UM CAMELO NA PARAÍBA, por José Mário Espínola

Segundo o autor, “as fotografias mostram que uma obra se sucede à seguinte sem que haja intervalo lógico de acessibilidade” (Fotos: Ricardo Espínola)

Vocês sabem qual é a diferença de um camelo para um dromedário? Ambos são da família dos camelídeos. Porém, enquanto o camelo possui duas corcovas o dromedário ostenta apenas uma.

O camelo é habitante exclusivo da Ásia. Já o dromedário é encontrado na Índia, África e, predominantemente, no Oriente Médio. A partir deste trecho passo a generalizar o nome do animal.

As imagens mais associadas aos camelos são as longas caravanas atravessando o deserto do Saara. Nas excursões para Israel uma das atrações é o passeio de camelo, na realidade um dromedário.

Também é associada aos camelos a visita que os Três Reis Magos fizeram a Jesus Cristo recém nascido, segundo a tradição cristã.

Milhares de filmes já foram realizados incluindo camelos. Um dos que mais rapidamente me vêm à lembrança é “Lawrence da Arábia”, de 1962 e dirigido por David Lean e estrelado por Peter O’Toole, Anthony Queen, Omar Shariff e Alec Guiness. Espetacular!

No Brasil só é possível encontrar camelos espalhados por zoológicos. Aqui na Paraíba não existe nenhum. Ou será que existe? Com certeza, não.

Mas é possível encontrar no litoral norte de João Pessoa sobre na BR-230, Rodovia Antônio Mariz, à altura da praia de Intermares e do acesso à praia do Jacaré, o que parece ser uma inusitada homenagem a esse animal tão nobre.

Nesse trecho existe uma curiosidade de engenharia. Trata-se de uma sequência de dois viadutos, unidos por um segmento da rodovia triplicada, tão próximos entre si que só é accessível por um dos dois viadutos, não sendo permitido que se entre ou saia da rodovia para as ruas laterais senão através de uma das duas estruturas. Ao entrar num se é obrigado a subir no outro.

A imagem que se tem, de quem vem ou para quem vai, e mais ainda para quem está a distância, é das duas corcovas de um imenso camelo de concreto.

Do ponto de vista de circulação de trânsito, de acessibilidade às ruas em torno, tem-se a nítida impressão de que um dos dois viadutos é desnecessário, pois não traz nenhum benefício extra para quem mora ou quer acessar o bairro.

No entanto, quatro quilômetros antes de lá chegar, à altura da Projecta, há um trecho da rodovia que clama por um viaduto e não teve a sorte de receber tão importante obra. Seria sobre a rotatória existente, muito importante acesso ao bairro do Bessa, e para quem precisa retornar em direção ao interior da Paraíba e às cidades de Recife e Natal. Na direção de Cabedelo, é o local de maior dificuldade de trânsito. Porém décadas já se passaram, e não existe o menor sinal da construção de um viaduto nesse local.

Assim, para quem transita pela Rodovia Antônio Mariz, no litoral norte da nossa capital, um daqueles dois viadutos geminados apresenta-se como totalmente desnecessário, podendo configurar prejuízo tanto a usuários quanto aos cofres públicos.

Mas tal desnecessidade não pode ser verificada ou investigada pelo Ibama ou entidades protetoras de animais e vegetais. Com a palavra, o diligente e vigilante Tribunal de Contas da União (TCU).

ASSALTO, por Ana Lia Almeida

Imagem meramente ilustrativa copiada do jornal Extra

Todo mundo passando carteira e celular, quem reclamar vai na próxima parada direto pro céu ou pro inferno, conforme o merecimento.

Bora logo, minha tia – era o assaltante armado apressando Rita, que vinha sentada em um daqueles bancos altos, logo após a roleta. Enquanto isso, o comparsa recolhia o apurado dentro de uma sacola preta, começando pela gaveta do cobrador, ordenando que todo mundo se calasse. Mas Rita, ao invés de entregar o seu pouco dinheiro e o seu celular muito velho, teve um ataque de riso, o que já tinha acontecido outras vezes em que ela entrara em pânico.

Como é? A senhora tá achando graça de quê? O rapaz não estava mesmo para brincadeiras e, com o revolver na mão, mandou Rita se levantar para torná-la refém, empurrando-a com os braços para trás até a metade do busú, a arma apontada para a lateral de seu rosto. Em meio a choros e gritos assustados, um homem forte e alto se recusava a entregar suas coisas, levando um soco no nariz e ficando desacordado enquanto o da sacola retirava-lhe o conteúdo dos bolsos.

A essa altura, Rita já havia conseguido dominar suas risadas nervosas, lembrando dos exercícios de respiração que a patroa fazia quando se dizia estressada, isto é, todos os dias. Especialmente quando se punha a reclamar do pó em cima de algum móvel, da comida salgada ou da pia do banheiro molhada depois que ela própria escovava os dentes. Respiiiiira e solta; respiiiiira e solta, era o celular de dona Laura numa tal de meditação guiada que Rita tentava recapitular para se acalmar naquela situação de agora.

Acabou a risadagem, tia? Agradeça a Deus eu não ter estourado seus miolos, vá me passando suas coisas agora, vá! O rapaz afrouxava o nó que havia dado nos braços de Rita, olhando atento para todas as direções, vigiando os passageiros enquanto o outro terminava o serviço, já quase alcançando os primeiros assentos, perto do motorista. Foi quando Rita virou-se, devagar, para entregar-lhe os pertences, e reconheceu o menino. Era Valdinho, filho da sua comadre Jaciara. A máscara preta de tecido escondia os lábios grossos que Rita conhecia desde pequeno, mas os olhos pretinhos e ligeiramente puxados aos potiguaras da mãe dele eram inconfundíveis.

Rita ficou ali parada, olhando para Valdinho pelos breves instantes que o coração prolonga noutra dimensão de tempo. O tempo de uma vida. A vida da comadre Jaciara grávida, pensando em tirar, e recebendo de Rita o apoio para criar aquele menino sem pai. O batizado dele, aos três anos, comemorado na laje da madrinha com uma feijoada. O garoto crescendo, gostando de estudar na mesma escola da menina de Rita, os dois muito elogiados pelos professores. Clarinha se afastando, dizendo que o menino estava com amizade errada. Jaciara se fazendo de inocente, se amostrando com roupa de butique no dia das mães. Rita na delegacia mais a comadre, jurando de pé junto que o menino era bom e não tinha nada a ver com o fumo que acharam com os colegas dele; deixando o salário do mês para inteirar a fiança. O afilhado todo arrumado voltando para a Igreja com a mãe. E agora aquele bandido diante das suas mãos estendidas com um celular e vinte reais.

Valdinho, envergonhado, afastou da madrinha seus olhos e a mira de sua arma. Deu-lhe as costas, poupando-a do roubo. O outro menino já tinha finalizado a operação, e os dois desceram do ônibus numa carreira desembestada.

NOMES INCITÁVEIS, por Babyne Gouvêa

Nomes esquisitos que foram registrados no Brasil

Imagem do portaldenoticias.net

Um pai foi ao cartório registrar filho nascido há pouco. Ansioso, não via a hora de ter nas mãos o primeiro documento daquele que lhe herdaria o sobrenome. Chegando a vez no atendimento, chamado para  informar os dados necessários ao registro e declarar o nome escolhido para o rebento, prontamente respondeu: “Tiago”. Mas, antes que o funcionário pressionasse a primeira tecla, …

“Thy-ha-ggo”. Assim mesmo: “Tê-agá-a-ipsilone-agá-a-gê-gê-o”. Perplexo, o escrivão ousou recomendar: “Registre como se pronuncia, cidadão, pois o exagero de letras pode vir a complicar a vida do seu filho”. Não teve jeito. O pai fez aquela cara de quem diz “o filho é meu, boto o nome que eu quiser, da maneira que achar melhor e pronto”. O homem do cartório percebeu a intenção, a reação e se deu por vencido.

Mas não de todo. Salvou-o, para futuros embates, a curiosidade de outro cidadão que observara atentamente a cena e se aproximou para oferecer um serviço até então inusitado. Pediu e propôs, a um só tempo, pesquisar nos arquivos do estabelecimento nomes curiosos, complicados, engraçados e outros que beiram o surreal.

Pesquisa consentida e acertada, o pesquisador iniciou o estudo e à medida que se deparava com algumas bizarrices aumentava sua convicção da necessidade uma política linguística antroponímica ou mesmo uma legislação capaz  de barrar mais explicitamente estrangeirices e outras esquisitices na escolha dos nomes de brasileiros recém-nascidos.

Ele observou, por exemplo, que a maior parte dos nomes procura homenagear alguém da família, personagem histórico, religioso ou celebridade do momento. Noutros, surpreendia a multiplicidade das letras k, w e y.

Outro dado interessante que o pesquisador descobriu a partir do endereço anotado nas certidões: a excentricidade era mais comum entre pessoas de camada social menos favorecida. Mais uma surpresa. Até então, acreditava que toda aquela ‘criatividade’ provinha de famílias mais abastadas, mais aculturadas. 

Na continuidade do trabalho, surgiram também casos de duplo sentido como Maria Privada de Jesus e Pacífico Armando Guerra ou nomes em desuso, fora de moda, bastante prestigiados no início do século passado, a exemplo de Epaminondas e Austregésilo. 

O pesquisador revelaria depois ao ‘dono’ do cartório a suspeita segundo a qual pais mais pretensiosos dão aos filhos nomes de filósofos gregos, na esperança, talvez, de um espírito intelectual apoderar-se da mente do nomeado xará. Mas o que estarreceu mesmo foram os nomes escritos ao contrário. Nessa categoria, a descoberta mais impressionante recaiu sobre alguém registrado (ou registrada) como Sedrulnoslen. 

Ao receber o relatório da pesquisa, que remunerou com gosto, o tabelião também ficou convencido da necessidade de uma lei que possa barrar de forma bem clara, objetiva, inequívoca mesmo, opções flagrantemente equivocadas, daquelas que na certa vão impor a futuros cidadãos e cidadãs variados constrangimentos ou, bem antes, causar bullying às crianças em idade escolar.

Afinal, como não esperar que pessoas batizadas com sonoridades incomuns, digamos, não venham a ser alvo de gozação ou coisa pior quando se apresentam como Alce Barbuda, Mamasduras Melo de Lima, Vicente Mais ou Menos de Souza e outras barbaridades que, doravante, segundo o homem do cartório, passariam a ser expostas nos seus quadros de aviso como advertência aos interessados em incidir ou reincidir em ‘delitos’ semelhantes.

Taí uma providência que teria favorecido a autora! 

A NECROCRACIA, por Juca Pirama

Howard Phillips Lovecraft é um dos mais cultuados escritores da literatura clássica de terror, junto com Edgard Allan Poe e outros autores. Ele desenvolveu um estilo próprio que o destaca dos demais: o culto às trevas, aos mortos.

Os contos de H. P. Lovecraft são muito extensos e ricos em ambientes sombrios, escuros, tétricos, e cheios de mortos, cadáveres dos mais variáveis graus de decomposição. Um de seus poucos contos mais amenos é “A Cor Que Caiu do Céu”. E é bastante pesado!

***

Na infância é muito difícil se perceber qual a tendência do caráter da criança, qual o seu pendor, muitas vezes os pais e avós tentam vislumbrar como será aquele indivíduo, ou uma futura profissão para ele.

Pois após a infância ele ainda terá que vencer a árdua caminhada da adolescência, quando banhos de hormônios os mais variados possíveis irão interferir nas suas tendências. Nessas fases da vida só muitos testes psicológicos poderão sugerir algum desvio de caráter.

Porém na adolescência já é possível observar-se qual a tendência do caráter do indivíduo que está se formando. É possível, por exemplo, perceber desvios de caráter do futuro adulto a tempo de procurar interferir para corrigir, o que os profissionais da psiquiatria e da psicologia conseguem executar, porém com muita dificuldade.

A maioria das pessoas tem um bom perfil, desse ponto de vista. São pessoas consideradas moralmente evoluídas. De cara citarei dois exemplos: Mahatma Gandhi e Nelson Mandela.

Lutando pela liberdade, ambos foram perseguidos implacavelmente por aqueles que dominavam e oprimiam os seus respectivos povos, indianos e africanos. Possuídos de caráter muito elevado e vontade inquebrantável, e principalmente muita coragem, ambos alcançaram os seus objetivos de liberdade, pois acreditavam com toda a fé em seus destinos.

E quando chegaram ao topo não se deixaram levar pelo doce sabor da vingança: exerceram a bondade que lhes era característica. Eram seres evoluídos, boas almas, espíritos de luz. Tinham vocação, pode-se dizer, para serem as pessoas maravilhosas que terminaram sendo.

Porém existem aqueles indivíduos psicóticos que chegam à idade adulta com a personalidade já formada desde a infância: começam a vida praticando perversidade com animaizinhos de estimação ou com crianças menores do que eles, por exemplo. E crescem mentindo por compulsão. Indiferente ao sofrimento alheio, sempre que podem ajudar eles tomam a atitude contrária, praticando o mal. Acho que o famigerado Dr. Jairinho pode ser o exemplo de um desses indivíduos, se for verdade tudo o que estão apurando dele.

Eles são portanto muito mais resistentes a mudanças, tratamentos, ficando muito difícil influenciar a sua personalidade. O problema é quando pelos motivos mais diversos eles podem chegar a exercer cargos elevados, tornando-se um perigo para a sociedade.

***

Mal comparando, assim como H.P. Lovecraft fez na literatura, tendo adotado o mórbido como estilo, a evolução do presidente sugere que ele possa ter tido algum desvio psicótico em sua infância ou juventude, que demonstra a sua tendência pelo mórbido. Não exatamente uma “necrofilia’, mas uma afinidade por manifestações da morte.

Parece ser muito sugestiva de distúrbio psicótico a sua tendência à indisciplina, a aversão a atitudes que sejam manifestações do belo, além da crônica insubordinação ao respeito pelas autoridades superiores. Todos são indícios de algum trauma infantil, que veio se aflorar mais tarde.

Já no início da idade adulta ele tentou praticar atos de indisciplina dentro do quartel, quando tinha ainda a patente de tenente do Exército brasileiro. Por isso foi expulso e considerado indigno de pertencer às Forças Armadas.

Ele gosta de demonstrar a sua predileção por pessoas que exibam força: militares, motoqueiros, milicianos, policiais, garimpeiros invasores. Paralelo a isso ele exprime aversão a ciganos, índios, mulheres, homossexuais, gente culta, a gestos e atitudes educadas, que ele traduz como demonstração de fraqueza, e despreza.

A sua indiferença pelo sofrimento alheio causado pelas mortes por covid, que ultrapassaram a casa do meio milhão, é outro sinal que se parece muito com psicopatia.

É impressionante a sua afinidade por ações ou atitudes letais que podem evoluir para desfechos mortais, e que são demonstradas nas medidas que ele tomou desde que assumiu a presidência da República.

Mas ele demonstra sob várias formas o desprezo pela vida. Há poucos dias duas cenas de terror explícito chamou a atenção para isso. Numa delas o morto-vivo toma uma criancinha nos braços e retira a máscara dela, cobrindo-lhe o rosto de perdigotos infectos. Na outra ele manda que uma menininha inocente retire a máscara numa solenidade, provavelmente contrariando a orientação que havia recebido dos pais.

É este indivíduo que atualmente detém o poder de realizar ações que possam vir a concorrer para aumentar o número de mortes no Brasil. Chama-se a este governo de Necrocracia.

DERRADEIROS MOMENTOS COM GALVÃO, por Francisco Barreto

Walter Galvão (foto copiada do portal T5)


A Jória e Clarice, a minha extremada afeição e admiração que guardo por Walter Galvão, um respeitado homem de bem.

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LÍDER OU MITO? DEPENDE DA ATITUDE, por José Mário Espínola

Gualter Ramalho, presidente da Unimed João Pessoa (Foto: Unimed-JP)

A última eleição para presidente da Cooperativa Unimed João Pessoa, em março de 2020, foi cercada por uma grande expectativa. O candidato da Chapa 1, o anestesiologista Gualter Ramalho, já havia concorrido ao pleito anterior, de 2016, não tendo conseguido vencer o seu adversário, o cardiologista Demóstenes Cunha Lima.

Dessa vez, a situação prometia evoluir diferente. E foi o que aconteceu, tendo Gualter sido eleito com uma significativa vantagem sobre a sua adversária, a também anestesiologista Maria de Fátima Santos.

Ele assumiu uma Unimed ainda dividida por conflitos acumulados nas últimas décadas. Os presidentes que o antecederam haviam feito administrações marcantes, no entanto nunca tinham conseguido unir os cooperados, que ainda guardavam ranços acumulados no passado e que já não têm mais sentido.

Contrariando qualquer expectativa negativa baseada em seu gênio forte, Gualter estendeu a mão a todas as correntes de cooperados, conseguindo acalmar a cooperativa. E vem dando mostras de que não apenas conseguiu dominar o gênio, como transformou-o em caráter e determinação para o trabalho.

A sua posse coincidiu com a instalação da pandemia em nosso país. Justo no Brasil, que já estava com uma economia que vinha claudicando desde o início da administração Bolsonaro. E que então já parecia frágil o suficiente para não sobreviver à emergência sanitária.

Diferente de alguns dirigentes do momento, o presidente Gualter Ramalho tomou como primeiras medidas pacificar a cooperativa, puxando para perto da sua gestão as lideranças mais expressivas.

Diante do imenso desafio que encontrou ao assumir, ele não titubeou. Iniciando um trabalho literalmente hercúleo, formou um Comitê de Crise, reunindo as cabeças pensantes da direção, reforçadas por outros cooperados que não faziam parte dela.

Tomou medidas severas para garantir o isolamento dentro do Hospital Alberto Urquiza Wanderley. Reforçou o estoque de insumos e materiais necessários para tratar os pacientes graves, inclusive com a aquisição de novos respiradores. Isolou uma UTI, especializada em tratar exclusivamente os pacientes graves de Covid. Isolou leitos de enfermaria para os pacientes de menor gravidade.

Preocupado com o fechamento dos consultórios, devido à necessidade de isolamento, com evidente prejuízo para os cooperados, disponibilizou valor semelhante à média das produções médicas dos meses anteriores à pandemia, garantindo-lhes uma receita mínima para enfrentar as despesas dos consultórios.

Ofereceu todas as facilidades necessárias possíveis para os usuários manterem os seus planos, tornando assim possível a conservação da receita da cooperativa.

Em resumo, o presidente da Unimed João Pessoa, Gualter Ramalho, agiu como um verdadeiro líder, e não como um mito qualquer.

ANTES ELE DO QUE EU, por Babyne Gouvêa

Imagem meramente ilustrativa (Álbum Flora)

O dia começava cedo para D. Matilde. Tomava o seu café reforçado, e acendia o cigarro, que não dispensava sob nenhuma condição. Depois do banho matinal se apoderava do telefone fixo, puxava o seu longo fio e o apoiava no colo após se acomodar numa confortável cadeira de balanço, na sala de visitas. Iniciavam ali as conversas diárias com familiares e amigos.

Geralmente, se queixava do marido alcoólico que, embora sofresse desse vício, sabia fazer filhos. E como sabia! Emprenhou a esposa por doze vezes. Eram tantos meninos que concordavam em doar alguns para os seus irmãos criarem.

Levavam a vida em comum sem aborrecimentos, ele trazendo o dinheiro para a manutenção da casa, e ela tendo a sua individualidade respeitada pelo consorte. Havia fidelidade de ambas as partes e um
comportamento familiar de particularidade singular.

Os interesses e ocupações dos dois eram semelhantes em alguns aspectos, diferentes em outros: enquanto o Sr. Albino trabalhava, gostava de leitura e costumava beber fora do lar, a D. Matilde era doméstica e chegada a uma bebida em qualquer circunstância. Não apreciava um livro, achava enfadonho.

O cotidiano do casal fugia ao convencional de sua geração. As crianças eram dotadas de inteligência acima da média e se desenvolveram sem receber muita atenção dos pais nas tarefas escolares. Tiveram sorte na educação formal dos filhos, cada qual assumia as suas responsabilidades colegiais. O casal era apontado como pais afortunados, por terem uma prole próspera.

D. Matilde tinha um perfil de mulher bem-disposta, gostava de festas, fascinada por danças, enquanto o Sr. Albino era reservado, preferindo o lazer em casa, aproveitava qualquer momento de sossego para ler. E assim a convivência respeitosa entre os dois se deu durante toda a vida matrimonial.

D. Matilde comemorava o período de Momo nos salões de dança devidamente paramentada. As fantasias homenageavam os seus personagens preferidos, da baiana de Carmem Miranda ao Pirata do Rum Montilla. E os embalos eram sempre acompanhados de uma bebida destilada, confetes e serpentinas. A orquestra tocava o frevo iniciando a festa, e a carnavalesca abraçava um dos familiares para lhe fazer companhia na folia.

No carnaval, se a senhora estava com filho em idade de berço, encontrava uma maneira de entretê-lo caso acordasse no meio da noite – colocava um espelho onde ele se via acreditando ser uma outra criança. Pronto, esse não seria obstáculo para as suas brincadeiras momescas.

Terminada a noite de divertimento, retornava para casa, muito feliz, esquecia o cansaço e com muita disposição preparava o café de Sr. Albino e dos filhos. Esse compromisso era repetido anualmente; nem mesmo um feto sem vida no útero interrompeu os seus dias de festa. Dizia: “Na quarta- feira de cinzas eu resolvo isso”.

Todos gostavam de D. Matilde. Obcecada pela vida, não conhecia momentos de tristeza. Onde chegava a alegria se fazia presente; conseguia proezas como fazer rir até mesmo em velórios. O marido não compactuava desse feitio da esposa, mas admirava o seu comportamento expansivo. O casal era a prova viva do velho jargão “os opostos se atraem”.

Em casamentos, aniversários ou qualquer outro evento social para o qual fosse convidada, era sempre a primeira a chegar. Fazia questão de desfrutar de todo o tempo que tinha direito, de preferência com um copo de bebida na mão. Não cometia vexame por ter exagerado no álcool, este apenas a deixava mais enérgica se tornando o centro da alegria. O cigarro era sempre o companheiro inseparável em todas as ocasiões sociais.

Quando uma irmã estava muito doente, ela foi lhe fazer uma visita com uma recomendação: “Nilzinha, não forneça o meu endereço Àquele lá de cima; se perguntar por mim finja que brigou comigo e que desconhece o meu paradeiro”. E assim encarava a sua filosofia de vida: primeiro ela, segunda ela, terceiro ela. O restante vinha depois. Mas nem por isso teve a sua reputação depreciada. Tinha horror à ideia da finitude, respondendo sempre a quem lhe falava sobre essa hipótese certeira: “Partirei contrariadíssima”.

Chegou uma época que precisou de cuidadora por ter fraturado o fêmur. Deu um trabalho enorme aos filhos, que se preocupavam muito com a sua indisciplina. Subornou a sua auxiliar para conseguir um cigarrinho, pedindo: “Só unzinho”! Nessa altura o Sr. Albino já tinha subido aos céus em decorrência de uma cirrose. Sentia a sua ausência porque tinha nele um aliado, um admirador de seu modus vivendi; existia realmente uma afinidade difícil de ser entendida.

Lutou para estender a sua existência. Esteve hospitalizada contra a sua vontade, em briga com um diabetes que lhe impunha limitações. Conseguiu amenizar as suas abstenções subornando dessa vez um enfermeiro. À noite, ele fazia companhia à D. Matilde, apreciando o seu prazer em dar umas tragadas no seu cigarro, como estivesse a saboreá-lo. As conversas entre os dois se alongavam até a madrugada, e ele ciente da brevidade de sua subsistência lhe proporcionou os últimos desejos.

Antes do seu último sono, respondeu ao enfermeiro que lhe questionou sobre vários assuntos, inclusive sobre o seu marido. Ela tergiversou fugindo de assuntos envolvendo pessoas falecidas. Ele insistiu procurando distraí-la, tentando demovê-la da vontade de continuar fumando – essa era a sua intenção. D. Matilde num gesto repentino, retrucou: “Se é o que você quer saber, lamento ele ter batido as botas, mas antes ele do que eu”.

QUEM NUNCA ERROU, por Bethânia Nóbrega

(Imagem: Amigos Paz e Bem/YouTube)

Todo mundo erra e quem acha que não erra “que atire a primeira pedra”. Essa frase foi dita por Jesus há mais de dois mil anos, e ela ecoa até os nossos dias como um sino a tocar, batendo na mesma tecla e digo isso só pra lembrar que essa perfeição não existe, o que existe da nossa parte é um “tentar ser” melhor.

O único perfeito que andou sem pecado foi Jesus e era o único que poderia atirar a tal pedra, mas não o fez, não fez porque queria outro reino, outros valores, outro acolhimento.

Um Deus que se humanizou para nos mostrar como deve ser, para que enxergássemos as nossas próprias imperfeições e assim ter empatia pelo outro. E é isso que nos torna mais humanos e menos acusadores, menos atiradores de pedras.

***

Nessa vida dura
Dura feito pedra
Seja abrigo
Não seja pedra
Jogue sua semente
No caminho
Tocando com cuidado
A alma do outro
Como brisa
Suave
Como água
Que desagua
Indo pro mar
Desviando as curvas
Que a vida dá
Lembrando
Que somos frágeis
Feitos de carne
Somos braços
Feitos de laços
Somos pele
Feitos
De afetos
Somos parte
Não estamos
À parte
Quem aparta
Nunca fez parte
Do partir
Do pão
Da vida
Onde um
Se abriga
No outro