Pequenino e elétrico, o pintor paraibano Ivan Freitas (1931+2006) formou vivo contraste com a própria obra. Não raro era visto em estado de mal disfarçada irritação e impaciência, como se acabado de constatar que ele e aquilo que mais procura divergem de lugar, sequer estão próximos nem há muito tempo antes que tenha de empreender a busca inevitável.
Quando vinha à Paraíba dizia a quem o recepcionasse que tinha um itinerário de trilhas ou ruas de um bairro antigo (gostava particularmente de Tambiá) para seguir; uma linha de praia (quase sempre Manaíra) a ser palmilhada no pé, sendo incerto supor que a escolha desses roteiros fosse por ordem puramente sentimental, tanto quanto é certo dizer que não é a beleza de um lugar que leva cientistas a instalarem um observatório astronômico, mas sim a qualidade da observação extraível dali.
Talvez, por razões análogas, o pintor paraibano dispensava a companhia de quem se oferecesse para acompanhá-lo: queria estar só nessas andanças tão misteriosamente pessoais, a fazer com passos normalmente rápidos, mas estancantes, às vezes, diante de um velho pórtico ou janelão em ruínas, por trás dos escombros de algum jardim de antigas luas apagadas, onde por instantes se detinha sem, no entanto, conseguir conceber sua visão em termos que fossem meramente socioeconômicos ou segundo algum tipo de historicismo nostálgico, capaz de fungar suas lentes – sempre tão objetivas para o trabalho –, avaliando, porém, aqueles estragos por uma ótica que considerava o abrasamento inapelável entre corpos que giram no espaço-tempo, cuja entropia natural pode tanto criar buracos negros nas estrelas quanto provocar danos consideráveis num tijolo de oito-furos. Se houvesse algum tipo de sentimentalismo ali, não seria de fácil tradução, e, por favor, nada de ideologias com ele.
Passava registrando nas pedras da rua a mancha inescorrassável provocada por um chover secular de jambinhos podres; parecia às vezes querer fotografar o tempo pelo rastro impiedoso deitado nas coisas: no cais abandonado uma espinha de ferro esquecida de seus trens mergulha sem volta na terra. O final interminável do tempo soçobrando num grau maior de desordem, onde, no entanto, a informação perdurou. De outra, anotava, na praia, um novo brinquedo de luz no velho engastamento de céu e águas , e, cumprido esse périplo misterioso, voltava para o hotel, como sempre ensimesmado, quase ríspido, exigente. É certo que já tivesse antes cuidado de interesses mais imediatos (exposições, contatos comerciais etc.) e era tempo de pegar o avião de volta para o Rio, para o ateliê da Lapa. Uma parte do que iria produzir ali, no entanto, voltaria para cá, uma vez que nos seus mais de cinquenta anos de atividade ininterrupta como pintor, não perdeu jamais contato com as raízes, mesmo quando viveu por mais de uma década na América do Norte. Por outro lado, sua terra foi sempre uma espécie de laboratório de bolso carregado pra todo lado, pois continha um arquivo de imagens primícias e insubstituíveis, em cima do qual laborou a vida inteira.
O que nos chegava de sua Arte, entretanto, expressava algo diverso do que comumente poderíamos atribuir àquele Artista inquieto, de humor difícil: era quase sempre o registro de paisagens naturais ou urbanas, onde, por uma conjuração de ciência e tecnologia, o planeta terra havia entrado, finalmente, numa grande era de paz entre homem e natureza; marinhas tranquilas, de cochilantes marés, perpassadas de luminescências e bonomia atmosférica, céu de ligeiras ocorrências físicas, vibrações hertzianas.
Para Ivan, um acontecimento mais forte nesses cenários (uma ameaça de chuva, por exemplo) podia muito bem ser representado por um esquema demonstrativo localizado, sem prejuízo para a harmonia do restante: fazia quase que um gráfico das refrações e difrações da luz, usando giz e régua – como faria um bom professor do Liceu antigo, caso se deparasse com a questão. Gostava de pintar nossos logradouros públicos mantidos sob aura de silêncio e ordem, desertado de pessoas, como se evacuados por algum inaudível toque de silencio, ditado não pela tirania das circunstâncias políticas sob as quais viveu a maior parte da vida, mas por uma estética de autoritarismo implacável; um arco-íris sobre a Lagoa do Parque Solon de Lucena se tornava, pelo prisma do pintor, uma seção do próprio prisma de Newton.
Pintava relíquias arquitetônicas na mudez intocada de seus pátios vazios, cujas torres e capitéis retorcidos dão de encontro ao mesmo céu exemplar, com ênfase na retidão da luz. Aqui e ali uma pequena mecha de nuvem se assanha da cabeleira como se quisesse depreender-se pela própria ação dos revérberos nela visíveis, mas é apenas para dizer que é uma nuvem, e, como tal, comete rebeldias; uma chuva sobre o canavial chovia de apenas uma nuvem, num concerto de várias, como se um filósofo sufi da Índia tropical tentasse dar um exemplo de chuva para beduínos do Magreb, e era como se o próprio Ivan houvesse bombardeado aquela nuvem com uma contra-carga elétrica de efeitos gráficos, unicamente para produzir um módulo de precipitação pluviométrica, e fornecer dessa forma uma condição mínima necessária para o evento ocorrer de forma exemplar, porém sem empanar a luminosidade no resto da tela; uma nuvem partida ao meio podia ser o pretexto para uma onda energética de Planck, imiscuindo-se por lá – proveniente de alguma galáxia –, fazer sua entrada triunfal no quadro, vindo refletir-se no calçadão (no caso de uma marinha), supostamente aos pés de quem observa a cena. Mas até essa reflexão luminosa se dá ao modo de Ivan: a luz explode aí num círculo perfeito, idealizado, de uma órbita de elétrons, num modelo quase escolar do Arco Voltaico, ficando, às vezes, a um passo do logotipo (como aquele da radioatividade).
Para ele era indiferente que pintasse o rio Sanhauá ou as praias da costa, ou ainda os canaviais a oeste: tratava-se sempre de um páramo, uma linha reta de horizonte sobre a qual iria traçar suas inevitáveis intersecções luminosas; também estava se lixando em saber se as noções científicas de que se valia eram pertinentes à física clássica, ou, quântica. Talvez seu trabalho se enquadre melhor naquela primeira designação, enquanto ele próprio, com seu trato imprevisível, seu permanente desassossêgo íntimo, tinha um comportamento mais assemelhado com o das partículas subatômicas. De qualquer forma, o que traçava, na verdade, solitário no ateliê da Lapa, era uma fusão de naturalismo pictórico com conceitos abstratos da ciência, uma coisa aparentemente difícil para outro que não ele, mas que foi, acima de tudo, a experiência muito bem sucedida de quem criou uma simbologia dos procedimentos exatos. Talvez por dominar uma técnica exata. Uma Arte exata.
Era fascinado por esta aluvião de fenômenos em desabamento contínuo sobre a Natureza, sobre nós, e os apreendia com consciência artística e suficiente capacidade (e engenharia poética) de quem podia transforma-los em belíssimos adereços estéticos, reordenados dessa vez para servir como elementos fortes de pintura. Esses elementos integram-se tão magistralmente na paisagem que não chegam a provocar estranhamento algum no público, e isso desde muito antes que banhistas de mares ensolarados como o nosso passassem a expor os corpos na praia segundo uma maior inclinação dos raios ultravioletas. Através de sua pintura o cosmos acabou, para nós, tornando-se mais familiar, alguma coisa quase doméstica. Cosmética.