Ela morava em uma das ruas principais da cidade, arborizada com a beleza e elegância dos jambeiros fixados como canteiros centrais. Por ela trafegavam poucos carros de passeio e marinetes que conduziam os seus usuários em trajetos urbanos.
Os jambeiros eram os responsáveis pela ornamentação da via pública, destilando ao solo os estames de suas flores cor de rosa após a polinização, formando um tapete natural que, de tão belo, provocava a admiração de quem por ali passava, comparando os adornos aos aplicados durante a celebração de Corpus Christi.
A sombra dessas fruteiras servia de abrigo aos trabalhadores de serviços gerais, como o engraxate e o amolador de tesouras, assim como aqueles que consertavam as panelas das donas-de-casa. Já os jogadores de tabuleiro assumiam esse abrigo no período vespertino, deixando o intervalo noturno para os encontros dos apaixonados.
O jambo, como a fruta exótica dessa árvore, era alvo da meninada do bairro, e precocemente era apedrejado caindo nas mãos sedentas das crianças ávidas em desfrutá-lo. Muitas vezes os pais tinham que intervir nas disputas dos frutos, apartando embates corporais.
As casas da região tinham estilo suntuoso e abrigavam famílias bem conceituadas da capital, como magistrados, comerciantes, dentistas, dentre outros. O convívio entre os moradores era harmonioso e cordial, e a solidariedade era seguida por toda a vizinhança.
Era nesse cenário bucólico e colorido que residia uma bailarina, anônima para todos, exceto para uma criança que a olhava furtivamente, camuflada com a ajuda de um tronco de jambeiro. Aos olhos da menina a dançarina fazia o espetáculo exclusivamente para ela. Com as portas da casa abertas e a radiola posta em ponto estratégico do terraço, emitindo o som de músicas eruditas, o corpo daquela que executava o ballet se contorcia em movimentos mágicos e inebriantes.
A árvore expressando a sua imponência, protegia aquela criatura pequena, que ficava em posição frontal à arrebatadora apresentação. Dava-lhe a cobertura necessária para continuar estimulando a sua curiosidade sem ser percebida, e permitindo-lhe um aprendizado na arte da dança. Às escondidas e num ato de peraltice infantil, premeditava alguma compra na mercearia mais próxima, porque o trajeto implicava uma passagem obrigatória pela casa-sede dos seus fascínios.
Em uma dessas ocasiões, mais uma vez por trás da árvore protetora, resolveu observar minuciosamente a indumentária e o rosto da bailarina. E como se a música fosse um ímã que a atraísse para se aproximar do som, deixou o temor de lado e se aconchegou. Parou junto ao muro e olhou prestando atenção ao collant, meia-calça, sapatilhas… O vestuário completo de sua deusa, deixando-a mais embevecida.
A menina percorreu com os seus olhinhos brilhantes todo o corpo e face daquela que ocupava um lugar no palco que podia ser seu. Percebeu uma pessoa mais velha chegando à sala e falando algo para a sua musa. Demonstrando uma aparente obediência, a bailarina se dirigiu ao terraço para desligar a radiola.
Nesse súbito instante a bailarina se desvendou e a balzaquiana escondida pela penumbra da sala se revelou; os cabelos grisalhos tingidos por purpurina e o desalinhamento corporal destacando o volume dos quadris foi totalmente exposto, provocando pavor no semblante infantil.
A criança ficou atônita e, emitindo um grito involuntário, viu desmoronar toda a magia e encanto que tinha construído em torno da bailarina. Só entendeu o impacto sofrido, anos mais tarde, quando teve discernimento para perceber o quanto tinha sido ingênua e injusta com a dançarina, por motivo tão tolo.
Com a maturidade estabelecida adotou a aversão ao prejulgamento como lema de vida, acrescentando: “Tudo é permitido fazer, desde que não haja vulgaridade. Usar sempre talento, beleza e paixão, como elementos básicos numa construção, é a chave de uma vida bem sucedida”.
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Uma resposta para A CRIANÇA E A BAILARINA, por Babyne Gouvêa
Belo texto: bonita história, muito bem escrito, com um rítmo crescendo e um desfecho inesperado. Muito inteligente!