ANÚNCIO QUE ELES NÃO VIRAM, por Frutuoso Chaves

Genival Lacerda (Foto/imagem: Adriana Spaca)

O janeiro que já se finda e o anúncio de vacina bivalente contra a versão mais antiga e a mais nova do coronavírus remetem-me ao princípio de 2021. E, assim, atino para a pressa do tempo. Como corre!

O fato é que lá se vão dois anos da morte de Genival Lacerda, um camarada saído da periferia de Campina Grande para os palcos do Brasil. Há dois janeiros, matou-o, desgraçadamente, o coronavírus. Ponho-me a pensar em quantas vidas úteis às nossas vidas teriam sido poupadas caso dispuséssemos dos cuidados sonegados ao País pela indiferença, pela incúria, pelo abandono institucionais.

Enumero apenas, com o pedido do perdão por lapsos de memória, essa gente que nasceu com o talento para as muitas manifestações da arte, situem-se elas nos campos da música, da literatura ou da dramaturgia. Refiro-me aos que vieram ao mundo para o acalanto das nossas almas, para nos emocionar, ou fazer rir.

Não tiveram tempo para ouvir o anúncio da tal vacina bivalente, então feito pelo Jornal Nacional, Tarcísio Meira, Paulo Gustavo, Ubirany (do Grupo Fundo de Quintal), Agnaldo Timóteo, Nicette Bruno, Paulinho (do Roupa Nova), Eduardo Galvão, Daise Lucidi, Ciro Pessoa (dos Titãs), Aldir Blanc e Nelson Sargento. O paraibano Genival, penosamente, encabeçou essa fila.

Outras mortes por Covid nos abateram de forma ainda mais dura, em razão do companheirismo e da convivência por décadas nas Redações de João Pessoa. A bênção, Humberto Lira. A bênção, Otinaldo. Para nossa tristeza, vocês e mais dois outros colegas de Campina Grande (Fernando Santos e Karina Araújo) se incluem na relação dos quase 50 jornalistas brasileiros abatidos por essa praga.

Dois anos atrás, a notícia da morte de Genival Lacerda me repunha em 1958, tempo em que eu cursava o Primário no Recife e morria de saudade de casa. Os domingos sem escola me permitiam a cama por mais tempo. Das 9 às 12, o rádio do vizinho sintonizado na Tamandaré sempre me trazia as vozes de três paraibanos. “Eu fui feliz no meu Bodocongó”, cantava Jackson. Naquele barquinho de um remo só eu também chegava a Campina, longe, ainda, da pequena Pilar, onde viviam meus pais, irmãos e amigos. Contudo, já mais perto dos meus.

Marinês, então, me divertia. Apesar dos meus 12 anos, eu suspeitava de que havia algo além da pimenta de Seu Malaquia naquele peba. Tudo por conta do rumo da conversa travada no meio da música, com a sanfona a resfolegar.

Ela – Ô, sujeito, tu não dissesse que não ardia?
Ele – E ardeu?
Ela – Ardeu, sim.
Ele – Mas tu gostou.
Ela – Eu gostei, mas tô pegando fogo.

Tudo bem, Marinês nasceu em São Vicente Férrer, Pernambuco, mas quem lhe negaria a alma campinense? “Coco de 56” e “Dance o xaxado”, em gravação da Mocambo, cemitério de cantores, como a tratava o deboche pernambucano, preenchiam o compacto duplo, o primeiro da carreira de Genival Lacerda, ao que li. Estava ali, então, a terceira voz da Paraíba a me embalar o coração de menino naquelas manhãs de domingo, no subúrbio de Jangadinha, a cinco horas de trem do meu ninho.

O Genival que cantava nas manhãs da Tamandaré e em muitas outras emissoras nacionais, nas vizinhanças de 1960, ainda não era o Senador do Rojão nem o Rei da Munganga, aquele da “Severina Xique-Xique”, do “Rock do Jegue”, ou do “Mate o Veio” e, sim, o intérprete de coco e xaxado no palco da minha e de muitas saudades. Foi quando eu mais gostei dele.

O homem sobreviveu à Gravadora Mocambo, o dito sepulcro de nomes regionais. Fez-se conhecido e aplaudido por multidões. Aos 89 anos, foi morto por um vírus mal contido pela imprevidência governamental e pela insensatez de muitos, em meio ao distinto público. É dele, primeiramente, que volto a lembrar, passados esses dois anos. Mas, também, por extensão, dos outros sem-tempo para a vacina de agora. Uma pena.