DIA DO OBRIGADO, por Frutuoso Chaves

Postagens sucessivas nas redes sociais lembram o transcurso, neste 11 de janeiro, do Dia Internacional do Obrigado. Aprendemos que o termo é um belo traço da alma e da língua portuguesas. Coisa de séculos.

Enquanto outros mortais se limitariam a expressar o sentimento de gratidão com meras interjeições (thanks, danke, merci, gracias) os herdeiros da língua de Camões, em quatro sílabas apenas, dispõem-se a retribuir, obrigatoriamente, a atenção, a gentileza, o serviço, ou o favor então recebidos de alguém.

O obrigado, ou obrigada, teria este significado: “Sinto-me obrigado(a) à retribuição”. Quem já não leu crônicas, ou ouviu mensagens saborosas com esse tema? E todas com louvores à concisão e à pureza da língua que herdamos.

Eis que leitura recente me conta outra história e me corta o barato. A palavra, com origem indo-europeia (leyg, de ligar), tinha uso formal no fim das cartas de antigamente, com termos exageradamente rebuscados aos olhos de hoje. Coisa do gênero: “Muito venerador e obrigado (ligado) a Vossa Mercê”. Viria daí, também, o “merci” francês.

Com o tempo, o “obrigado” pulou de categoria e reinventou-se, ao que leio no Vortex Magazine, um portal de língua portuguesa dedicado a temas relacionados à sociedade, à cultura, às viagens e à tecnologia, tal como se apresenta.

A VortexMag bebe nas fontes de linguistas e pesquisadores portugueses, a exemplo de Marco Neves e Fernando Venâncio, para garantir que o termo “obrigado” somente tem registro escrito, com o sentido atual, a partir do Século 19. Ou seja, Camões nunca agradeceu a ninguém desse jeito. Quanto a mim, com as minhas carências emocionais e culturais, prefiro o sentido moderno da palavra. Afinal de contas, o uso consagra, não é?

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O VELHO E O MENINO, por Frutuoso Chaves

Calendário de 1953, comemorativo dos 50 anos da Ford

As viradas dos anos trazem-me sempre à memória aquelas antigas figuras de calendário: as do velhinho e do menino, o primeiro a se despedir do tempo e o segundo a nele ingressar. Mas não são quadros difusos o que me vem à lembrança nessas ocasiões. É, ao invés disso, uma gravura específica que suponho ter visto, pela primeira vez, na Farmácia de Seu Israel, no Pilar da minha infância. Apenas suponho, dada a possibilidade de tê-la contemplado em outro ambiente.

É provável que, sem consciência disso, haja eu, então, associado a imagem em carne e osso do velho farmacêutico à do Matusalém de papel e tinta. Dono da calvície mais completa que alguém possa merecer, o primeiro deles ainda exibia o peso e os males da idade numa corcunda impressionante. Tinha na coluna as dobras de um anzol. Espantosamente, porém, tais defeitos sublinhavam suas virtudes. Afável, cortês, obsequioso, fizera-se admirado e benquisto pela cidade inteira.

Eu nunca soube de uma viva alma que dele não gostasse. O saudoso professor José Augusto de Brito, um dos seus muitos admiradores, contava que, de tão bom, Seu Israel, ao pressentir a morte, tratou de esconder a caderneta de fiados para que os herdeiros não fossem cobrar aquilo que os amigos mais pobres não poderiam pagar. A farmácia durou o tempo exato da existência do dono. Morreram ambos quase com o mesmo suspiro.

Está explicado porque eu passei a unificar os dois velhinhos: o boticário e o da gravura. Isso também esclarece porque, até hoje, me compadeço da figura provecta tomada como símbolo da morte do Ano Velho. A pintura tinha a resignação, o corpo alquebrado e o olhar triste de Seu Israel. Daí eu acreditar que estivesse pregada à parede da pequena farmácia. Não, noutro lugar qualquer. Estaria, isto sim, ali, no seu templo, à semelhança do dono da casa.

Salvo raríssimas exceções, não maldigo um ano que se encerra. Afinal, nada é totalmente perfeito, ou imperfeito. Por essa mesma razão, nunca me dispus a ver o Ano Novo como prenúncio da felicidade plena e absoluta.

Mas, como você, também sou feito de fé e esperança. Torço para que atravessemos o Ano Novo sem maiores problemas com a subsistência, com a saúde, com a família e com as amizades. Digam os anjos Amém.

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ENTÃO, É NATAL? por Frutuoso Chaves

Imagem: catolica.blogspot.com

Leio que o 25 de dezembro, do calendário romano, é data improvável. Não, Cristo não teria nascido em tempo tão frio, porquanto o evento não condiz com dois relatos bíblicos: o de pastores e rebanhos ao relento e o do censo determinado por César.

Os dirigentes romanos e judeus estavam longe de ser burros. Tirariam pouca gente de suas casas para jornadas penosas até Belém com temperaturas próximas, ou abaixo de zero, como ocorre, até os dias de hoje, naquelas paragens. E, ainda por cima, para dar nome e endereço ao governo e seus cobradores de impostos.

Tampouco, os pastores contemplariam estrela cadente, em meio ao gado, bichos e seus donos a céu aberto, num frito de quebrar ossos. Nesta época do ano, bois, vacas, jumentos e ovelhas permaneciam (e ainda permanecem) nos estábulos.

Mas, ouçamos o minucioso Lucas: ”Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Esse primeiro recenseamento foi feito quando Quirínio era governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Subiu também José, da Galiléia, da cidade de Nazaré, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, para alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam ali, chegou o tempo em que ela havia de dar à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro de casa…” (Lucas 2:1-7).

Êpa! Primogênito? Então, houve outros?

Outra coisa que não parece bater bem é este Cristo loiro, de olhos azuis. Nem, em outra hipótese, este branquelo de olhos e cabelos castanhos, conforme retratado durante séculos, desde os templos da Europa até a Paróquia de Nossa Senhora del Pilar (assim mesmo, espanholada), na terra pequena, pobre e sofrida de José Lins do Rego.

Repetindo: não combina bem com a razoabilidade um Cristo branco em terra de morenos, logo ali, na beirada da África. Nem natais nevados em verão tropical, como por aqui são celebrados, com pinheiros de plástico e gelo de algodão.

Nunca fui ao ponto de enfeitar xique-xiques, mas sempre duvidei, desde muito novo, deste Papai Noel de barba branca, botas de cano alto, luvas e roupa ridiculamente vermelha num calor de derreter juízo. Esse camarada gordo pra dedéu que voa de trenó e entra por chaminés.

Há muito suspeitei de que sempre estivemos a comprar produto errado, artigo falso. Não é nem nunca foi nosso o Merry Christmas desejado ao próximo . É mercadoria alheia.

Além do mais, entendo que não seria menos santo um Cristo de pele morena e cabelos crespos. Sou, porém, um sujeito que respeita a opinião alheia. Cada um com sua fé e suas crenças.

Então, beijo para quem for de beijo, abraço para quem for de abraço e Feliz Natal para os que assim entendam a data e sua inspiração.

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A GEMA NEGRA, por Frutuoso Chaves

Imagem: Freepik

Momento do almoço, mas decidiu aguardar uma fome tão atrasada quanto o trem tomado, duas horas antes, na Capital, a fim de repetir o percurso matutino de todas as segundas-feiras até a fazendinha herdada do pai.

A parada naquela estação, a meio caminho do seu destino, teria ocorrido uns 40 minutos antes se o maquinista houvesse mantido a marcha habitual. Bem que percebera, desde a saída, os espirros mais lentos da chaminé e o chiado do vapor liberado em lufadas mais longas e compassadas. Era como se a máquina estivesse com preguiça.

“Café com pão, café com pão, café com pão”… Os versos de Bandeira, os do “Trem de Ferro”, lhe chegaram com a ânsia dos apressados: “Voa, fumaça. Corre, cerca. Ai, seu foguista, bota fogo na fornalha”.

Mas, fazer o quê, a não ser relaxar, aproveitar o tempo, a paisagem e o entra e sai das pessoas em cada vagão. Lá estavam, como sempre, os vendedores de tapioca, cocada, castanha, amendoim, todos com freguesia cativa entre os viajantes da segunda classe. Estes dispunham de assentos duros de madeira no fim do comboio, ao contrário do seu, acolchoado e macio, em vagão mais à frente, novo e bem cuidado.

E lá vinha o moço de farda e quepe com o malote dos Correios. Encomendas, documentos, correspondências amorosas e comerciais também tomavam o trem, naquele instante, com endereços ditados pelas urgências do comércio e da indústria, ou pelas aflições do peito com suas carências e saudades.

Bem que gostava daquele movimento, estação após estação. Ora descia gente para o reencontro e os abraços, ora embarcava com o choro das despedidas. E ainda havia passageiros como ele, viajantes de percursos repetidos para a labuta longe de casa, com retornos aos fins de semana.

Não conseguia entender a razão de sua preferência, em meio a tantas outras paradas, por aquele lugar. A saleta do chefe com mesinha, cadeira, telefone e telégrafo ladeava o guichê voltado para a plataforma de embarque e desembarque, tudo em linha reta e sob o mesmo telhado de duas águas. Por fim, a sala de espera com poucos bancos compunha, tal e qual, os traços das demais estações com aquele tamanho. E as maiores eram bem parecidas.

Algo, porém, diferenciava aquela estaçãozinha. Talvez fosse o aroma forte e gostoso das cajazeiras que por ali floresciam com certa abundância. Talvez, a encosta suave e bem próxima do morro em cujo cume se erguiam três casinhas avarandadas. Ou, quem sabe, a paisagem vista das janelas à direita do vagão em que estivesse quando no rumo da fazenda: uma linha de eucaliptos e, por trás dela, as águas mansas daquele rio. Tinha esse quadro na mente e, fosse pintor, trataria de reproduzi-lo em moldura real, concreta.

De tanto ir e vir e de tanto se enamorar do que ali via, terminou por querer bem ao moço dos Correios, ao menino da cocada, ao guarda-freios encarregado de mover a agulha para fazer seu trem tomar a linha de Pernambuco e ao chefe da estação, Seu Inácio. Aprendeu cada nome com o tempo ao escutar seus atendimentos e chamados. E passou a dar a cada um a importância atribuída ao conjunto da paisagem com seu relevo, árvores, águas, casas e cores. Nenhum deles, a seu ver, caberia fora dali. Eram todos elementos indispensáveis à composição da mesma e adorável cena.

Deu para puxar conversas curtas, da janela mesmo, antes de o trem retomar o percurso, comprar as cocadas que às vezes não comia, perguntar da saúde de um ou de outro. E passou a explicar as razões das viagens semanais aos que sobre isso perguntassem. Ele e seus interlocutores já se tratavam como velhos amigos.

Até que naquele dia de trem preguiçoso um par de olhos escuros como uma noite sem lua quase o deixou mudo. Teve o tempo do aceno e de perceber, felicíssimo, a retribuição da moça. Caminho retomado, foi para o vagão-restaurante e mal comeu do prato que lhe foi servido, apesar do bom preparo, como de costume.

A menina dos olhos negros não lhe saiu da cabeça a semana inteira. Mesmo quando tratou da venda de algumas reses, da colheita e do transporte de cana para a usina de açúcar da região. A fazenda que lhe coube por herança resultara da rejeição das duas irmãs afeitas à beira-mar e mais interessadas nos negócios urbanos da família. Pensou em vendê-la para aplicar parte do dinheiro na ampliação do escritório de advocacia que já começava a ganhar fama. Entretanto, tomou gosto pela agricultura e a pecuária de pequena extensão. Do fundo do coração, descobriu-se mais fazendeiro do que advogado e largou a cidade, a não ser nos fins de semana.

Seu Inácio, o vendedor de cocadas, o guarda-freios e o despachante dos Correios já pouco mereciam dele além do “bom dia” das segundas-feiras (se o trem não atrasasse) e do “boa tarde” quando do regresso à Capital, nas sextas, antes do pôr do sol. A dona daqueles olhos, ela sim, recebia toda a sua atenção, em suas idas e vindas.

“É sobrinha do chefe e mora na rua”, foi a resposta que obteve ao pedido de informação sobre a moça que também já não mais faltava às duas passagem dos seus trens. Sem intermediários, ouviu, embevecido, certo dia, daqueles lábios: “Sou Lucianita, mas todos me conhecem por Cianita, o mesmo nome daquela pedra”. Isso mesmo, tal como a gema negra, o cristal usado na limpeza de feitiços e magias.

Seu Inácio teve o prazer de recebê-lo em casa pouco tempo depois. Assim, também, logo em seguida, os pais daquele encanto de menina. Eu soube que tiveram cinco filhos.

E fico a pensar: que força misteriosa é essa que junta corpos e espíritos, sem mais nem menos, numa esquina qualquer do tempo? Tais encontros se dão mesmo ao acaso, ou tudo já estava escrito? Fosse outra a cor daqueles olhos, a pequena estação receberia um passageiro de meio percurso ali desembarcado para uma vida nova com mulher e filhos? E a paixão mal explicada pelo lugar inteiro? A alma teria percebido aquela criatura antes que os olhos a vissem?

Ninguém comigo se aborreça. É que os mistérios do mundo sempre me darão arrepios. Nunca deixarão de me surpreender e inquietar. Assim, ainda me resta outra pergunta, a fim de que a respondam os entendidos do assunto. Por ser a Cianita também conhecida como “vassoura de bruxa”, será que tanto limpa quanto enfeitiça? Será?

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CONTRADIÇÕES DO NATAL, por Sebastião Costa

Um nasceu na pobreza de uma manjedoura; o outro, gerado no berço do capitalismo.

Papai Noel, voando no seu trenó puxado a renas, visita todo ano residências chiques e seletas. Sua miopia social não enxerga a pobreza dos morros, favelas, palafitas.

A sensibilidade ‘cristã’ de Jesus visita todo dia casas de taipa, barracos e abrigos. No seu caminhar de sempre, se faz renascer em morros, favelas e palafitas.

Papai Noel, com sua roupa europeia, sua arrogância capitalista, não suporta o calor do sol africano nem a aridez do solo nordestino.

Jesus convive muito bem em meio ao calor humano dos pobres e desabrigados.

Papai Noel é o representante fosforescente da superficialidade capitalista.
Cristo se configura no amor e na solidariedade.

No dia do nascimento de Jesus, que pregou a humildade, todas as luzes para o símbolo do consumismo. E o aniversariante, sem brilho no coração das pessoas.

É a força do capitalismo triturando os ensinamentos do cristianismo.

Há de se perguntar se Papai Noel, vivo fosse há mais de dois mil anos, teria pousado seu trenó naquele estábulo da Galileia para entregar um presente àquele  menino, filho de um carpinteiro?

Sebastião Costa é médico e cronista

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NUNCA ME ENGANOU, por Frutuoso Chaves

Conta-se que a invenção do bom velhinho, este ser de alma pura e vida dedicada à felicidade das crianças do mundo inteiro, teve inspiração na figura do Bispo Nicolau, um turco vindo ao mundo nos idos de 280 depois de Cristo.

Pois bem, naquele tempo Nicolau enfiava moedas nas chaminés dos habitantes mais pobres de Mira, a cidade onde vivia. A Igreja o santificaria 500 anos depois disso, em decorrência da profusão de milagres a ele atribuídos.

A associação deste personagem às celebrações de dezembro, fato ocorrido na Alemanha, logo se expandiria. Atribui-se ao cartunista alemão Thomas Nast, antes de 1900, as vestes em vermelho e branco do Papai Noel, como hoje são conhecidas. Antes disso, o homem podia trajar verde ou marrom.

Levado por Nast às páginas da revista americana Harper’s Weeklys, o bom velhinho, então assemelhado a um gnomo, teve os traços sucessivamente modificados até o ganho da barba e da barriga famosas. Já nos Estados Unidos, ele passou a vender Coca-Cola, a partir de 1931.

O mercado não perdoa. O fato é que Papai Noel também já foi propagandista de cerveja, vermute, cigarro e lingerie. Perguntem, por exemplo, à Dulloren, à Mojud, ou à Pall Mall.

Não é este, todavia, o maior dos seus defeitos. “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”, já lastimava o baiano Assis Valente. A marchinha “Boas Festas”, composta em 1932 para atravessar o tempo nas vozes de dezenas de cantores e cantoras, retrata a exclusão e a tristeza dos filhos de Jó. Não há presente sem dinheiro.

Defeito maior, porém, decorre do fato de Papai Noel haver-se apropriado da festa dos outros. Afinal, o aniversariante mais famoso de dezembro não é aquele menino nascido numa manjedoura, lá se vão mais de 2 mil anos? Pois é, esse cara nunca me enganou.

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O SÃO LUIZ, por Frutuoso Chaves

O Cinema São Luiz resiste (Foto: Reprodução/Divulgação)

Durante a infância, no interior, todos os seus amigos o tratavam por Cláudio, o nome de batismo. Em João Pessoa, naqueles começos de 1960, ele era conhecido por Marcelino, apelido adquirido da semelhança impressionante com o ator mirim Pablito Calvo. Este último se fizera mundialmente conhecido pelo filme “Marcelino, Pão e Vinho”, a história comovente do órfão criado por frades católicos, em plena revolução mexicana.

Depois de um ataque brutal à aldeia, o pirralho refugia-se no sótão do velho mosteiro, onde é atraído por uma imagem de Cristo. Em sua inocência, acha que a estátua padece de fome, oferece a ela pão e vinho e a descobre viva e amorosa.

Pois bem, Cristo não opera, ali, somente, o milagre da transmutação. Além disso, atende ao menino em seu mais profundo desejo: o reencontro com a mãe. Gerações choraram com este filme do diretor Ladislau Vajda baseado, dizem, numa história real.

Ressalte-se, porém, que de Marcelino, o menino Cláudio, um capeta de carne e osso, só tinha a incrível aparência. De resto, levou os malfeitos para a vida adulta. O alcoolismo frustrou, no nascedouro, sua carreira de jogador de futebol (o Botafogo o queria) e, igualmente, a de bancário. Mas, justiça seja feita, nunca prejudicou alguém, além de si próprio. A cirrose o apanhou, sem dó nem piedade, antes que fizesse os 40 anos.

Essa, porém, é outra história. Importa, agora, saber que foi para ver um filme de Cantinflas, também mexicano, que eu, um menino recém-chegado a João Pessoa, me acompanhei de Cláudio até a bilheteria do Cine Plaza, no Ponto de Cem Réis. Tínhamos os dois a mesma origem e ele tratou de me advertir: “Não vá dar uma de matuto. Isso não é aquela porcaria de sala do Seu Zé Ribeiro. A tela, aqui, é cinemascope. Cabe nela aquele cineminha inteiro”.

Se não cabia, era por questão de poucos metros. Mas, mesmo assim, não deixei de me espantar com o que vi depois de ingressar no ambiente escuro e acarpetado. O espanto, porém, tinha razão contrária à suposta pelo meu amigo. Aquilo não amarrava a chuteira do Cine São Luiz, no Recife, cidade onde morei, por algum tempo, com uma tia. Ele, sim, não sabia o que era cinema.

Até os dias de hoje, nada me impressionou tanto, nem tão bem, quanto os vitrais, os detalhes do teto e das paredes, em suma, o ambiente requintado e enorme do cinema recifense inaugurado em 1952 para integrar o conjunto das muitas salas do Grupo Severiano Ribeiro.

Levado pelas mãos do querido Tio Nerges à calçada da Rua da Aurora, também tomei, ali, aos 9 ou 10 anos de idade, minha primeira Coca-Cola. A este, sim, devo ter envergonhado por dois motivos: um arroto pelo nariz que quase me mata e o olhar espantado quando entrei numa das mais belas salas de exibição do País. O impacto daquilo tudo na minha alma de menino nunca mais se reproduziu nas fases seguintes da vida, mesmo que a profissão abraçada tenha me conduzido, vez por outra, a governantes em seus palácios e a salões.

Não entro no São Luiz há décadas. Mas sou informado de que ainda está em operação num mundo onde novas circunstâncias e novos costumes mataram os cinemas de rua. Em João Pessoa, por exemplo, eles apenas existem nos shopping centers, menores e acanhados, porém, mais fáceis de limpar e refrigerar. Também, mais seguros, porquanto os pátios de estacionamento exigem, eles mesmos, bilheterias.

O amigo Cláudio viveu entre nós o suficiente para ver a morte do Felipeia, Plaza, Rex, Municipal e Brasil (no centro comercial), Torre e Metrópole (no bairro da Torre), Jaguaribe, São José e Santo Antonio (em Jaguaribe), Glória e Bela Vista (em Cruz das Armas), apenas para citar aqueles dos quais me lembro.

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OS PERIGOS DE NYOKA, por Frutuoso Chaves

O menino que eu fui aguardava com certa ansiedade as noites do sábado, em Pilar, agreste da Paraíba. Às 20 horas, em ponto, Seu Zé Ribeiro mandava o ajudante Jiló apagar umas poucas lâmpadas do Mercado Público, onde, momentos antes, as famílias locais haviam arrumado cadeiras domésticas para mais uma sessão de cinema.

O Cine Ideal, que ele faria tijolo por tijolo, cadeira por cadeira, ainda não havia sido construído. Na área do Mercado reservada ao comércio de cereais e farinha (o que ajudava na brancura da tela pregada a uma das paredes) quem não levava cadeira de casa arranjava-se com as bancas da feira mesmo.

Ambiente escuro, a sessão iniciava-se com a projeção de alguns desenhos animados, trailers de atrações futuras e com o futebol do Canal 100, hora de gritos e aplausos em todas os cinemas do País e, assim também, no espaço acanhado da pequena Pilar. Isso, apesar do enorme atraso na exibição dos jogos.

Iniciada a projeção do filme principal, a sessão era interrompida e Jiló tratava de reacender as lâmpadas do recinto enquanto Seu Zé fazia a primeira troca de rolos na velha máquina de 35 milímetros. Havia quem não gostasse da interrupção. Uma ou outra vaia, porém, podia ser punida com a expulsão do local e a devolução do dinheiro empenhado no ingresso.

Mais do que o olho de lince do saudoso cinemeiro, capaz de identificar as molecagens de Sapé e Paulo Barbosa onde quer que sentassem, era o medo de perder o seriado aquilo que fazia os mais impacientes aguentarem as três seguidas trocas de rolos do filme do dia.

Depois disso, estava armado o palco para a atração que levava a meninada do meu tempo ao cinema improvisado de Seu Zé: “Os Perigos de Nyoka”, o seriado que iríamos comentar até o capítulo seguinte, na semana que adviria.

Ah, quantas noites de sono a bela Nyoka não nos fez perder. E, para piorar, naquela fase de crescimento em que a visão de um belo par de pernas não nos trazia os pensamentos mais puros. As da moça, vistas de determinados ângulos, superavam sua bravura.

Ficar em episódio passou a definir qualquer situação de risco vivida pelos da minha geração, fosse a perspectiva da nota ruim na escola, a da arenga dos pais, ou a do temido fora da menina a quem se pretendesse namorar. Ao contrário de Nyoka, que escapava de qualquer perigo, nem sempre conseguíamos vencer todas as encrencas nas quais nos metêssemos.

Mas, sem maiores problemas, a vida fluía de domingo a domingo. Às quartas-feiras, Seu Zé apanhava, manhã cedo, o trem da Great Western para o Recife de onde voltava, à noite, com as fitas alugadas da Metro ou de outras companhias distribuidoras. Ele escondia a sete chaves os títulos novos até a exibição dos cartazes nos postes e pés de fícus da cidade, a partir das feiras livres dos sábados e ao cabo das missas matinais dos domingos, celebradas pelo Padre Gomes.

Dona Sílvia, a professora, torcia pelos filmes românticos que os mais novos detestavam. Queríamos mesmo eram os sopapos de Durango Kid, Roy Rogers, ou do Zorro. Não aquele de capa e espada, mas o de dois revólveres com seu cavalo Silver e seu companheiro, o índio Tonto. De uma coisa todos tínhamos certeza: Nyoka, a cada novo capítulo, seria a cereja do bolo. Depois dela, tudo terminava.

A série foi um sucesso mundial lançado em 1942 pela Republic Pictures, de William Witney, anos antes de vir eu ao mundo. Kay Aldridge encarnava a personagem inspirada no romance “Jungle Girl”, de Edgard Rice Burroughs. Era, portanto, uma Tarzan de saia. E que saia…

O seriado que eu vi desenrolou-se em 15 capítulos semanais com duração total próxima dos 300 minutos. Sua realização ocorreu de junho de 1942 até abril de 1952. Que saudade.

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