LUARES, por Frutuoso Chaves

Imagem ilustrativa/Google

Desta vez, não teve mais dúvida. O pequeno grupo de amigos mudava mesmo de assunto a cada ingresso seu no Pente de Ouro. À boca daquela noite, o silêncio também se fizera por alguns segundos no ambiente onde punha os pés com frequência idêntica à dos camaradas. A pausa instantânea no bate-papo que ali se travava e, imediatamente, as perguntas lançadas a esmo sobre um tema qualquer denunciavam, claramente, o desvio da conversa. Vinha percebendo isso há coisa de dois meses com incômodo crescente. Falavam mesmo de si.

Ambos sozinhos, dias atrás, ao tratar da suspeita, o dono do salão desconversou. De pronto, ele intuiu que o melhor barbeiro da cidade não correria o risco de perder qualquer daqueles clientes assíduos no corte quinzenal do cabelo e no escanhoar diário das barbas. Eram, ainda por cima, os que ali sempre deixavam o dinheirinho extra do café e do licor de jenipapo.

Francisco lhe dera a entender que não seria apenas sua maestria no manuseio da tesoura nem a boa fama da navalha Solingen o que atraía a parte mais seleta da clientela. A tanto também servia a sua discrição. Ouvia e calava, desse modo, feito padre em confessionário. Acatou as razões do barbeiro, notou seu constrangimento com a situação e desistiu de por meio dele descobrir o motivo pelo qual se tornara alvo de fuxicos.

Mas pôs Marli, a empregada doméstica, em busca de informações junto às ajudantes de cozinha na casa de três amigos, justamente aqueles dos quais mais percebia a mudança de assunto a cada entrada sua no Pente de Ouro. Por certo, sua vida e seus atos estariam à mesa do café da manhã daqueles três, na conversa aberta com as patroas. Não deu outra: a causa do burburinho era a mais nova aquisição do Luares, a casa noturna conduzida com mão de ferro por Joanita, a dama daquelas noites.

Vamos fazer de conta que os ambientes e personagens aqui descritos fossem mesmo assim chamados. A cautela recomendará a invenção de nomes para pessoas e lugares sempre que o enredo condisser com a mais pura verdade.

E vamos lá. Marli ouviu das amigas, dia a dia, a história aos pedaços. Uma censura aqui, outra acolá e o enredo, pouco a pouco, foi montado. “O corpo da minha amiga Tereza ainda não esfriou no túmulo”, lastimava uma daquelas três esposas. Outra o desancava sem dó nem piedade: “Como, na idade que tem, ele não se dá ao respeito?”. E a terceira: “Não recebo mais, aqui em casa, aquele cretino. Não faço almoço nem jantar para devassos”. Os três maridos estavam intimados a cortar a relação consigo.

Acontece que o Pente de Ouro, sobretudo à noite, era uma espécie de república independente dos machos com regras e leis próprias. Ali, àquela hora, não entrava mulher nem menino. Não que para isso houvesse proibição claramente estabelecida, impedimento por escrito. Era assim e pronto.

Portanto, a rejeição crescente dos amigos jamais decorreria da ordem expressa por aquelas com as quais dividiam cama e mesa. Além disso, é preciso dizer que o Luares era o destino dali também tomado, dia sim dia não, por quase todos eles tão logo o pequeno comércio local e as residências cerravam as portas. Não queriam testemunhas para suas escapadas.

Se a alguém fosse dado o direito de rebatizar a cidade onde viviam o nome perfeito seria “Hipocrisia”. Aquelas esposas fingiam desconhecer o paradeiro habitual dos maridos, madrugada a dentro. Não rebatiam suas justificativas para o retorno aos lares, vez ou outra, ao raiar do sol. Deixavam os atrasos, sem contestação, por conta da conversa esticada, do tabuleiro de damas e do jogo de gamão dispostos por Francisco à distinta clientela. Nem se davam ao trabalho de trancar a porta da rua apenas recostada até a volta dos maridos, imprudência que não temiam.

Aquele ainda era um tempo sem furtos nem assaltos. A garrafa de leite e o queijo deixados em cada janela pelo menino da vacaria antes que o sol levantasse podiam ser por elas encontrados intatos, às 6 ou 7 da manhã. Suas almas apáticas, desiludidas e seus corpos cansados sucumbiam, então, ao sono profundo gratos pelo descanso de uma vida enfadonha, monótona, sem graça, apenas dedicada aos cuidados da casa, aos maridos e filhos. Agradecidos, também, por se livrarem do peso daqueles trastes, coisa da qual davam boa conta as meninas do Luares.

Lourdes, a moça nova, tinha ares de tristeza. Não era a mais jovem do cardápio oferecido por Joanita à clientela diversa e crescente. Já ia além dos 30 anos. Os amigos, a princípio, não entendiam a razão de sua preferência por aquela que já não possuía os encantos da juventude, ao contrário das meninas com jeito de colegiais, riso largo e carnes duras, a fina flor do Luares e, de longe, as mais concorridas.

O falatório no Pente de Ouro começou quando todos notaram que aquilo era paixão das brabas. E se intensificou quando perceberam que era coisa mais grave, era amor puro e verdadeiro, na expressão de Oscar, o amigo mais próximo e o primeiro a dele se distanciar.

Não entendiam como pôde isso ocorrer a alguém tão bem posto no mundo, um homem com tantas conquistas, com padrão de renda e bagagem cultural invejáveis. Justo com ele, um sujeito que liderava as rodas de conversa e que, de imediato, conquistava o ambiente onde pusesse os pés. ”Todo mundo tem sua fraqueza e sua vocação. A dele é para marido de mariposa”, sentenciou Getúlio ante o riso impiedoso do grupo.

Fora a voz de Lourdes a primeira coisa que o enterneceu. Fora a dor com que no palco do Luares ela cantava “Errei, sim”, a canção que Dalva de Oliveira dispôs à emoção de meio mundo. “Não é só casa e comida que prende por toda vida o coração de uma mulher”, cantou uma Dalva confessa do pecado da traição ao homem que a trocava pela orgia.

E assim cantava Lourdes, personagem de caso idêntico. Ouviu dela o quanto foi desprezada pelo ex-marido e o revide, em noite de agonia, nos braços de um representante de drogas de passagem pela farmácia da família. O fato veio a público e ela, enxotada e sem direito à guarda dos dois filhos, terminou no Luares, seu terceiro prostíbulo.

O amor começou daí, da comoção e da piedade. Ele se lembrou da finada Tereza e das muitas noites em que a trocou pela bandalheira. E atentou para a resignação humilhante, para a submissão vergonhosa daquelas donas de casa em suas buscas matutinas por leite e queijo nas janelas. Sem conter o riso, concluiu que as mulheres de seus amigos, de certo modo, eram tão indecentes quanto estes. Todos juntos não valiam uma lágrima de Lourdes, de quem de muito bom grado terminou por criar os dois filhos e os outros dois que com ela teve.

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