O OSSO NOSSO DE CADA DIA, por José Mário Espínola

Capa do jornal Extra de 29 de setembro de 2021

A cena é dantesca. Parece a pintura Juízo Final, de Hyeronimus Bosch. Ou O Triunfo da Morte, de Pieter Brügel. Ambos pintores flamengos, eles se caracterizaram por registrar o que há de pior na espécie humana, realidade ou fantasia. Mas não se trata de arte pictórica e sim de realidade tenebrosa. O que eu li em reportagem da Folha de S. Paulo é que um açougue de Santa Catarina estava praticando a desumana cobrança por ossos e restos de carnes.

A reportagem estampava a placa do açougue, que causou revolta geral: “Osso R$ 4,00 kg. Osso é vendido não é dado.” E é ilustrada por cena tenebrosa de um caminhão cheio de ossos. E outra mostrando disputas por esse rebotalho da carne, que alguns ainda podem comprar nos açougues, para comer. Privilégio de um número cada dia menor de brasileiros.

Chocado, enviei para um grupo de amigos enxadristas, dizendo que aquelas cenas chocantes não foram registradas no Haiti, na Venezuela, em Cuba ou Somália. Muito menos nas Ilhas Virgens. Que elas são cenas de horror do novo cotidiano no Brasil. Grande Mestre respondeu candidamente: “É o resultado do: ‘Fique em casa, a economia a gente vê depois’”.

Enviei para Querido Primo, que respondeu, indignado: “Economia a gente vê depois. O ‘depois’ chegou!”
Referia-se ao fato de governadores e autoridades estaduais e municipais de saúde terem feito logo no início da pandemia opção pelo distanciamento social. Sabemos que eles agiram assim por recomendação das entidades que se orientaram pela ciência e não pela ignorância.

Querido Primo anexou à sua resposta dezenas de reportagens da imprensa européia, que alertam para o fato de que o mundo entrou em recessão global. E arrematou:

– Isso aí (referindo-se às reportagens anexas) não é no Brasil. É no 1º mundo!

Pensei: eu acho que é capaz de eles terem razão… Será? Será que o que está acontecendo no Brasil é mesmo consequência do fenômeno global? Afinal de contas, o atual governo recebeu o Brasil com o dólar na casa dos 4 reais; hoje, anda por volta dos  R$ 5,50 ou mais, na cotação oficial. Êpa! Isso significa forte desvalorização do real.

A gasolina, que girava em torno de 3,80, já está batendo nos 7 reais. A inflação, que estava em torno dos 4%, já atinge os dois dígitos (10,25% ao ano!). A taxa Selic, que regula contratos, empréstimos bancários e cartões de crédito, havia caído para o recorde de 2% ao ano. Foi elevada pelo Copom e já está em 6,25%, com viés de aumento. Isso frustra financiamentos e investimentos, barrando qualquer tentativa de crescimento econômico.

Em janeiro de 2019, brasileiros sobrevivendo abaixo da linha de pobreza somavam 6,5% da população, 13 milhões de pessoas. Ao longo desses dois anos e 10 meses, os mais famintos já são 9,1%.  Significa 19 milhões de pessoas em condições sub-humanas, sem acesso algum ao mínimo de cidadania, com renda mensal de até 140 reais, o que daria pra comprar um bujão de gás e 3 quilos de osso.

Segundo o IBGE, a taxa de desemprego era 11,9% em janeiro de 2019. Agora está em 14,1%. São milhões de pessoas, jovens tentando entrar no mercado de trabalho em busca de algum futuro. Ou quarentões vendo se esvair uma nova chance de trabalho que lhes permita manter uma família. Os que podem correm para o mercado informal. Os que não podem correm para as ruas, desesperados, para mendigar.

Consequência de tudo isso, os alimentos, com destaque para a carne, tornaram-se inacessíveis a uma parcela muito significativa e crescente da população, sobrando-lhes apenas o osso. Nos açougues e supermercados, as filas estão mais curtas e ligeiras, pois diminui rapidamente o número de pessoas que ainda estão podendo comprar comida.

Por isso as ruas estão a cada dia mais cheias de zumbis vagabundeando, ora perambulando pela cidade, ora cercando os automóveis nos sinais dos cruzamentos das nossas principais avenidas, lavando para-brisas ou simplesmente rogando por qualquer modinha.

Mães esquálidas portando filhos famintos nos braços. Crianças e jovens sujos e mal vestidos. Mocinhas com as roupas manchadas pela menstruação, pois tiveram o acesso a absorventes higiênicos negado pelo presidente da República. O mesmo que comprou apoio no Congresso por 6 bilhões de reais.

Só faltavam nas esquinas os palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados, dançando dormindo de olhos abertos à sombra da alegoria do faraó embalsamado no Planalto, na bem retratada canção de João Bosco e Aldir Blanc. Mas eles já avisaram que estão chegando.

Por tudo isso, então, eu passo a achar que Grande Mestre e Querido Primo não têm razão, carecem de argumentação. O Brasil é que se deteriorou nitidamente ao longo de uma administração (?) desastrosa desde que assumiu (?) o governo federal. Mesmo detentor de maioria explícita adquirida no Congresso, para fazer o que quiser, o governo não tem competência nem para elaborar um projeto de lei decente que consiga aprovar.

O presidente nunca assumiu a administração do país, vivendo num eterno delírio de reeleger-se. Numa longa “viagem” de fazer inveja aos hippies dos anos 1960, sem pôr os pés no chão. A grande dúvida é: qual será o país que ele entregará no dia 1º de janeiro de 2023? O Brasil da carne ou o Brasil do osso?

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  • Fontes: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Banco Central e Receita Federal

CHARMOSO TREMA, por Babyne Gouvêa

A nossa Língua Portuguesa é uma riqueza, bela e motivo de orgulho. Tem it, como se dizia outrora. O vocabulário extenso esbanja diversidade de escolhas para a construção da escrita.

Para frustração de alguns patrícios, foi retirada a cereja do bolo do nosso vernáculo, no último acordo ortográfico: o trema. Puro charme.

Palavras que normalmente eram grafadas com o trema, tais como lingüiça, tranqüilo, lingüística, bilíngüe, freqüentar, cinqüenta e outras, não possuem mais o sinal gráfico.

“Este fato não tem a ver com grafia e sim com fonética!” Foi a justificativa apresentada. A supressão do trema na palavra ‘lingüiça’ compromete o seu sabor. Ela seria bem mais saborosa se mastigada e digerida com o güi. Experimentem.

“Abaixo o trema, viva a independência do ditongo!” Há controvérsia. Vejam que um atleta ‘cinqüentão’ terá o físico melhor apreciado se apresentar o qüen. Certamente os suspiros despertados serão mais intensos.

“Há ditongos na língua que não precisam do trema, como em tranqüilo!” Essa premissa não é consensual. Percebam que num ambiente conturbado um indivíduo poderá perder a serenidade caso não sinta a presença do qüi em seu temperamento comumente ‘tranqüilo’.

“O modo de falar não tem que concordar com o de escrever, tornando o trema desnecessário!” Pura falácia. Tentem ‘seqüenciar’ aulas de oratória. O qüen será decisivo para garantir uma compensatória ‘eloqüência’.

Um tanto ‘loqüaz’ a autora ‘argüiu’ tentando sensibilizar o leitor quanto à retirada do charmoso sinal gráfico da Última Flor do Lácio. Cabe à ‘lingüística’ aceitar a divergente decisão com ‘eqüidade’.

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  • (N.A. Os apóstrofos destacam palavras sem o trema, atualmente. A Reforma Ortográfica, concluída em 2009, entrou em vigor em janeiro de 2016, resultante de acordo entre os países de Língua Portuguesa)