“Lembranças são lembranças, mesmo pobres; olha, pois, este jogo de exilado e vê se, entre as lembranças, te descobres”. Carlos Pena Filho
Nunca admiti, nem poderia, esquecer ou aniquilar as minhas doloridas lembranças de uma fase severa e brutal da minha juventude sob os coturnos militares. São cicatrizes irremovíveis.
E, a cada vez que afloram essas recordações, intensamente as vivo. Tenho a consciência de que o resgate delas não se cristalizaria enquanto memórias, mas como perversas imagens sempre recorrentes. E sei também, mesmo com o desencanto das más lembranças, que estas, quando compartilhadas, podem significar que desejei reeditar a amarga experiência de minha vida. E penso que, se alguém me guardar na memória, não terei ido embora sem deixar as marcas dos meus passos.
Já se profetizou – “quem fica na memória de alguém não morre”. E me guardará, se valer a pena.
Difícil é sempre editar a memória, quando se tem uma trajetória de fatos desabonadores. Fácil é buscar, e mergulhar no tempo, ainda que sofrido, e resgatar as lembranças honrosas que o coração nunca conseguirá arquivar.
É irônico, e lamentável, saber que as lembranças felizes raramente afloram. As más tendem a se perpetuar, como cicatrizes de fraturas expostas. São imagens de um passado desolador. Essas imagens negativas, vez por outra, são revividas, embora se escondam em ressentimentos indeléveis, porque exalam ferimentos, e dão asas à renegação de possíveis reprises como as que estamos vivendo.
Nestes tempos presentes nos aterrissam e nos assustam as dramáticas ameaças feitas por doentes que insistem na retomada dos ímpetos ditatoriais para sepultarem o Estado de Direito e a Democracia. Os que querem reinventar a maldade, os mesmos que advogam o cultivo de “ovos de serpentes” nos mostram que estamos diante de uma patologia que apregoa o sepultamento de uma sociedade atônita, e por vezes inconsciente.
Embora tenha decorrido mais de meio século a loucura, os desatinados, criminosamente e em grande número, insistem na infâmia ao conjugarem verbos que recitam o golpear instituições e pessoas como se faziam num monstruoso passado. Ditadura, prisões, torturas, mortes, exílios, cassações de direitos políticos, aniquilamento de instituições republicanas.
Não estamos mais diante de embates políticos e ideológicos entre direita e esquerda. Estamos asfixiados por atitudes que resvalam na vala comum de uma patologia do desequilíbrio mental coletiva que recorre e usa o ódio criminoso no exercício da maldade e da insanidade.
Retorna-se a reverberação de um maniqueísmo edificado à luz de graves e insanos desvios de personalidade que mitificam claros sinais de doença coletiva que os fazem abdicar de suas personalidades e consciência individual.
Com todas as ressalvas politicas e morais, parte da Nação brasileira agarrou-se com unhas e dentes para escapar do encilhamento da miséria humana. A nós, hoje, ainda não nos é permitido admitir que estamos a caminho do céu, sabemos apenas que procuramos nos distanciar do inferno. O tempo o dirá.
Aqui e agora, mesmo distantes e passadas as circunstâncias de uma tenebrosa e pretérita vida política, sabemos que o passado nunca desaparece. Guardamos sempre lembranças de eventos desoladores. A vida é feita de momentos bons e ruins. Os maus esmagam os bons. Somente a infância e a juventude, creio eu, são capazes de nos fazer reverberar antigos vestígios de felicidade. Recordações felizes alimentam a alma. as ruins machucam sempre o coração.
A miséria humana nos precipita a acreditar que no final de tudo poderemos ter a morte na alma política decretada pela desesperança e a maldade do ser humano.
Fernando Pessoa nos disse: “O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página, e a história continua, mas não o texto”.
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