A criança estudava em colégio religioso e seguia rigorosamente o regulamento imposto por seus superiores. A chegada à escola não podia exceder o horário estabelecido. O uniforme escolar tinha que estar impecável, da farda bem composta aos sapatos sempre lustrosos. Essa era uma exigência da qual a aluna não podia se eximir; caso contrário, corria o risco de baixar a sua avaliação no item polidez.
As disciplinas eram ministradas por professores católicos. A matéria Religião direcionava a criança para as preliminares da sua Primeira Comunhão, momento aguardado com enorme expectativa. Nos preparativos, entre aulas de catecismo e ensaios no confessionário, acontecia de tudo: choros, risos nervosos e até colegas sem conseguir sustar a bexiga. Vinham as reprimendas das religiosas que tentavam ajustar o comportamento das aprendizes, que manifestavam a precocidade para receber a Primeira Eucaristia.
Chegou, enfim, o dia da menina se confessar, e foi chamada a se ajoelhar na parte externa do confessionário auricular onde falaria os seus pecados ao sacerdote, sentado na parte interna do cubículo, havendo uma divisória de madeira com orifícios permitindo a audição entre o pároco e a ‘pecadora’, enquanto as demais alunas aguardavam a vez sentadas lado a lado em bancos enfileirados da capela.
Começa o rito, o padre silencioso sem nada perguntar, e a menininha aguardando o interrogatório, mesmo sem ter discernimento sobre o que estava sendo acusada. Foi então que o sacerdote num ato impulsivo deixou o confessionário, dirigiu-se à janela pigarreando, voltando em seguida para se sentar abruptamente olhando pelas aberturas da divisória, e dizer, em tom incisivo: “Fala, menina!”.
A confessante, aflita, responde indagando: “Falar o quê, Padre?”. Ele, impaciente e intolerante, ordena: “Diga o que você fez de mal”. A pobre menina, atordoada com o cheiro acre da batina, diz que não fez mal a ninguém. O padre reage de forma áspera e impiedosa. Impõe em voz alta e sem reservas que a menina saia, afaste-se do confessionário e “vá aprender a se confessar”.
O natural constrangimento ruborizou a face da criança, que tentou esconder o pranto num envoltório de cabelos trançados e mantilha, fugindo de uma cena que nela criaria ojeriza ao ato de se confessar. Ajoelhou-se num banco mais à frente das coleguinhas, com gestos de suposto cumprimento da penitência, enquanto as lágrimas lhe molhavam a farda. Entre um soluço e outro percebeu um murmúrio vindo de dois ou três bancos atrás, de um grupinho que naquele momento deveria estar cochichando sobre qual punição receberia a “coitadinha que não sabia se confessar”.
Consequência do tratamento recebido pelo padre, no correr do tempo ela passou desde muito cedo a questionar aquele ritual. Chegando à fase adulta, em conversa com um padre, seu professor de Teologia, pediu um conceito de ‘pecado’. Dele ouviu uma concepção inesperada, alentadora. Ali mesmo uma mulher se fez e adormeceu ad aeternum a criança pseudo pecadora que nela habitava. Só não livrou-se do mau cheiro de certa batina que a memória do olfato guarda até hoje.
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Uma resposta para O QUE TERIA UMA CRIANÇA A CONFESSAR? por Babyne Gouvêa
Bravo, Babyne! Excelente!
Quantas crianças não guardaram esse trauma, injusto, que foi impingido à menininha…
Muito bom!