Foi uma confusão das grandes. O fotógrafo, um dia antes de entrar em gozo de férias, trocou a foto do beijo no chão do Brasil dado por João Paulo II minutos depois de sair da aeronave, naqueles idos de 1980. Aquilo que O Globo exibiu na edição do dia seguinte era o flagrante de um beijo anterior, no Panamá, não lembro bem. Afinal, o Papa era o mesmo e chão é chão.
Ninguém perceberia a troca, não fosse por um detalhe: o homem beijou o solo brasileiro com o solidéu numa das mãos. Falo daquele chapeuzinho feito à semelhança do quipá judaico que também pode ir à cabeça de bispos e cardeais com mudança de cores. O do bispo é roxo e, o do cardeal, vermelho. Os papas o têm sempre branco, posto que isso virou um símbolo de hierarquia.
Na foto, em primeira página do Jornal, lá estava João Paulo II com o solidéu na cabeça. O fotógrafo, é claro, entrou de férias permanentes, sem direito a remuneração, pelo menos, em qualquer das publicações da família Marinho.
Quem bem me conhece há de perguntar como um sujeito habitualmente desavisado de questões e ritos católicos sabe de solidéus. Tenho a resposta na ponta da língua: pela gozação do rival, o Jornal do Brasil, na edição seguinte.
Não menos, pelos temores que a lambança trouxe à Sucursal encarregada, dias depois, da cobertura da visita papal ao Recife com equipe da qual participávamos eu e o colega natalense Aldemar Almeida. “Não podemos dar mais barrigada. Isso acarretará demissão”, dizia o chefe imediato Ronildo Maia Leite a um time de craques composto por Roberto Tavares, Inaldo Sampaio, Romildo Porto, Zé Menezes e Lula Falcão.
Naquele tempo, eu acumulava as funções de editor d’O Norte e de correspondente d’O Globo na Paraíba com a aquiescência das duas casas: uma no Rio de Janeiro e outra em João Pessoa. As dimensões dos dois jornais e das respectivas praças afastavam qualquer possibilidade da concorrência entre si, o que possibilitava essa dupla militância.
Marconi Góes, superintendente dos Diários e Emissoras Associados na Paraíba, liberou-me para a viagem ao Recife, onde fiquei uma semana. O Papa, que inicialmente descera em Brasília em 30 de junho, chegou a Pernambuco na tarde da segunda-feira, 7 de julho, dali saindo na terça, manhã cedo.
Quem não é do ramo dificilmente percebe os cuidados e a trabalheira que exige uma cobertura dessas, em escala nacional. É um planejamento de meses. Fiquei com duas atribuições ingratíssimas: observar de um posto fixo, em Boa Viagem, quase Pina, a passagem de João Paulo II para a Missa na Ilha de Joana Bezerra, ao cabo da qual ele tomaria o rumo do Palácio de Manguinhos, sede da Arquidiocese do Recife e Olinda, onde houve o pernoite por mim e pelo companheiro Aldemar também coberto.
O que diabo poderíamos fazer em ambas as situações: ver o Papa passar e vê-lo, por assim dizer, dormir? Nós já havíamos sido advertidos para não repetir clichês jornalísticos, a exemplo da anotação de placas de carros estacionados na vizinhança, a fim de contar que muitos vieram de fora. E havia deles até do Uruguai, Paraguai e Argentina. Para complicar as coisas, Pedro Luiz, o fotógrafo, momentos antes do desembarque do Chefe da Igreja, resolvera sumir na tarde de Boa Viagem. “Sequer uma foto do Papamóvel teremos”, pensei, agoniado. Em 1980, por aqui, celular era ficção digna das aventuras de Flash Gordon. Ou seja, não dava para perguntar à equipe do Aeroporto: “O homem já saiu daí?”.
Mas foi Pedro quem me salvou. Chegou resfolegante e com a história de três meninos, o mais velho com 15 anos, que haviam coberto por bicicleta o percurso desde Garanhuns para ver o Papa.
Abandonei o posto de observação, uma plataforma em cima de estacas de madeira, certíssimo de que isso não me prejudicaria e corri até o restaurante onde Pedro havia molhado o bico e os meninos, então servidos por garçons afáveis e risonhos, comiam de graça. Anotei seus nomes, perguntei dos pais, se podiam comprovar o que me contavam e eles mostraram uma folha de papel que explicava o propósito da viagem. Nela, equipes da Polícia Rodoviária atuantes no percurso apuseram seus carimbos. Pegamos eu e Pedro, no dia seguinte, mais de um quarto de página das cinco que o Jornal dedicou ao visitante.
À noite, fomos despachados para o pátio da Arquidiocese onde repórteres locais e outros provindos de partes diversas do mundo já lotavam o curral, nome que damos àqueles espaços entre cordas onde a segurança de chefes de estado segrega a Imprensa.
Faça você pernoite onde durma alguém famoso e morra de tédio. Não acontece nada. Mas, se acontecer, será notícia. Um piripaque, por menor que seja, em qualquer estadista, é manchete garantida.
Com o passar das horas o enfado aumenta e, daqui a pouco, há alguém já torcendo por uma turicazinha, uma vertigem besta, coisa que não mate, mas traga uma ambulância, pois heresia tem limites. A coisa piora quando o Exército fecha todos os bares das redondezas.
A madrugada se espicha com uma lentidão insuportável e, séculos depois, o Sol começa a sair do mar. É quando também principia a aglomeração. Multidões chegam e se comprimem.
“A bênção, João de Deus”, o hino que o Brasil fez e cantou para o Papa já então sai de todas as gargantas. Você, meu caro herege, começa a se arrepiar numa ocasião dessas. E lacrimeja quando o Papa, sorridente, vem à sacada batendo no parapeito como num bombo, ao ritmo do cântico a si consagrado.
Nos primeiros raios do 8 de julho, a emoção à flor da pele e os corações enlevados davam-nos, de repente, a impressão de um mundo muito melhor, mais puro e mais justo. Aos crentes, e aos não tão crentes assim, restava a convicção de que, se ali tudo acabasse, iríamos todos para o Céu com nossas tripas.
Deixamos o local convictos de que nunca mais nos sairiam dos ouvidos os acordes e os versos do Hino ao Papa, de tão repetido nas ruas, no rádio e na tevê. “Abençoa este povo que te ama”, dizia um deles. Continuei a escutá-los quando, no dia seguinte, fui despachado ao Centro de Convenções de Pernambuco onde o ministro Delfim Neto desembarcava para uma conferência. E os escuto, foi não foi, até os dias de hoje. Agora, sobretudo, quando essa história acaba de completar 43 anos.
Em julho de 1980, um João Paulo II ainda moço e de compleição atlética permaneceu por 13 dias no Brasil, voou milhares de quilômetros e visitou 13 cidades. Incansável, subiu e desceu morros no rumo de guetos e favelas. Abraçou Irmã Dulce, pôs crianças no colo e levou as mensagens e o compromisso social da sua Igreja aos operários de São Paulo, aos camponeses do Nordeste e aos índios do Amazonas. Foi a mais longa de suas viagens desde o Pontificado que então completava 19 meses.
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