Sem sono, nesta madrugada, ponho um vinho para gelar e trato de buscar, numa das minhas prateleiras, o belíssimo filme de Robert Mulligan “Houve uma vez um verão” (Summer of’42) rodado em 1971.
O enredo baseou-se em fatos realmente ocorridos. O roteirista Herman Raucher retratou aquilo que com ele mesmo aconteceu. Não é apenas um filme, é um poema, um cântico à juventude, com direção primorosa e trilha musical inesquecível, assinada por Michel Legrand.
Para quem disso não saiba, trata-se da descoberta do mundo e do amor por Hermie (Gary Grimes), o garoto de 15 anos que, nos idos de 1942, apaixona-se por Dorothy (Jennifer O’Neill). A moça, recém-casada, perdera o marido nos campos de guerra da Europa.
Que bela passagem aquela em que o menino Hermie é iniciado por Dorothy. O silêncio, numa das sequências sem fala mais longas da história do cinema, somente é quebrado pelo vai e vem das ondas do mar próximo e pelo arranhar da agulha que percorrera toda a extensão do disco posto na vitrola, pasme-se, com a reprodução do tema encantador. Nada de erotismo, apenas ternura, enternecimento.
Quando da primeira vez em que eu via este filme (e já o vi umas 15 vezes), notei no transcurso desta cena que na cadeira ao lado uma menina limpava as lágrimas. Estávamos no Municipal, o cinema do centro de João Pessoa abatido, inapelavelmente, pelo tempo e pelos novos costumes.
“Nunca mais soube dela”, comenta, saudoso, um Hermie de meia idade, narrador do próprio passado, antes dos créditos finais. Além da narração com voz adulta, nada mais dele aparece na bela fita. Que sacada saborosa: um homem adentrado nos anos a ressuscitar o menino que um dia foi.
A cena final é impagável. Manhã do dia seguinte, o garoto volta àquela casa de praia. O que ali encontra é uma carta na qual a moça reza para que a vida o poupe das grandes dores e, ainda, para que o futuro a ele reserve a exata compreensão daquilo que entre ambos ocorrera.
A Dorothy que, horas antes, havia levado um garoto à cama era uma jovem mulher aniquilada pela notícia da perda do marido, tão jovem quanto ela, num dos palcos da guerra. Hermie, que fora visitá-la na noite anterior, percebeu o telegrama doloroso, o cigarro a fumegar no cinzeiro, a garrafa de uísque pela metade e a agulha a arranhar o disco. A moça saía do banho já vestida quando ele repunha a música. Ambos, em lágrimas e silentes, se abraçaram. E iniciaram a dança lenta reproduzida no chão pela sombra esmaecida do casal. O que ela então via era a silhueta do bem-amado no piso da sala. Certamente, pensou em tê-lo pela última vez.
Li que, depois do lançamento de 1971, Raucher recebeu centenas de cartas de mulheres que se diziam “Dorothy”. A revelação de detalhes conhecidos apenas pelos dois permitiu-lhe a identificação da verdadeira. Ela contava, então, que havia casado outra vez, era avó e vivia feliz.
Uma curiosidade: a atriz, filha de Irene Freda (uma londrina) e do brasileiro com ascendência irlandesa Oscar Delgado O’Neill, nasceu em 1948 no Rio de Janeiro.
Mas, o que agora vem ao caso é o sumiço do meu filme. Não consigo achá-lo em canto nenhum. Mesmo depois de acordar a Patroa que está a ponto do divórcio.
Resta-me contentar com o vinho e outro bom filme: “Loucuras de Verão” (American Graffiti, do competentíssimo George Lucas). E, também, esperar que meu DVD esteja em mãos amigas. Eu o quero de volta. Quem o levou, se devolvê-lo, estará perdoado. Ou será perdoada? Vá lá saber…
QUERO DE VOLTA, por Frutuoso Chaves
LUARES, por Frutuoso Chaves
Desta vez, não teve mais dúvida. O pequeno grupo de amigos mudava mesmo de assunto a cada ingresso seu no Pente de Ouro. À boca daquela noite, o silêncio também se fizera por alguns segundos no ambiente onde punha os pés com frequência idêntica à dos camaradas. A pausa instantânea no bate-papo que ali se travava e, imediatamente, as perguntas lançadas a esmo sobre um tema qualquer denunciavam, claramente, o desvio da conversa. Vinha percebendo isso há coisa de dois meses com incômodo crescente. Falavam mesmo de si.
Ambos sozinhos, dias atrás, ao tratar da suspeita, o dono do salão desconversou. De pronto, ele intuiu que o melhor barbeiro da cidade não correria o risco de perder qualquer daqueles clientes assíduos no corte quinzenal do cabelo e no escanhoar diário das barbas. Eram, ainda por cima, os que ali sempre deixavam o dinheirinho extra do café e do licor de jenipapo.
Francisco lhe dera a entender que não seria apenas sua maestria no manuseio da tesoura nem a boa fama da navalha Solingen o que atraía a parte mais seleta da clientela. A tanto também servia a sua discrição. Ouvia e calava, desse modo, feito padre em confessionário. Acatou as razões do barbeiro, notou seu constrangimento com a situação e desistiu de por meio dele descobrir o motivo pelo qual se tornara alvo de fuxicos.
Mas pôs Marli, a empregada doméstica, em busca de informações junto às ajudantes de cozinha na casa de três amigos, justamente aqueles dos quais mais percebia a mudança de assunto a cada entrada sua no Pente de Ouro. Por certo, sua vida e seus atos estariam à mesa do café da manhã daqueles três, na conversa aberta com as patroas. Não deu outra: a causa do burburinho era a mais nova aquisição do Luares, a casa noturna conduzida com mão de ferro por Joanita, a dama daquelas noites.
Vamos fazer de conta que os ambientes e personagens aqui descritos fossem mesmo assim chamados. A cautela recomendará a invenção de nomes para pessoas e lugares sempre que o enredo condisser com a mais pura verdade.
E vamos lá. Marli ouviu das amigas, dia a dia, a história aos pedaços. Uma censura aqui, outra acolá e o enredo, pouco a pouco, foi montado. “O corpo da minha amiga Tereza ainda não esfriou no túmulo”, lastimava uma daquelas três esposas. Outra o desancava sem dó nem piedade: “Como, na idade que tem, ele não se dá ao respeito?”. E a terceira: “Não recebo mais, aqui em casa, aquele cretino. Não faço almoço nem jantar para devassos”. Os três maridos estavam intimados a cortar a relação consigo.
Acontece que o Pente de Ouro, sobretudo à noite, era uma espécie de república independente dos machos com regras e leis próprias. Ali, àquela hora, não entrava mulher nem menino. Não que para isso houvesse proibição claramente estabelecida, impedimento por escrito. Era assim e pronto.
Portanto, a rejeição crescente dos amigos jamais decorreria da ordem expressa por aquelas com as quais dividiam cama e mesa. Além disso, é preciso dizer que o Luares era o destino dali também tomado, dia sim dia não, por quase todos eles tão logo o pequeno comércio local e as residências cerravam as portas. Não queriam testemunhas para suas escapadas.
Se a alguém fosse dado o direito de rebatizar a cidade onde viviam o nome perfeito seria “Hipocrisia”. Aquelas esposas fingiam desconhecer o paradeiro habitual dos maridos, madrugada a dentro. Não rebatiam suas justificativas para o retorno aos lares, vez ou outra, ao raiar do sol. Deixavam os atrasos, sem contestação, por conta da conversa esticada, do tabuleiro de damas e do jogo de gamão dispostos por Francisco à distinta clientela. Nem se davam ao trabalho de trancar a porta da rua apenas recostada até a volta dos maridos, imprudência que não temiam.
Aquele ainda era um tempo sem furtos nem assaltos. A garrafa de leite e o queijo deixados em cada janela pelo menino da vacaria antes que o sol levantasse podiam ser por elas encontrados intatos, às 6 ou 7 da manhã. Suas almas apáticas, desiludidas e seus corpos cansados sucumbiam, então, ao sono profundo gratos pelo descanso de uma vida enfadonha, monótona, sem graça, apenas dedicada aos cuidados da casa, aos maridos e filhos. Agradecidos, também, por se livrarem do peso daqueles trastes, coisa da qual davam boa conta as meninas do Luares.
Lourdes, a moça nova, tinha ares de tristeza. Não era a mais jovem do cardápio oferecido por Joanita à clientela diversa e crescente. Já ia além dos 30 anos. Os amigos, a princípio, não entendiam a razão de sua preferência por aquela que já não possuía os encantos da juventude, ao contrário das meninas com jeito de colegiais, riso largo e carnes duras, a fina flor do Luares e, de longe, as mais concorridas.
O falatório no Pente de Ouro começou quando todos notaram que aquilo era paixão das brabas. E se intensificou quando perceberam que era coisa mais grave, era amor puro e verdadeiro, na expressão de Oscar, o amigo mais próximo e o primeiro a dele se distanciar.
Não entendiam como pôde isso ocorrer a alguém tão bem posto no mundo, um homem com tantas conquistas, com padrão de renda e bagagem cultural invejáveis. Justo com ele, um sujeito que liderava as rodas de conversa e que, de imediato, conquistava o ambiente onde pusesse os pés. ”Todo mundo tem sua fraqueza e sua vocação. A dele é para marido de mariposa”, sentenciou Getúlio ante o riso impiedoso do grupo.
Fora a voz de Lourdes a primeira coisa que o enterneceu. Fora a dor com que no palco do Luares ela cantava “Errei, sim”, a canção que Dalva de Oliveira dispôs à emoção de meio mundo. “Não é só casa e comida que prende por toda vida o coração de uma mulher”, cantou uma Dalva confessa do pecado da traição ao homem que a trocava pela orgia.
E assim cantava Lourdes, personagem de caso idêntico. Ouviu dela o quanto foi desprezada pelo ex-marido e o revide, em noite de agonia, nos braços de um representante de drogas de passagem pela farmácia da família. O fato veio a público e ela, enxotada e sem direito à guarda dos dois filhos, terminou no Luares, seu terceiro prostíbulo.
O amor começou daí, da comoção e da piedade. Ele se lembrou da finada Tereza e das muitas noites em que a trocou pela bandalheira. E atentou para a resignação humilhante, para a submissão vergonhosa daquelas donas de casa em suas buscas matutinas por leite e queijo nas janelas. Sem conter o riso, concluiu que as mulheres de seus amigos, de certo modo, eram tão indecentes quanto estes. Todos juntos não valiam uma lágrima de Lourdes, de quem de muito bom grado terminou por criar os dois filhos e os outros dois que com ela teve.
CASA DE VOVÓ, por Andréa Gouvêa
Li em algum lugar que o nosso passado é do tamanho das nossas memórias.
Isso me marcou. Sempre que posso, fecho os olhos e tento lembrar de tudo que vivi, desde que nasci até hoje. Normalmente, meu catálogo de lembranças costuma se esgotar antes de completar uma hora de “exercício” e sempre me prometo que na próxima tentativa conseguirei fazer os meus 50 anos, vividos dia após dia, caberem ao menos no tamanho de um dia inteiro.
Vinha assim de tentativa em tentativa até que, numa dessas coincidências da vida, Sofia começou a estagiar num escritório localizado na rua da casa de Vovó Naninha. Há dias procurava a casa quando levava e trazia Sofia do estágio, mas meu olhar não conseguia ultrapassar a altura dos muros que tanto cresceram nas últimas décadas. A outrora residencial rua Chica Moura está quase irreconhecível.
Eis que, num dia feliz, pude achar a casa da minha infância de portões abertos, transformada num restaurante de comida a quilo (foto). Não hesitei. Entrei, subi a pequena rampa vermelha, olhei para o lado à procura do roseiral do jardim da frente. Nada. Atravessei o terraço onde brincava com meus primos e de relance, encostada na grade dos fundos, me vi numa rede, brincando de balançar.
Saí da rede, arrastei uma almofada, a joguei no chão e virei as pernas para cima, encostando-as na parede. Era o meu jeito de “fazer a estrela” nunca finalizada na ginástica rítmica da escola. Prossegui, e me vi dentro da sala. Imagino a cena para os que estavam fora de mim: eu ali parada aos 50 anos, em pé e com a boca aberta, tendo os olhos marejados de água, fixando-me em cada detalhe do ambiente.
O ladrilho hidráulico verde, marrom e vermelho ainda toma conta de todo o piso. No lugar das mesas do restaurante, eu via o sofá, a mesa de canto com o lindo abajur em forma de busto de mulher, o móvel da TV de tubo encostado no canto lateral e, na tela, o Scooby-Doo passeando displicentemente numa caverna com o Salsicha.
Eu ali sentada na frente da TV almoçando para ir à escola, com o uniforme de vestido colorido por cima da camisa branca, estojo de madeira e livros encapados com um cheiro único. Na lancheira, suco de laranja na garrafa térmica e biscoito com goiabada. Nessa mesma sala, um boneco Pinóquio andava sozinho e no chão havia uma radiola azul de criança.
Na segunda sala, o buffet do restaurante com os clientes se servindo estavam desfocados, mas eu via perfeitamente a estante escura na parede dos fundos, um cantinho do telefone quase sempre com cadeado e a mesa oval de jantar. Do lado esquerdo, as portas dos três quartos estavam fechadas, mas mesmo assim eu entrei no quarto da frente, o principal, o mais gostoso, onde vovó nos colocava para dormir com os lençóis mais cheirosos deste mundo, não sem antes passar um paninho molhado em nossos pés e nos brindar com um copo de chocolate batido.
O segundo quarto, com sua penteadeira e um talco rosa super chique fazendo parelha com o perfume da Avon no frasco de vidro grosso em alto relevo. Do lado oposto, os basculantes de onde, segundo contavam, o já falecido vovô Plácido apreciava em segredo as serenatas oferecidas às suas filhas pelos pretendentes.
O terceiro quarto, mais escuro, com aquele armário imenso onde estavam guardadas as roupas do vovô e, pasmem, um retrato dele deitado no caixão. Por ali eu me vi passar correndo, com as pernas bambas de tanto medo, pulando o aparelho de banho de luz que deixava o ambiente todo vermelho enquanto aquecia as costas de alguém.
Mais na frente, por trás do buffet do restaurante, digo, da estante escura, vi o corredor que dá para a cozinha. O atual freezer branco dava lugar, em mim, ao móvel baixo que servia de dispensa, e o mais importante, abrigava o pote redondo lilás de biscoito que a gente tanto amava.
Bem naquele corredor, do lado direito, a porta do banheiro. E que banheiro enorme! A banheira branca continua lá, cheia de troços dentro, mas não importa porque para mim era dia de alegria: vovó havia me permitido tomar banho naquela piscina! Olhando para a pia, acho que vi um copo de água com uma dentadura dentro.
Um pouco adiante, a cozinha, a geladeira, o fogão com o bule de leite cheio de nata, o cheiro de pão assado com manteiga, o café esfriando no pires para ser tomado de biquinho, a mesa no terraço dos fundos, o cheiro de creolina na tampa da fossa, a lavanderia, o quintal, o muro da imensa casa vizinha, de Seu Cartaxo, o quartinho dos fundos e os becos laterais sem fim onde os netos tanto brincavam, hoje do tamanho de nada.
Saí do restaurante, recuperei o fôlego no carro que estava estacionado na porta da casa da frente, a de Seu Antônio, e voltei a entrar na casa de vovó para explicar ao dono o que me fez parar e permanecer estática no meio do salão do seu restaurante. Devidamente compreendida, segui, agradecida.
Isso foi na terça-feira passada, mas há uma semana meu catálogo vem sendo abastecido de lembranças em série! Elas estão brotando sem parar na minha mente! Hoje, por exemplo, lembrei que pedi a Vovó Naninha para nunca aparecer “em alma” para mim e também para dar esse mesmo recado a todos os meus conhecidos que ela porventura encontrasse do “lado de lá”.
Quanta inocência a minha, Vovó! Naquele tempo eu achava que existia isso de morar do “lado de lá” e de precisar vir ao “lado de cá” para conversar, mas hoje eu sei que quem a gente ama mora eternamente dentro do nosso coração!
TIRO-DE-PAZ, por Jesuíno Lacerda
A notícia chegou com o aracati varrendo as ruas vazias e empoeiradas de Princesa e não era nada boa… O bando de Virgulino Ferreira tomou direção da cidade e não tardava chegar.
Doeu nos ouvidos do sargento Jovelino da Silva, oficial competente formado no mais tradicional Tiro-de-Guerra paraibano, mas como se diz no estado, “na Paraíba pra ser doido precisa ter juízo” e de imediato convocou sua tropa composta por dois soldados e deu a ordem de sair correndo da cidade em direção de Tavares, município mais próximo e de maior efetivo policial.
No início do século passado, o Sertão era uma terra de duas leis: a dos cangaceiros e a dos “macacos”. Até hoje ninguém sabe qual era a pior.
O oficial deu a ordem:
– Soldado Macário e soldado José Maria, peguem as armas e vamos simbora pra Tavares, pois o bando de Lampião tá vindo pra cá e o diabo é quem fica esperando…
Não perderam tempo e sebo nas canelas. A tarde ia embora quando chegaram na cidade. Estranharam o silêncio sepulcral. Indo direto pro posto da polícia tiveram a grande e má surpresa de bater de testa com os cangaceiros do Capitão.
Distante, ele viu o Tenente Mano de Araçagi com as mãos amarradas cochichando no ouvido do Capitão. Apontando com o nariz, o militar disse pro fora-da-lei:
– Aquele ali é o oficial responsável pela guarnição de Princesa…
A revelação tinha uma ponta de veneno. O cangaceiro-mor convocou de imediato a presença do macaco fujão junto com os dois samangos que tremiam mais do que vara verde. O sargento Jovelino, de cara pétrea como uma estátua de Rodin, foi encarado por Virgulino por cerca de um minuto. Pareceu uma eternidade.
– O sargento deixou Princesa desguarnecida, não foi?
– Foi sim, senhor. Como é que ia proteger só com esses dois homens?
– Tem razão. O senhor se mostrou um covarde, mas escapou de virar herói!
A barriga do sargento roncou de alívio. O suor escorreu em segredo aos borbotões dentro da farda, enquanto esperava a sentença.
– Pois bem, tu e esses macacos vão comigo até Princesa e não vou fazer nada com vocês. Lá o senhor vai me dar comida, bebida, dinheiro e mantimentos. Depois seguiremos destino.
***
Foi a única vez que o cangaceiro fez uma concessão. E a última de Jovelino como polícia.
- @jesuinoaoliveira
Junho de 2023
OS SANTOS DE JUNHO, por Frutuoso Chaves
Saberes adquiridos nas escolas e, depois disso, nos grandes centros acadêmicos, nem sempre são garantia de respeito e prestígio. João, aquele menino nascido de Zacarias e Isabel, pouco estudou, mas sua fama tem atravessado o tempo. Pedro estudou menos ainda. Agora, perguntem quem assumiu a chefia da Igreja…
Os estudiosos do tema sustentam que foi João quem apresentou a Pedro o primo em segundo grau, o maior dos Santos, o moço saído da barriga de Maria, prima da sua mãe. Ambas deram à luz os seus rebentos em idades muito diferenciadas. Maria bem novinha e, Isabel, perto dos 60 anos. Não mais do que seis meses separavam os nascimentos dos dois primos.
O mais velho batizou o mais novo quando, adultos, se encontraram pela primeira vez. Tudo aconteceu na Judeia, à beira do Rio Jordão e no tempo em que João já era “a voz que clamava no deserto”. Com minha santa ignorância, eu quero crer que o termo tem dois sentidos: o pregador tanto podia falar a ouvidos moucos quanto aos povos nômades em seus percursos de areia e sol. A maldade de Salomé fez João perder a cabeça aos 30 anos, literalmente, cortada por Herodes, pai da moça e a pedido dela. Na hora da morte, Pedro preferiu a crucificação em posição invertida. Quis a cabeça onde o Mestre teve os pés. Que bela demonstração de devoção e respeito, não é não?
Vamos, agora, a Antonio, nome indispensável aos relatos acerca das festas, hábitos e crendices de junho. O trio poderia ser um quarteto com a inclusão de José, o Padroeiro dos Trabalhadores, não fosse este último um santo de março, embora muito reclamado para o sucesso da lavoura. “Ah, São João, São João do Carneirinho, você que é tão bonzinho, vá falar com São José. Fale lá com São José, peça pra ele me ajudar, peça pro meu milho dar vinte espigas em cada pé”, pedia Luiz Gonzaga com a voz de milhões e milhões de devotos.
Vamos ao pobre Antonio, repito. “Danei a faca no tronco da bananeira, não gostei da brincadeira, Santo Antonio me enganou” – diz outra modinha alusiva ao período, seus costumes e adivinhações. A tal faca, enfiada na noite anterior e retirada da árvore no dia do santo, deveria conter as iniciais da menina com quem o devoto casaria. A moda fala da desilusão do moço ao perceber a faca limpa, sem manchas a indicar uma letrinha sequer do nome da mulher pretendida. E o santo casamenteiro tomou a culpa.
Noutros recantos e em outras situações, a imagem de ponta-cabeça nos oratórios domésticos obrigaria o bom Antonio a atender às súplicas de mocinhas em busca do namoro e do casamento. Santo que compõe a tríade das festas de junho, ele é celebrado no dia 13, já ido. Depois, vêm João (dia 24) e Pedro (29).
Curiosamente, o mais culto desse trio é o que entrou para a tradição folclórica luso-brasileira. Pagou o preço, quem sabe, de não ter andado com Cristo, porquanto viria ao mundo no Século 13, exatamente, em 1231. Viveu até os 35 anos de idade. A canonização deu-se logo em seguida. Em 1946, foi proclamado Doutor da Igreja, distinção resultante da excelência dos seus ensinamentos.
Li que os espoliados, os pobres de Jô, os miseráveis de todos os tempos foram objetos de sua especial atenção. E que condenou a prisão dos que deviam sem ter como pagar. “Foi a malícia que criou os ricos. A natureza nos gera pobres”, escreveu.
Também se conta que Gregório IX o convidou para que fizesse pregações no Vaticano para ele próprio, o Papa, e para os Cardeais da Cúria, num período da Quaresma.
Seja como for, um dos mais aclamados Mestres da Fé Católica – aquele que os devotos conhecem imberbe e com o Menino Jesus ao colo – transformou-se num dos santos mais envoltos em superstições. Pois é, a academia e o doutorado a ninguém trazem, mesmo, o prestígio, o respeito, ou admiração da massa ignara. Duvide disso quem quiser.
DAVID TRINDADE FILHO, por José Mário Espínola
Há exatos 71 anos, no dia consagrado pela Igreja Católica a Santo Antônio, nascia David Trindade Filho, na cidade de Amargosa, no interior da Bahia. Seu pai, David Trindade, trabalhava, então, na agência local do Banco do Brasil. Quarto filho de David e Margot Trindade, Davizinho foi antecedido pelas irmãs Lia, Léa e Lae. Depois dele nasceu Dario.
Com o pai sendo transferido de agência em agência neste Nordeste, no dia 25 de janeiro de 1958 David veio morar em João Pessoa. Foi nessa data que nos conhecemos. Não foi um encontro amistoso: qual índios selvagens, recebemos David jogando pedras e caroços de mangas, abundantes na praça do Hospital Santa Isabel em frente às nossas casas. A amizade veio depois.
Dentro de uma família muito decente, pessoas finas, cultas e de bom-gosto, aos poucos nos aproximamos, a princípio como meninos. Depois, houve um interregno causado pela nossa diferença de idade. Por ser dois anos mais velho que ele, entrei na adolescência primeiro. Embora tão pequena a diferença, foi o suficiente para que eu me distanciasse.
Anos mais tarde, eu com 18 anos, David com 16, nos descobrimos. Fomos reapresentados pela música, gosto comum que nos reaproximou para o resto da vida. Desde então não nos afastamos mais. David aprendeu a tocar violão. Depois se revelou um excelente baixista, tocando contrabaixo no conjunto Diplomatas, formado por ele e mais três amigos. Vocês precisavam ouvi-lo tocar Mrs. Robinson na reinauguração do restaurante Cassino da Lagoa!
David tornou-se dono de uma cultura musical invejável. A sua coleção de LPs era imensa, rica e variada. De excelente gosto musical. Depois vieram os CDs, seguidos dos DVDs. Era a mais rica coleção de Beatles de João Pessoa.
Na nossa juventude nos divertimos à beça: serenatas, sinuca na AABB, acampamentos, viagens ao sertão. A Copa do Mundo de 1970 foi memorável na companhia dele. Depois nos casamos: ele com Fátima, em 1976; eu com Ilma, em 1977. Ele teve quatro filhos: Fernando, David Neto, Estevão e Lívia. Foi um pai extremado, fazendo de tudo o que podia e o que não podia pelos filhos.
Depois da morte do seu pai, David dedicou-se à sua mãe e a Dario, seu irmão especial. Sempre foi leal a todos da família. E aos amigos, também. Muito tarde sofreu vários reveses na vida, mas nunca foi de choramingar, nunca foi uma companhia amarga, apesar do nome de sua cidade natal. Umas pouquíssimas vezes divergimos de opinião, porém nada que justificasse uma ruptura na amizade. Pois nos conhecíamos tanto, sabíamos tanto um do outro, que relevávamos o que nos incomodasse.
David sempre foi uma pessoa prática, além de muito inteligente. Dominava todos os avanços da tecnologia, principalmente o computador. Era mestre na gravação de CDs e DVDs. A sua cultura musical não tinha limites.
Nas últimas duas décadas de vida, David revelou-se um exímio fotógrafo. Como sempre teve finesse, com o seu olhar clínico David passou a “escrever” poemas com a câmera.
***
Depois de sobreviver a dois infartos do miocárdio, eis que foi acometido de uma trombose generalizada, levando embora justo o que ele tinha de melhor: a sua mente. Até que o destino achou que havia chegado a sua hora. Mas antes de partir ele realizou mais uma obra: revelou-nos que é possível encontrar a excelência dentro do SUS.
Ao longo da sua agonia, visitei-o quase diariamente no leito 5 daquela Unidade intensiva. Foi quando eu descobri que é possível se fazer uma medicina de excelência no Serviço Público. David me mostrou como trabalha uma equipe unida e competente, apesar das dificuldades enfrentadas pelas limitações do SUS.
Recebeu toda a assistência, possível e impossível. Nada lhe faltou: oxigênio, exames laboratoriais, medicamentos caríssimos, exames de elevada complexidade, assim como todos os tipos de antibióticos que lhe foram ministrados, na tentativa de salvá-lo.
Recebeu assistência médica, de enfermagem, odontológica, fisioterápica, psicológica, laboratorial. Seu leito era tratado com a máxima higiene possível. As equipes se sucediam, todas com o mesmo grau de competência, desde os médicos, bem representados pela Dra. Melissa, que nos prestava toda a atenção, dando todas as explicações, e pelo Dr. Fagner, que, como os seus colegas, nunca mediu esforços na luta contra a morte dos pacientes sob sua responsabilidade.
Assim como as equipes de enfermagem, muito bem representadas pela doce Jôzi e a elegante Chalismar. Não ficam por baixo as técnicas e os técnicos de enfermagem, todos muito competentes. E a equipe de limpeza, muito rigorosa com o asseio necessário para uma UTI. Pude observar que todos agem dessa forma com todos os pacientes que estiverem sob os seus cuidados, sem fazer distinção.
Durante o período, tivemos a oportunidade de observar o respeito e a responsabilidade dos porteiros e seguranças, todos muito bem educados e cordiais. Enfim, perdi um grande amigo. Mas ele deu a oportunidade de me apresentar um serviço de referência, dentro do serviço público: a UTI 2 do Hospital do Trauma Senador Humberto Lucena, de João Pessoa.
AVÓS SÃO FEITAS DE AÇÚCAR, por Frutuoso Chaves
Duas avós num mesmo trecho de calçada. Quantos meninos tiveram essa boa sorte? Quantos desfrutaram do carinho simultâneo daquelas que embalaram com o mesmo desvelo as próprias crias e os rebentos que estas trouxeram ao mundo?
Tive tal ventura ao alcance de poucos passos. Cinco casas interpunham-se entre a da Vó Amélia, mãe da minha mãe, e a da Vó Sole, como resumíamos a doce Soledade, de quem meu pai nasceu. De uma, os melhores suspiros da minha vida, crocantes, com cheiro e gosto de limão. E com um mel que escorria do miolo ao derreterem na boca. Da outra, os pirulitos de maracujá tão deliciosos que a mera lembrança aplaca os males da idade que hoje tenho. Retirar da memória aquelas balas parecidas com guarda-chuvas fechados já suaviza meus contratempos.
As avós, sem dúvida, são feitas de açúcar. Pelo menos, a que tivemos eu, meus irmãos e primos a poucos metros uma da outra na Juripiranga da nossa infância. Eu recebia cada cota de doces e afagos com a impressão de ser o neto favorito, de merecer a preferência daqueles corações grandes o suficiente, todavia, para nosso indistinto abrigo. Percebi, com o tempo, que aquelas duas nos tomavam nos braços de igual modo enquanto alimentávamos, cada um por si, a ilusão da exclusividade.
Os pirulitos da Dona Sole tinham clientela muito mais vasta. Não serviam apenas para adoçar a existência dos filhos e filhas daqueles e daquelas que dera à luz. Também ganhavam as ruas em tábuas com mais de cem furinhos para a venda por meninotes escolhidos a dedo. Ora elevados acima da cabeça por cabos tão compridos quando os das vassouras, ora conduzidos à altura do umbigo por força de uma alça atada ao pescoço dos vendedores, esses tabuleiros percorriam a cidade com paradas em pátios de escola, na porta do cineminha e em volta do mercado público. Retornavam quase sempre vazios à cozinha de onde haviam saído com um pirulito em cada furo.
Mais do que os ganhos resultantes dessas vendas, Vó Sole se alegrava com o pagamento àqueles meninos. Sabia que o dinheirinho por eles então obtido ajudava no sustento das casas pobres. E resistia aos apelos do marido, dono de padaria, e dos seis filhos (duas mulheres e quatro homens) para interromper a trabalheira. “Paro não. Não sou de ficar sem fazer nada”. Quantas vezes não ouvimos dela essa resposta.
Foi-se muito cedo, com pouco mais de 60 anos de idade. E arrebatou o meu avô Frutuoso (de quem herdei o nome), quatro anos depois, no dia em que ele se casaria pela segunda vez. Exatamente assim: a noiva se pôs em vão no altar à espera de um noivo subtraído pela morte súbita. Teria minha avó paterna, então, quem sabe, esse único defeito. O que era seu era seu. Ela e o marido compartilham o mesmo túmulo na vizinha Camutanga, Pernambuco, de onde vieram ao mundo.
Viúva desde a juventude, Vó Amélia teve em tempo de vida o que não teve em bens materiais. Deixou-nos perto dos cem anos. Aos herdeiros restaram a saudade e a casa onde morava, produto do esforço do nosso avô Noel. Tratávamos o casal por Papai Noel e Mamãe Amélia. Surpreendi-me ao notar, ainda muito novo, que os presentes natalinos nada tinham a ver com a magrez e a calvície desse avô de tão pouca convivência. Deixou-nos quando a maior parte dos netos mal havia largado a fralda.
Dona Amélia não comercializava os suspiros apenas feitos para os de casa e as crianças vizinhas que, igualmente, a tomavam por avó sem que disso gostássemos. Nada é tão ciumento quanto coração de menino. Ela também não vendia as peneiras, os chapéus e as esteiras de palha, o artesanato que a entretinha e terminava nas casas de um filho e três filhas durante visitas feitas, ou recebidas. Viveu sozinha até perto dos 80 anos, quando passou a ter a companhia da mais velha.
Fui o mais presente dos seus netos. Fiz-lhe visitas quinzenais por anos a fio ao cabo de viagens desde João Pessoa até Juripiranga. E só não aborreci uma de suas vizinhas com a frequência dos meus telefonemas porque esta última também dela cuidava como se filha fosse.
Vó Amélia cometia desses milagres: conquistava o coração de quem dela se aproximasse. Não foi diferente com a moça advinda do Rio Grande do Norte com quem me casei para dar-lhe três bisnetos. Conheceu dois deles, embora precariamente. Acamada e já quase sem visão, recorreu ao tato: passou as mãos leves nos rostos das duas crianças, percorreu com os dedos cada testa, cada par de olhos e cada nariz para concluir: “Eles são lindos”.
Eu e Miriam tentamos trazê-la para nossa companhia quando ainda morava sozinha. Não conseguimos. Mas logo nos tranquilizamos ao vê-la acompanhada da primeira filha, na Juripiranga de onde pouco saiu para viagens sempre curtas a João Pessoa, ou Recife, lugares por onde a família se espalhou.
“Que cheiro bom tem essa casa”, minha mulher comentou quando pela primeira vez ali pôs os pés. “Tem o cheiro da dona. Cheiro de suspiro no forno”, respondi. E todos rimos. Eu com o coração de criança, Miriam com seu encantamento e ela, minha avó materna, com seus olhos de um azul profundo e seu jeito bom de fada.
Quanta falta Dona Sole e Dona Amélia fazem aos avós que nos tornamos. Conto hoje ao meu neto, que tem medo de alma, o que certa vez ouvi da mãe da minha mãe: “Quando alguém que nos ama morre, vira nosso anjo da guarda”. Que assim seja.
TALENTO MAIOR, por Babyne Gouvêa
Ao ver a foto acima me senti estimulada a manifestar gratidão a quem sempre me incentivou.
Para alguém que se atreve a escrever não há nada melhor do que ter um escritor de valor a lhe inspirar. Vale a pena mantê-lo por perto quando os seus exemplos de sabedoria podem lhe enriquecer.
Na infância, tinha como colega de classe aquela que se tornaria uma das minhas musas das letras, e amiga também: Marta Pessoa. Era nosso costume frequentar a biblioteca do Colégio Lourdinas, onde estudávamos e, ali, trocávamos ideias sobre leituras.
Durante as aulas, ela costumava sentar em carteiras da primeira fileira. Disciplinada para melhor absorver as explicações dos professores, fazia intervenções inteligentes no momento oportuno.
Desde cedo, na fase mais elementar do primário, ela já se destacava nos estudos. O nível de suas redações era excepcional. Sempre lidas em voz alta, para estímulo da turma, ficávamos boquiabertas questionando como era possível uma criança escrever com tanta criatividade.
Crescemos, atingimos a fase de decidirmos qual profissão seguir. Fui em direção ao curso bem próximo às bibliotecas – Biblioteconomia -, e a minha amiga trilhou as ciências exatas – Matemática. Tornei-me bibliotecária e ela professora de informática. Ambas desenvolvendo as suas funções na UFPB.
A sua sombra de boa escritora sempre me perseguiu. Desenvolta, inteligente e irrequieta, nunca se acomodou intelectualmente. Correu mundos; conheceu lugares e contatos importantes para o seu enriquecimento pessoal e profissional.
Continuou produzindo escritos, publicados em vários ambientes. Nas redes sociais tem inúmeros seguidores, admiradores de sua escrita correta e bem-humorada. Por ser eclética, é referenciada por vários autores e, comumente, convocada para palestras sobre envelhecimento e tecnologia da informação.
Partiu para a publicação de livros, dentre os quais se destaca: “É Tempo de Cuidar: eles envelheceram, e agora?”, onde aborda questões que afligem cuidadores familiares, filhos, amigos ou responsáveis, diante da fragilidade da velhice.
Marta Pessoa foi além. Escreveu um outro livro, no qual reuniu as suas crônicas: “Zignau: Doze Mulheres Implacáveis e Um Homem Em Pânico”.
Com essa obra à disposição dos leitores na Livraria Travessa, de São Paulo, teve a honra de trocar autógrafos com a célebre escritora espanhola Rosa Montero, durante encontro entre as damas das letras.
“Zignau…” contempla histórias bem contadas e com forte dose de humor. A originalidade e clareza da escrita, além da riqueza do imaginário da autora, incentivam uma leitura ininterrupta, sem intervalos. São narrações saborosas e divertidas.
Sinto orgulho em tentar descrever o mínimo da escritora paraibana Marta Pessoa. Ela é muito maior, sendo necessário um conteúdo de várias laudas para alcançar a sua grandeza intelectual.