirmativamente e agradeceu a atenção. Atribuiu a pergunta a um gesto cortês da clínica. Não imaginava ter sido confundido com outro indivíduo.

Enquanto isso, o que estava andando na tentativa de ficar apto para se submeter ao exame de próstata, quis se acomodar no seu espaço original, mas se viu impedido. O local já estava ocupado pelo pretendente ao exame da cervical.

A mocinha se dirigiu mais uma vez a esse último lhe oferecendo água. Ele agradeceu e fez questão de dizer que era jornalista e que faria uma referência nos seus escritos ao gentil atendimento prestado por aquela clínica. Nunca tinha sido tão bem recebido num ambiente médico.

Na terceira vez que lhe abordaram sobre a produção de sua urina ele respondeu estar tudo sob controle, e passou a achar exagerado o questionamento. Mas se manteve sereno aguardando ser convocado.

A próxima indagação se a bexiga estava totalmente cheia, já provocando desconforto, o sujeito esqueceu que era jornalista, deixou o comportamento educado de lado, e partiu para a ignorância.

“Vem cá, senhorita, vou fazer um exame disso aqui ó – apontando o pescoço -, pra que tanta preocupação com as minhas partes baixas?”Sem baixar a voz questionou a relação da coluna cervical com o aparelho urinário.

A moça, um tanto desajeitada, pediu desculpas, saiu de mansinho com vergonha dos outros presentes na sala de espera, e repetiu baixinho: “Pra que tantos gritos? Afinal, foi só uma perguntinha”.

OSSOS DA POLÍTICA, por Francisco Barreto

política

Ilustração copiada de ibccoaching.com.br/

Logo cedo tive a compreensão de que o exercício de ser político com mandato e ter um efêmero poder era caminho certo para trilhar amarguras e desesperanças. Após algum tempo, entendi na extensão o sentimento expresso por Mário Vargas Lhosa. “Quem faz política não tem tempo para amar”, disse o Nobel peruano. Acrescento: “Tem todo o seu tempo de vida útil no cenário atual, armando e desmontando sacanagens”.

Os prazeres da vida pessoal e familiar de um político são literalmente desprezados. E mais: quase todos os políticos são potencialmente inimigos do povo, que assim os considera. Afinal, as enfermidades que corroem o caráter e os padrões éticos são pandêmicos na vida da política e nos políticos. Eis porque a ignorância aliada à inconsciência brutal dos homens comuns, atrelados ao fisiologismo imprescindível à sobrevivência, aceita a histórica permanência da má qualidade da representação popular.

Sempre considero o sentimento de que todas as funções e profissões públicas são nobres porque inerentes à servidão pública. Nenhuma, entretanto, sem demérito para as demais, é mais nobre do que ser representante de seu povo. Ser um eleito é profundamente gratificante à condição humana. O grande desafio é não se deixar sucumbir pela corrupção e aos atos criminosos contra a sociedade e à vida pública. Podem os honestos até escaparem do encilhamento da vida corrupta, dificilmente, no entanto, conseguem se preservar dos atos destrutivos dos políticos desonestos.

O Estado não é monolítico, tem homens do bem. Saiba-se, no entanto, que poucos dos que ascendem ao Poder tem meridiana clareza ética e moral do que ele é e do que não quer ser. Em grandes contingentes os políticos são tragados pelo Poder. Ser fiel servidor da Nação e do povo é condição sine qua non à grandeza política. Ter o iníquo pertencimento enquanto donatário da Nação e do Povo é a regra que nós conhecemos muito precisamente.

Tudo isto me leva à reflexão sobre as minhas andanças políticas e me dá a consciência de que o tempo decorrido desde então me impôs inexoravelmente um distanciamento em benefício da minha sanidade ética e moral e, é claro, emocional. Quero viver em paz com os meus, sobretudo comigo mesmo.

Num país onde a perversidade e a corrupção é o lugar comum, revelam-se estas as mais dominantes invenções da política. O que fazer numa “democracia representativa” onde prevalece a cumplicidade do voto popular com a má qualidade. Para a opinião pública, maciçamente, e sem distinção, todos os políticos são escopeteiros.

O povo, de um modo míope, em frações exponenciais contribui alegre e feliz para emergência de representantes que vão exclui-lo em seguida. Aos maus políticos, cumpre de modo “magnânime” conceder ossos para seus cúmplices roerem. O que se alardeia hoje, nesta infeliz sociedade, é o que “bravamente” se designa de Bolsa Família reciclada agora de Auxilio Brasil.

É doloroso admitir, como preconizava Cicero: “Todo governo é inimigo de seu povo”. Em tempo, o sábio das Catilinárias não nos reverberou o que dizer do povo, que hoje, elege os seus inimigos. Grave patologia política.
Políticos seremos sempre, o que não me permito é conviver com o prostíbulo parlamentar. Vivi esta fase, e saí ileso, Dieu Merci.

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  • Em Tempo. Há bastante tempo, fui abordado duramente pela então valorosa Paula Fracinete, da extinta APAN, a ex-Branca Dias da natureza. “Você não tem o direito de abandonar a política” (subentendendo uma certa e positiva avaliação política). Ao que respondi: “Você votaria em mim?”. O silêncio constrangedor se revestiu de uma negativa não dita. Completei: “Não me peça isto nem me leve para um caminho que você não irá”. Terminamos assim. O sacro altar de Ricardo Coutinho era indevassável e piedosamente respeitado.

DOCES VITALINAS, por Babyne Gouvêa

Pouca massa muscular nos braços e nas pernas aumenta risco de morte em  idosos - PEBMED

Imagem meramente ilustrativa, copiada de pebmed.com.br

Era bonito de ver a cumplicidade entre as duas irmãs solteironas. Dolores, comunicativa, procurava conversar com muita gente nas poucas vezes que saíam de casa. Já na recatada Isaura até o sorriso era tímido. Uma complementava a outra, de qualquer sorte e modo, e esse companheirismo beneficiava principalmente Dolores.

Vez por outra, ela costumava cometer gafes pelo exagero de sua expansividade. Isaura fazia o papel de moderadora da irmã, feito aconteceu quando faleceu João, irmão delas. Foram ao velório, Dolores sempre à frente, ansiosa para abraçar o morto. Mas fez de uma maneira que deixou perplexos muitos dos presentes.

Ao pé do caixão, aos prantos, primeiro lamentou a aparência do falecido. “O bichinho tá tão magrinho!”. Logo em seguida… “Ô, João, por que foi que você foi trair sua mulher, hem?”. Isaura procurou intervir. Sem sucesso. Dolores não parava de falar, sem dar trégua nem mesmo ao finado. “Joãozinho, meu irmão, você errou, errou feio, porque você foi infiel a minha cunhada”. E soltou mais algumas frases nessa linha.

Isaura conseguiu, finalmente, um ‘aparte’. Aproveitou uma pausa de respiração da irmã. “Dolores, esse não é Joãozinho. O nosso irmão está na sala vizinha”, explicou. Tarde demais, a viúva do suposto João, alertada por parentes, aproximou-se das duas e sobre elas descarregou um caminhão de impropérios e questionamentos.

“Agora, você vai me dizer com quem ele me traía”, gritou a ‘dona’ do velório. A turma do deixa disso tentou, em vão, contornar o barraco e conter a fúria da mulher que se sentiu por demais ofendida. Mas ela não conseguiu atingir as irmãs com algo mais do que palavras fortes. Dolores e Isaura escaparam para a sala ao lado, onde descansava o verdadeiro João.

Assim viviam as irmãs, vez ou outra ‘aprontando’, passando por situações inusitadas. Como na feira que frequentavam semanalmente. Eram conhecidas por pechincharem com irritante insistência, embora transmitissem ternura na suavidade da voz de cada uma. E desse jeito quase sempre arrancavam algum desconto do feirante.

“Meu bichinho, baixe o preço da banana… Por favor, vai”, apelava Dolores! Alguns vendedores cediam de primeira, para não esticar a peleja. “Com essa falinha mansa, bem diferente daquela víbora lá de casa, atendo na hora”, dizia um. “Dá vontade até de dar a mercadoria de graça, minha senhora, só pra senhora parar de insistir”, atalhava outro.

O trânsito da cidade também ‘sofria’ nas mãos e nos pés de Dolores e Isaura. Especialmente os demais motoristas. As duas não se davam conta de que dirigiam com certa imperícia e imprudência, porque trafegavam em excessiva baixa velocidade. Causavam aborrecimentos e ligeiros congestionamentos. Afinal, não passavam da segunda marcha.

Quem viesse atrás, sem chance de ultrapassagem, que aguentasse. “Passa a terceira, comadre”, gritava um ou outro, sem a menor desconfiança de que elas ignoravam gozações ou irritações alheias.

E na missa dominical? Católicas fervorosas, ocupavam bancos da primeira fileira diante do celebrante. Terços nas mãos e cobertas por mantilhas, permaneciam de braços dados durante toda a liturgia. Desgarravam-se apenas no momento da comunhão ou quando percebiam um olhar reprovador do padre.

Uma das melhores histórias das irmãs, Dolores sempre protagonista, aconteceu com um flanelinha. No estacionamento ao lado da igreja, saindo da missa, ela procurou e não encontrou na bolsa algum trocado para dar ao rapaz que ficara ‘tomando conta’ do carro delas.

“Ah, moço, vá me perdoando, mas não tenho um vintém pra lhe dar”, disse. “Quero vintém não, minha senhora. Basta me dar um dinheirinho”, respondeu o flanelinha.

Causos e casos do tipo marcavam o cotidiano de Dolores e Isaura. Mas, apesar dos percalços e certas distrações, digamos, eram conhecidas e queridas pela candura com que tratavam todas as pessoas. Tanto que muitas de suas amigas e amigos, se lhes fosse dada tal atribuição, não hesitariam em identificá-las em vida e em lápide como ‘doces vitalinas’.

FRATURAS EXPOSTAS, por Francisco Barreto

Assim se passaram 57 anos da ditadura militar. E hoje, aos 74 anos, ainda não tive o reconhecimento de minha aposentadoria. Tudo porque a Ditadura me prendeu aos 17 anos incompletos em Abril de 64, em Janeiro de 1969; aos 21 anos incompletos, fui escorraçado da UFPB pelo AI-5 e o Decreto 477. Estava no 4º ano de Direito. Perdi inexoravelmente a minha carreira jurídica. Em seguida, fui embora para a França recomendado pelo valoroso advogado Nizi Marinheiro, advertindo-me que poderia ser preso com destino a Itamaracá. Onde a tortura campeava.

Tinha que sair do Brasil. Havia processos com prisão preventiva na 4ª Auditoria Militar. No exterior, aos 27 anos completei Graduação, Maitrise e Doutorado e retornei ao Brasil no final de 1974. Desta ultima data, até janeiro de 1980, não conseguira nenhum trabalho formal; por conseguinte, passei 10 anos sem lograr a formalidade laboral. Tentei ingressar na UFRJ/FAU, onde ensinei alguns meses. No IBAM, na SEPLAN/PR – IPEA/IPLAN, UNB, UFPE sempre fui obstaculizado pela decisão dos órgãos de segurança ligados ao SNI. Sempre trabalhei como “bóia fria político”.

Não logrei anistia porque a punição tinha sido sobre a minha vida estudantil. Na UFPB, nós éramos mais de uma centena de estudantes, professores e funcionários. Não tive a sorte do ínclito cidadão Luís Inácio da Silva, que por militância sindical obteve anistia e uma bem remunerada aposentadoria.

A UFPB foi o algoz da minha geração, sem conceder o sagrado direito de defesa aos “crimes” dos que lutaram pela liberdade e a democracia. Muito tempo depois, em agosto de 1999, a mesma UFPB fez uma digna retratação pública de sua perseguição política. Apaziguou as nossas dores, mas não impediu que as fraturas continuassem expostas.

Em 1997, por concurso público, finalmente ingressei formalmente nos quadros docentes da UFPB, Campus de Campina Grande. Vinte e oito anos depois depois. Graças à justiça que foi me atribuída pela UFCG e a inúmeros companheiros do Centro de Humanidades, foi decretada o fim da minha diáspora laboral. Hoje, continuo na luta na tentativa de lograr a minha aposentadoria. Quando finalmente conquistar o direito, já terei possivelmente perdido vários benefícios que já não mais me serão concedidos.

No ocaso da minha vida, olhando para o passado, vejo com clareza os malefícios do autoritarismo que se serviu da submissão ditatorial da UFPB no período de Guilhardo Martins. Tenho com precisão e clareza que não havíamos errado, quem errara fora a UFPB, logo ela, uma instituição pública que sempre deveria ter sido depositária da propugnação dos conhecimentos, do respeito à liberdade de expressão, do culto à dignidade e aos Direitos Humanos.

Se tivesse que recomeçar, recomeçaria. Não me arrependo de nada, apesar dos sofrimentos que me foram impostos. Faria exatamente o mesmo caminho na minha vida pública. O escuso e deletério clamor, aqui e agora, pela volta da Ditadura, revela a brutalidade que pode ainda imperar, por iniciativa de frações da inconsciência nacional.

Longe, muito longe da minha capacidade de luta na juventude, apenas e tão somente permanecerei de pé enfileirado na defesa acreditando que os nossos caminhos não podem prescindir da fé nos ideais da liberdade, da democracia e dos direitos humanos nesta combalida Nação.

SANGUE, SUOR E LÁGRIMAS, por Francisco Barreto

Imagem copiada do blog O Contemporâneo

Sinto hoje, mais do que nunca, uma profunda indignação com os seres abjetos e inferiores, racistas infames que hostilizam os negros.

O Brasil é uma nação negra em todos os sentidos. O que seria de nós se não fosse, lamentavelmente, a dolorosa história da negritude que se enraizou pelo sofrimento do escravismo e fecundou o que hoje somos por sua incomensurável grandeza humana, sociocultural e o sincretismo religioso.

A brutal desonra pelos crimes históricos tem que se dobrar e reverenciar a grandeza de gentílicos africanos que somaram aos milhões brutalmente extirpados de sua terra e do seu ser.

Ao aportarem na Terra Brasilis submetidos ao “um sonho dantesco… o tombadilho. Que das luzernas avermelhava o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros … estalar de açoites (Castro Alves)” se tornaram degredados e escravizados por vis homens sem almas.

O Brasil os algemou e os impiedosamente matou as suas almas e os seus corpos. Não tiveram a indulgência que se concediam aos animais irracionais. As lágrimas nos olhos, e o fel nas bocas dos homens e mulheres, ainda ontem, eram “simples, fortes, bravos” se tornando, sem luz, sem ar, sem razão: apenas míseros escravos.

Os clamores épicos e humanistas de Castro Alves até hoje ressoam diante das brutalidades do passado e de um presente aterrador: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura … se é verdade Tanto horror perante os céus!”

Que abominável absurdo testemunhamos pela perpetuação do racismo, da insanidade que até hoje persiste no Brasil. A miséria humana, de ontem e de hoje, tem em sua gênese a crueldade, o crime e a desonra de almas sebosas que humilham, agridem pelo mais asqueroso prazer de se sentirem falsamente superiores.

Recorro a minha modesta trajetória pessoal. Desde a minha mais remota infância, sempre tive uma afetuosa convivência com os negros que conheci e viviam ao meu lado. Lembro da Nêga Rita, da fazenda do meu pai, que com mais de um dezena de filhos me acolhia na sua pobre moradia. Adorava entrar na fila do comer com seus pobres filhos, me esgueirar até a panela de barro no fogo com fava, farinha e rapadura. A fila andava devagar, a mãe Rita, com uma colher, ia com justiça servindo de boca em boca várias vezes.

Nunca esqueci do preto Lídio que morava na minha casa e à tardinha o esperávamos trazendo nos bolsos pirulitos de maracujá. Lídio era o avô que já não tínhamos.

Ao longo da minha diáspora politica, dois negros, espíritos superiores e generosos, abraçaram-me e me deram grandes alentos.

Monsieur Christian Vyeira, na Unesco, meu tutor, oriundo do Dahomey, ex-Ministro da Educação, bisneto de escravo baiano alforriado, e que retornou à Africa. O M.Vyeira era a reminiscência viva de uma origem escrava no Brasil. Vinha de africanos que retornaram e constituíram uma importante elite intelectual e comercial. Falavam o brasileiro.

Não poderia apagar da minha vida o Prof. Milton de Todos os Santos que me acudiu nas minhas veredas acadêmicas em Paris. Os dois tinham por mim uma ternura paternal.

Não consigo assimilar os sentimentos raivosos contra os negros. Logo eles que trazem consigo histórias submersas de crueldades que os ancestrais sofreram e derramaram sangue, suor e lágrimas.

Ao olhar os negros, tenho o sentimento de extremo respeito por serem descendentes diretos do maior sofrimento humano brasileiro que foi imposto às suas massacradas ancestralidades.

Insurgir-se contra a discriminação racista é um dever histórico de reconhecimento da importância dos negros na formação da nacionalidade brasileira.

Nenhuma presença étnica que se acomodou na Terra Brasilis é mais importante do que a contribuição afro-brasileira. Em todos segmentos intelectuais, artísticos, culturais, sociais, religiosos, inclusive, linguísticos, musicais, culinários etc., as raízes negras foram as mais profundas e generosas ao que hoje se convencionou chamar de “nacionalidade brasileira”.

O Brasil de ontem e de hoje tem uma dívida histórica com os sacrifícios dos negros que rastejaram por terras encharcadas de sangue, suor e lágrimas. Por uma razão elementar, deve-se respeitar aqueles que sopraram a alma deste extraordinário e cambaleante pais.

Cumpre-nos, por consciência e grandeza humana, ao contemplar os negros, destinar-lhes homenagens pela resistência e o espírito de sobrevivência que lhes legou Zumbi dos Palmares.

ENCHENTE, por Ana Lia Almeida

Imagem meramente ilustrativa (Foto: Daniel Búrigo/A Tribuna)

Tão cedo da manhã, o sol já era o de meio-dia. A cidade inteira, um imenso cuscuz abafado. Rita fervia dentro do ônibus, indo para a casa de D. Laura, mas pelo menos vinha sentada, no lado do corredor. O passageiro ao seu lado instalou-se em frente à janela, barrando todo o vento que já era pouco, até mesmo porque o buzú mais parava que andava, engasgado no engarrafamento de todos os dias. Quando pegava um sinal aberto e uma faixa livre, o vento corria e a alegria era grande. Mas durava pouco. Logo em seguida, parava de novo, e tinha gente a ponto de desmaiar de calor.

Alguém chamou o nome de Rita, duas fileiras atrás. Era Taci, sua vizinha, guardando o lugar que acabara de vagar. Por sorte o rapaz de pé em frente ao banco respeitou, cedendo o assento à jovem senhora que rapidamente se deslocou até lá. Menina, que calor é esse, Rita já chegou reclamando, deixa eu sentar nessa janela um pouquinho pelo amor de Deus.

Logo cedo já está desse jeito, hein, Rita? Desde que eu moro aqui nunca tinha passado tanta quentura, tô achando que tá mais quente esse ano, não está? Rita fez que sim, com a cabeça, se abanando. E pouco choveu no meio do ano, não foi? Época de São João, que está sempre chovendo, foi quase seco, esse ano está doido. Olhe, eu não sei o que é pior: época de chuva ou esse calorão todo. Vida de pobre é sofrida de todo jeito, andando no sol quente ou debaixo do aguaceiro. Não vê esse povo de carro aí embaixo, ar-condicionado no máximo, quando chove, também, não faz nem diferença pra eles.

Logo que eu cheguei de Jaboatão, sabe, Rita, eu fui morar numa vila que tem perto do Rio Jaguaribe. É São Rafael, ali, uma casinha bem pequenininha, que dava para a ponte. Teve uma vez que choveu dois dias seguidos sem parar, enchente braba, e o Rio teve uma cheia. Quebrou até a ponte. A água entrou em casa e levou tudo: sofá, televisão, armário de cozinha, a geladeira novinha que eu tinha acabado de comprar, tudo, tudo que eu tinha. Sobrou só as coisinhas do meu quarto. Uma tristeza, perder tudo que você tem de uma hora para a outra.

Mas a gente tá sempre dando a volta por cima, né, Taci? A vida não roda, não, ela capota. Um dia esse pessoal tá no bem bom, no friozinho desses carros chiques, dinheiro que não tem nem onde gastar. Dando tudo fácil pra esses meninos aí, ó, que não sabem nem atravessar uma rua. No outro dia, não estão mais aqui e fica o povo todinho brigando por herança. Desse jeito. Melhor viver a vida simples, mesmo que passe mais calor. Vai descer na próxima, não é? Cuida.

  • A fotografia que ilustra esta crônica foi copiada do site 4Oito

COM AFETO E PASSAS DE CAJU, por Francisco Barreto

Da janela da Casa de Cora Coralina, visitantes veem o Rio Vermelho que corta a cidade de Goiás (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Da janela da Casa de Cora Coralina, visitantes veem o Rio Vermelho que corta a cidade de Goiás (Foto e legenda: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

A memória é como o vento, apaga pequenas chamas e flameja as grandes. Surpreende-me que a idade, longe de me cultivar mágoas, mantém a léguas de distância a ranzinzice tão epidérmica aos provectos. Melhor ainda, faz-me viver solitariamente intensos momentos onde o passado inunda o meu presente de alegres pensamentos. Como diriam os franceses, tais sensações e sentimentos conduzem a minha “destinée”. Afortunadamente, todos os dias me afloram remotas e radiantes lembranças.

Assim fui ao encontro de Cora Coralina nos idos de 1983, em Villa Boa de Goiás Velho. Tinha que conhecê-la. Ainda mais depois de aconselhado em Brasília por Flávio de Almeida Sales, seu neto. Ele assegurou que ela adorava visitas. Levei comigo passas de caju regadas com mel de engenho à linda morada na margem direita do Rio Vermelho. A porta de duas bandeiras estava entreaberta. “Ô de casa!” De pronto ouvi : “Já vou. Quem é?”. Subitamente, ela se aproxima de mim: “Que deseja?” Respondi: “Vim da Paraíba do Norte conhecê-la! Sou amigo de Flávio, seu neto”. “Seja bem-vindo”, disse ela. Entrei e me acomodei numa das poltronas na sala austera.

Iniciei a minha intromissão: ‘Dona Cora, se há uma coisa que não me permito nunca é me manter na ignorância. Tinha um enorme desejo de lhe conhecer e lhe presentear estas passas de caju com mel de engenho”. Agradeceu-me com um sorriso no olhar. “Maravilha! Vai me lembrar da minha mãe, que tinha origem nordestina”, disse, acrescentando: “Não sou poetisa, sou apenas uma doceira”.

Tivemos uma longa conversa. Falou-me de suas andanças em São Paulo, de suas caminhadas na Revolução Constitucionalista de 32, de Getúlio e de sua volta para o Goiás Velho nos anos cinquenta. Contei-lhe que Francisco de Paula Barreto Sobrinho, meu pai, junto com vários amigos, fora guerrear em São Paulo também em 32. Achou interessante e me revelou que seu pai também era Francisco de Paula. Sorriu quando disse que eu também me chamava de Francisco de Paula.

Confessou-me que abdicara seu nome de batismo, Ana Lins dos Guimarães Peixoto. Cora Coralina se atribuíra como homenagem ao Rio Vermelho. Nesse ponto, pediu licença e foi ao interior da casa, de lá trazendo nas mãos um pouco trêmulas dois pequenos cálices com licor de leite. Calmamente bebemos aquele néctar. Criei coragem para pedir o autógrafo do seu então recente livro ‘Vintém de Cobre’. “Ao estimado amigo Francisco de Paula, por sua visita”, escreveu e assinou.

Segundo após recolher tão ansiado presente, senti ter chegado a hora de ir. Anunciei a minha saída. “Já vai?”, indagou. “Já, Dona Cora, já fui longe demais”. Nos despedimos e saí. Ao me encaminhar para uma ponte vizinha à casa, olhei mais uma vez e a vi parada na porta. Fixei a imagem com a certeza de que não a veria nunca mais. Ela tinha mais noventa anos.

Aquele foi um dos encontros mais memoráveis da minha vida. Eu, o visitante das passas de caju; ela, um espirito florido que exalava a sua bela alma poética. Pessoas como Cora Coralina não morrem nunca, simplesmente continua presente na memória de quem cultiva flores e afetos.

Feliz estou. Cora Coralina aninhou-se para sempre nas minhas arrebatadas lembranças de um passado que se mescla alegremente com o presente. Feliz porque o meu passado tem iluminado o meu hoje. A memória dos melhores instantes vividos levou-me até ela. Talvez só para endeusar todos os seus versos, a magia e ensinamentos de seus poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove as pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.