HISTORINHAS DOS TEMPOS DO LICEU, por José Mário Espínola

A COBRA

O bêbado adormeceu encostado numa árvore. A cobra que estava lá em cima, no meio da tarde começou a descer.

A caminho do chão entrou dentro da calça frouxa do bêbado, gostou do calor, enrolou-se, aninhou-se e adormeceu.

Lá pras tantas o bêbado acordou-se com vontade de mijar, abriu a braguilha, e puxou “aquilo” pra fora. Olhou pra baixo, certo de que segurava a piroca, e ao ver a cabeça da cobra perguntou-lhe:

– Ôxente! Onde é que tu arrumasse esses dois zóim?!

***

SALTA UMA BRAHMA!

Todas as noites era a mesma coisa. O bêbado chegava no balcão do bar, e fazia sempre o mesmo pedido:

– Salta uma Brahma estupidamente gelada!

Bebia várias, e sempre caía pela sarjeta, a caminho de casa.

Certa noite estava ele em sono profundo quando passou o tarado. Adepto do provérbio “chinês” que diz: “Conde bêbo num tem dono”, o tarado traçou o bêbado. Este acordou no dia seguinte muito incomodado, sem saber o que era. Foi pra casa.

Noites depois, a mesma cena: o bêbado em sono profundo na sarjeta. O tarado passou novamente, e novamente aproveitou-se do bêbado. Isso se repetiu por mais algumas semanas. Então, certa noite o bêbado entrou no bar e bradou para o balconista:

– Salta uma Antárctica estupidamente gelada!

Estranhando, o balconista pegou uma garrafa de Antártica, e enquanto servia o bêbado, perguntou-lhe:

– Você só tomava Brahma. Resolveu mudar?

O bêbado respondeu:

– Num tomo Brahma mais não! Brahma dá uma dor no reto, danada!

***

O INVERSO

O bêbado ia voltando pra casa bebinho, de madrugada, quando ouviu uma voz vinda do escuro atrás dele: “Bêbado!”

Olhou pra trás, e não enxergando nada, continuou no seu passo oscilante. A voz seguiu atrás dele: “Bêbado, bêbado!” E ele não via nada, só a escuridão.

Até que em determinado trecho do caminho, ao olhar para trás, passando embaixo de um poste aceso, viu um jacaré dizendo: “Bêbado! Bêbado!”

O bêbado enfureceu-se! Ficou indignado com aquele desrespeito, dobrou a esquina e ficou esperando o jacaré. Quando este virou a esquina e abriu a boca para mexer com o bêbado, este enfiou o braço pela goela e puxou o rabo, deixando o jacaré pelo avesso. E foi-se embora.

Não andou dois quarteirões, ouviu a voz inconfundível do jacaré: “Dôbabê! “Dôbabê!”

***

PROMOÇÃO IMBATÍVEL!

O machão embriagou a namoradinha linda e levou-a para uma praia deserta. Estacionou a Hilux entre as dunas e conduziu a namorada para a areia fofa da beira-mar. Aos poucos foi convencendo-a despir-se totalmente, e deitar-se.

Antes que conseguisse alguma coisa, a mocinha queixou-se que a areia estava incomodando-a. O machão, então, foi até a Hilux, procurou e encontrou uma esteira, trouxe até à mocinha, que estava dormindo, estirou a esteira, limpou a mocinha e deitou-a sobre a esteira.

Ao deitar-se sobre ela foi que notou que o vento dobrava a esteira, incomodando o casal, que não conseguia concentrar-se para o melhor.

Deixando a mocinha adormecida, voltou à Hilux, pegou quatro garrafas de Coca-Cola na mala do carro, retornou, fixou as pontas da esteira com as garrafas e, mais tarado do que nunca, atirou-se sobre a jovem, acordando-a excitada.

Mas logo ela começou a incomodar-se com os mosquitos, picando a mocinha nua. Então ele lembrou-se de que tinha um repelente na Hilux. E foi procurar.

Enquanto o machão estava procurando o repelente, passou um bêbado pela praia, e deparou-se com aquela cena: uma bela mocinha nua, deitada numa esteira de palha, fixada por quatro garrafas de coca-litro, adormecida. O bêbado olhou em torno, e como não viu mais ninguém, CRAU!

Depois levantou-se, pegou uma das garrafas, foi saindo da cena e disse, como quem voltado para uma câmera cinematográfica:

– Duvido a Pepsi-Cola faça uma promoção igual a esta!

***

FRÁGIL DELIRIO

O nosso amigo Ivo Bichara (foto), à época do fato que passarei a narrar, morava em Recife, ao final dos anos 60 do século passado. E foi lá que ele contou a meu irmão Silvino, a história que se segue.

Ivo foi o primeiro beatnik de João Pessoa. E ao longo da vida tornou-se hippie, permanecendo assim até vir a falecer, na última década do século passado. Faleceu no final dos anos 1990.

Ivo foi também um excelente enxadrista, mestre no sacrifício de peças importantes para alcançar a vitória. Jogava muito bem.

Pois bem, Ivo contou que certa noite, madrugada já avançada, ele voltava de porre para o apartamento onde morava, na Recife Velha, quando ouviu passos atrás dele. Ficou preocupado: alguém o seguia!

Nesses anos, a cidade era tranquila, segura. À noite só quem fazia medo eram as forças da repressão, pois estávamos vivendo o pleno AI5.

Mais do que assustado, Ivo ficou curioso: de quem seriam aqueles passos furtivos? A cidade em torno estava vazia, adormecida.

Ivo resolveu tirar a limpo. Ao dobrar a próxima esquina, atravessou correndo a rua e escondeu-se. Logo a seguir, ficou assombrado com o que viu!

Dobrando a esquina, surgiu um geladeira aberta, carregada de garrafas de Ron Montilla! Arrepiou-se todo, nunca tinha visto uma cena daquelas, as garrafas brilhando como que piscando para ele! E disparou pela calçada.

Mas logo freou os passos, pois ouvia o tilintar das garrafas de rum. E teve medo que elas se quebrassem.

E foi assim até chegar ao velho prédio em que morava: dava uma carreira com medo da geladeira, mas tinha que diminuir, temendo que as garrafas quebrassem e perdessem todo aquele rum.

Logo Ron Montilla Carta Ouro!

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FALANDO PARA O MUNDO, Frutuoso Chaves

Conheci o antigo slogan da Rádio Jornal do Commercio, em fins dos anos de 1950, quando aportei no Recife para os estudos primários. Logo percebi como aquilo enchia de orgulho o peito de alguns colegas de escola. “Rádio Jornal do Commercio – Pernambuco falando para o mundo”, dizia, a todo momento, um locutor de voz grave, cheia e pausada.

Entendi, passado o tempo, que a frase, mais do que presunçosa, decorria dos esforços de F. Pessoa de Queiroz, o empreendedor disposto a revolucionar a radiofonia brasileira. O homem trouxera de Londres um equipamento para emissão de sinais em ondas Hertz, mais potentes e de muito maior penetração do que as até então irradiadas. Li, há pouco tempo, que a emissora instalada em 1948, no prédio luxuoso de oito andares, era a única, nas Américas do Sul e Central, a possuir oito torres de transmissão.

O menino que eu fui juntava-se aos da vizinhança para assistir ou comentar os capítulos de “Jerônimo, o Herói do Sertão”, a radionovela escrita, originalmente, por Moysés Weltman para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro e que, dado o sucesso de público, seria levada para a televisão, quando esta surgiu por estas bandas, e transformada em gibis. Na versão recifense, Jerônimo era interpretado por Geraldo Liberal. Não lembro o nome da moça que emprestava a voz para Aninha, a namorada do herói.

Tanto no Recife quanto em Pilar (durante as férias), a meninada quase toda mantinha, diariamente, um encontro marcado com Jerônimo, seus amigos e seus inimigos. As histórias – com influência forte do faroeste americano – eram levadas ao ar, a cada final de tarde.

Dávamos asas à imaginação. Para mim, Jerônimo era um sujeito moreno, alto e musculoso. O amigo Wolney, que também estudava no Recife e passava as férias em Pilar, o supunha loiro. Concordávamos, porém, que Aninha era branquinha e tinha os olhos azuis. O Moleque Saci, companheiro de Jerônimo, evidentemente, seria negro como carvão. Os passos mancos do Caveira a ressoarem nos corredores da casa de uma Aninha adormecida, sempre que isso ocorria, davam-nos arrepios. Diziam-me que eram feitos com o bater de quengas de coco sobre uma mesa. E que as mesmas quengas faziam o barulho dos cascos de cavalos. E os tiros? Bem, esses eram tiros mesmo, com balas de festim, assim assegurávamos com todas as certezas do mundo.

Certa vez, uma prima da minha mãe, de nome Terezinha, levou-me para um fim de semana em sua companhia, num sobrado da Rua da Aurora. Tinha uma escola de acordeon e era radiatriz, do “cast” da Tamandaré. Fui, na esperança de que ela me apresentasse a Jerônimo e já me deliciava com a inveja que de mim sentiriam Wolney e outros amigos, mesmo os do Recife, metidos a besta. Estes zombavam de Pilar. Vinguei-me, certa vez, com a informação de que minha cidade, apesar de pequena, era tão importante que dava nome a uma fábrica de biscoitos.
E houve quem nisso acreditasse.

Na sacada da Rua da Aurora, arregalei os olhos para os letreiros luminosos que, do alto dos prédios, eram reproduzidos nas águas do Capibaribe. As letras em neon acendiam uma a uma até completarem a mensagem. E apagavam todas juntas, noite a dentro, sem descanso nem cansaço. Ainda bem que Terezinha – orgulho dos parentes de Serrinha e Pilar – não me mostrou Geraldo Liberal. Imaginem, se assim o fizesse, o tamanho do desencanto… Um pouco balofo, de Jerônimo mesmo ele só teria a voz.

O sinal da Rádio Jornal do Commercio, forte e claro, também punha Pilar inteiro em contato com as agonias e os prantos de “O Direito de Nascer”. Vi, muitas vezes, minha mãe e minha avó enxugando as lágrimas compadecidas das dores de Maria Helena, uma mãe solteira na sociedade moralista. Eram tempos mais inocentes aqueles nos quais Pernambuco falava para o mundo.

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MEUS PÁSSAROS, por Frutuoso Chaves

“Espie no caminho que vem gente”. Era assim mesmo, exatamente assim, que o Pitiguari cantava no meu quintal, lá por volta dos meus dez anos de vida. Não era “gente de fora vem”, como querem os da Bahia e de outros quintais brasileiros. Outro pássaro mensageiro das nossas mais caras visitas, o Vem-Vem, cantava, justamente, como nos soava seu nome. Não era o “fim-fim”, nem o “vim-vim” de outras paragens.

Como eu gostava do negro Tiziu, bicho que não se expressava com voz de gente, nada contava, mas nos divertia com seus saltos curtos, rápidos e repetidos. Um pulo de um segundo na vertical a cada “tiziu” com algumas batidas de asas antes do pouso no mesmo lugar, em cima dos calcanhares. Talvez assim pulasse, miudinho que era, a fim de ser visto como dono do galho, ou para se mostrar às namoradas.

E o Bem-te-vi? Quem danado inventou que anuncia dissabores? E que história é essa de que indicou aos soldados de Herodes a rota de José e Maria na fuga com o menino Jesus? Não dá para acreditar em que esses três foram salvos pelo João de Barro, construtor de uma casa enorme onde a Família Sagrada se escondeu. Isso é doidice pura. Bem-te-vi nenhum jamais pôs os pés na Galileia, minhas e meus camaradas. Isso fica para os lados do Oriente Médio, ali onde a Ásia, a Europa e a África se abraçam quando não estão aos sopapos. Contam-me que é natural da América Latina e que até se arrisca pelo Texas, na beirada do México. Nada mais além disso.

Outra história na qual não se deve acreditar é a de que trouxe desgraça para o povo Asteca ao violar algo muito proibido: a nudez da Princesa num banho de riacho. A bruxa que protegia o local não o viu até que saísse do tronco oco onde se escondera para, debochado e azarento, surpreender a moça: “Bem te vi”… No dia seguinte, os espanhóis chegariam com suas espadas e canhões. Pois é, há gente capaz de tudo. Até de inventar uma maluquice dessas.

Bem-te-vi é pássaro dos bons desejos. Ele te quer bem e bem te vê. Pessoalmente, eu tomo seus assovios como votos de paz e saúde. E assim já os tomava no quintal da minha infância, onde também aprendi que cada pássaro tem suas preferências.

O negro Tiziu não pousava em outro galho que não fosse o da goiabeira, aquele que se esticava até quase arranhar a caixa d’água. Acho que pretendia se afastar do Beco do Padre, ponto do trânsito de carros e gente no vai e vem da estação ferroviária.

O Bem-te-vi saltava do muro para o pé de manga sob cuja sombra Maria, ocasionalmente, armava a trempe para a queima dos grãos de café. E fugia dali à primeira batida da mão de pilão empunhada por essa ajudante da minha mãe a fim de transformar em pó os torrões com açúcar bruto.

A timidez do Pitiguari sempre o levava, de tempo em tempo, ao galho mais alto do sapotizeiro, de onde mal podia ser visto. Mas era seu canto aquilo que mais esperávamos. Em muitas ocasiões falhava, mas acertava em várias outras. Eu e meus três irmãos sempre a ele obedecemos. “Espie no caminho que vem gente”, assim mandasse já nos púnhamos de olhos compridos no beco, rota obrigatória para quem saltasse do trem. E lá vinha Boanerges, o mais querido dos tios, para rever a irmã, o cunhado e os quatro sobrinhos. Às vezes, era a Tia Mariinha com o marido. Ao cabo de uma dessas visitas aqueles dois, que não tinham filhos, me carregaram para o estudo primário no Recife.

Cada acerto do Pitiguari anulava a raiva que dele tínhamos quando dos anúncios falsos dessas chegadas. Mas é bem possível que o pobrezinho não fosse dado a mentiras. Pode ser que seus alertas ocorressem antes de nossos parentes desistirem das viagens. Culpa deles, portanto.

Dava-se o mesmo com os avisos do Vem-Vem. Mas, neste caso, púnhamos os olhos mesmo era na Sopa de Seu Eimar. Um de nós decidiu que um passarinho anunciava chegadas por trem e, outro, pela Sopa. Falo daquele ônibus pequeno, de lombo arredondado, focinho comprido e bagageiro no teto para acomodação de sacos e malas. Acho que assim se chamava por ter o retorno na hora do jantar. Mesa posta e já ouvíamos a buzina do bicho lá para os lados da Rua do Silva. Era aviso ao pessoal da praça prestes ao embarque para Itabaiana, ou à espera de alguém advindo de João Pessoa e cidades ao longo do percurso.

Toda a movimentação dava-se em frente da nossa casa. Lembro do motorista, mas não guardei o nome do ajudante, um moço magro encarregado de cobrar o bilhete e de subir e descer malas acondicionadas no bagageiro em cima do velho Chevrolet. Uma escada de ferro afixada na traseira do veículo facilitava essa tarefa. A Sopa me ajudava a acordar para o café da manhã e a escola, mas eu gostava mesmo era do seu regresso quando, vez ou outra, ora nos trazia a bela Zica, prima do meu pai, ora uma sobrinha da professora Sílvia, de quem gostávamos muito.

A praça em questão era (e ainda é) estreita e comprida. Começava mais larga no pátio da Igreja e afunilava-se em frente à Prefeitura. Dona Guajarina, a secretária de sucessivos prefeitos e, a bem dizer, a mandatária de fato porquanto prima do poderoso chefe político local, não gostava que ninguém tocasse naquelas flores. Certa vez, destacou o jardineiro para impedir que donas de casa, a meio caminho de suas viagens e não resistindo aos canteiros públicos, descessem do ônibus para colher margaridas, violetas, crisântemos ou papoulas. Empavonado com a autoridade a si conferida, o moço terminou destituído do posto depois da descompostura passada na mulher de alguém muito importante. O chefe político fizera ver à prima que era melhor perder flores do que votos.

Espanta-me, agora, a frequência com a qual essas coisas tão passadas me voltam à lembrança. O que explica isso? A perda da juventude? A dos parentes e amigos subtraídos das nossas vidas e, assim, incapazes de respeitar os anúncios de vem-vens e pitiguaris? Seja como for, essas ausências nunca me doeram tanto.

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TEM QUE SABER USAR, por Antônio Carlos Ferreira de Melo

Imagem: revistacultivar.com.br

Temos uma semana marcada por importante seminário realizado nas dependências do Tribunal de Contas do Estado (TCE) para debater o processo de desertificação do Nordeste, especialmente em nossa Paraíba. Lamento não ter participado presencialmente em razão de virose que me acometeu. Lamento também, de outro lado, que determinados assuntos não tenham merecido o necessário aprofundamento ou pelo menos alguma abordagem durante o evento.

Refiro-me, por exemplo, ao fato de nenhum expositor tocar em assunto tão relevante para o controle e combate à desertificação que é entregar água a produtores rurais e outros usuários sem que esses recebam capacitação técnica ou orientação mínima em relação ao uso dessa água através de sistemas de irrigação eficientes, manejo adequado do solo e preservação do meio ambiente. É o básico do básico para o emprego produtivo de recursos hídricos nos quais o Brasil tanto investiu.

São processos e procedimentos voltados para deter ou atenuar a temerosa degradação dos solos e consequente desertificação. Se os governos não vêm executando políticas públicas no sentido de conter os danos da desertificação, que se encontra em plena ascensão, que pelo menos execute ações de natureza preventiva, que passo a relacionar.

  • • Levantamento do perfil de solo e quais culturas devem ser plantadas nas terras que irão receber as águas do São Francisco em nosso estado (algo feito apenas parcialmente em algumas das propriedades cadastradas, segundo tomei conhecimento;
  • • Somente liberar a água para agricultores que tenham comprovadamente participado de treinamento do uso da irrigação eficiente (por microaspersão ou gotejamento), além de capacitação técnica no manejo da cultura que vai plantar e licenciamento ambiental para execução da atividade;
  • • Ter a garantia de assistência técnica e gerencial do empreendimento, para se ter certeza do sucesso no projeto (essa assistência técnica e gerencial, se não for possível na esfera estatal, sugere-se que grupos de produtores contratem técnicos autônomos, através de financiamentos bancários, onde essa atividade pudesse ser incluída no mesmo projeto de financiamento da produção).

Isso feito de forma coletiva torna-se mais barato e eficaz para um conjunto de beneficiári0s, a exemplo do que já vem fazendo com sucesso o sistema Senar/Faepa. Sugerimos ainda aos bancos financiadores da produção só liberarem créditos para os produtores que atendam as citadas exigências, para não continuarmos na mesma situação de décadas, onde a maioria não tem assistência técnica, muito menos gerencial.

Sem esse apoio, sem tal direcionamento, o resultado provável é o insucesso do empreendimento, provocando inadimplência e piorando a qualidade de vida dos nossos agricultores. 

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MINHA ALMA CANTA, por Frutuoso Chaves

Manhã de supermercado. Vagueio por entre gôndolas quando me chegam os acordes de um hino que eu costumava ouvir aos meus 11 ou 12 anos.

Pronto, bastaram-me as primeiras notas para eu recordar, de imediato, os versos que supunha perdidos num recanto qualquer da memória: “Senhor meu Deus, quando eu maravilhado/contemplo a tua imensa criação./A terra e o mar e o céu todo estrelado/me vêm falar da tua perfeição./Então, minha alma canta a Ti, Senhor/Grandioso és tu”.

Deixo as compras aos cuidados de dona Miriam e saio em busca do camarada que soprava aquilo, à perfeição, numa gaita de mil encantos.

Reparo como são inexplicáveis essas coisas da mente e do espírito. Juro como senti o cheiro da pipoca estourada do outro lado da rua, em frente ao Cine São José, cujas portas logo mais se abririam para a matinê.

O bairro de Coqueiral, no Recife, apareceu-me por inteiro ao som daquela gaita: a Igreja da Tia Mariinha que me queria um pastor adventista, a linha do trem no meio da rua e o cinema em cuja calçada eu comprava pipocas e gibis.

Ah, Coqueiral… O lado esquerdo, para quem sai da estação, conduzia-me ao recolhimento e às preces. O lado direito, ao pipoqueiro, à banca de revistas e à bilheteria do cinema. Se dependesse da Tia querida eu nunca atravessaria aqueles trilhos. Era carão antes e carão depois das matinês.

“Deixa o menino, Mariinha”, até isso, a defesa do Padrinho Tito, o sopro daquela gaita me trouxe aos ouvidos. Padrinho, sim, com vela e pia batismal, na Igreja do Padre Gomes, em Pilar, onde a irmã mais velha da minha mãe tomou-me nos braços para a primeira apresentação formal a Deus. Na época, ela e o marido eram católicos.

No meu coração de menino cabiam o hino e o cinema, cada um por vez e a seu tempo. Em idade provecta, cabem-me, hoje, todos os bons credos e atos de boa fé. Coqueiral, com seus dois lados, deu-me esse prumo e essa balança.

Ao que li, o “Grandioso és Tu” tem música de autor desconhecido e versos compostos pelo sueco Carl Gustaf Boberg, num verão de 1895. Houve a tradução para o inglês em princípios do Século 20 feita por Stuart Hine e, daí, para idiomas sucessivos. A versão em português deu-se por obra e graça do hinólogo João Gomes da Rocha, em 1938. Seu cantar combina com todos os templos e credos porquanto exalta as realizações divinas.

Vejamos outros versos: “Quando as estrelas, tão de mim distantes,/vejo brilhar com vívido esplendor,/relembro, oh! Deus, as glórias cintilantes/que meu Jesus deixou, por seu amor./ Então, minha alma canta a Ti, Senhor”…. Fazer o quê?

Aproximei-me do gaitista, comprei-lhe um disco e o fotografei. A tempo: chama-se Jediel Veras e costuma fazer ponto em espaços de grande público.

(Imagem: foto pinçada do Canal que o artista mantém no YouTube)

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TANTO NA TERRA QUANTO NO RIO, por Frutuoso Chaves

O Beco, no Centro de Bananeiras (Foto: Coisas do Brejo)

Já ouviu falar em arquiteto para casa de pobre? Se não ouviu, poderia ter ouvido, pois isso foi não apenas um assunto com difusão semanal – notadamente, ao longo do biênio 2019/2020 – mas, ainda, uma ideia aclamada lá fora. Que o diga a Universidade de Brasília concessora do prêmio nacional “Líderes e Expoentes da Governança Pública” ao Tribunal de Contas da Paraíba, em reconhecimento ao Programa “Decide” idealizado pelo solanense Arnóbio Viana.

Decide, tiremos as aspas, é termo formado com sílabas de Defesa do Estatuto das Cidades. E é projeto de enorme interesse público por envolver cuidados com a preservação de bens culturais e históricos, com a saúde, a segurança e o bem-estar dos habitantes de áreas centrais e periféricas em cidades paraibanas.

Calçadas irregulares, obstruídas e, assim, impróprias ao caminhar livre e seguro das pessoas, instalações públicas em locais inadequados (a exemplo de abatedouros e lixões), desalinhamento urbano em virtude da invasão de passeios e trechos de ruas compuseram, em todos os momentos, a lista de males combatidos pelo Programa Decide.

Mas falemos da cereja do bolo: o arquiteto gratuito para os pobres de Jó, os que, geração após geração, erguem em terrenos doados pelas Prefeituras, ou não, moradias inseguras, precárias, mal-iluminadas e mal-arejadas. Casebres que, não raramente, desafiam as normas gerais e a lei da gravidade.

Pois bem, então na Presidência do seu Tribunal, Arnóbio deu pela existência da Lei Federal 11.888, de 2008, instrumento que assegura às famílias de baixa renda o direito à assistência técnica pública e gratuita para projeto e construção de habitações de interesse social. Bingo!

Quem bancaria, aqui, essas ofertas? Resposta: os Consórcios Intermunicipais para o Desenvolvimento Urbano, os Cimdurb’s, assim formados pelos prefeitos, mediante aprovação das Câmaras Municipais, para o rateio das despesas com todas essas ações. No Consórcio do Brejo, o primeiro assim instituído, onze Prefeituras arcariam, mensalmente, cada uma, com algo em torno de R$ 1,5 mil, uma merreca.

Ao Tribunal de Contas, com seu Programa Decide, apenas caberia o papel de organismo indutor do desenvolvimento econômico e social. Mesmo assim, um trabalho de formiguinha, lento, esforçado, persistente, sofrido. Vá fazer prefeito brigar e intimar eleitor por desníveis, ou invasão de calçadas. Nem todos, desgraçadamente, têm o bom senso e as boas intenções de André Alves, de Remígio, último presidente do Cimdurb do Brejo e, ele mesmo, recebedor de prêmio em Brasília.

Não é preciso pensar muito para entender que esta, sim, é uma briga da cidadania. É dos que elegem seus representantes em escalas municipal, estadual e federal. É dos que reclamam ações públicas corretas, pontuais, benfazejas.

Arnóbio percebeu, por exemplo que as cidades que se degradam e se enfeam no Circuito do Frio, um dos roteiros turísticos mais buscados na Paraíba, assim o fazem em desfavor das oportunidades de emprego e renda. Desse modo, dispôs ao arquiteto Expedito de Arruda a coordenadoria técnica do programa orientador da boa gestão pública. Outro profissional inscrito numa das fases de ouro da arquitetura paraibana, Régis Cavalcanti, passou a atuar, enquanto isso, às expensas do Cimdurb. E mais, nem de melhor modo, poderia ser feito.

Não sei como anda o projeto de revitalização do Beco, ponto de encontro dos moradores e dos que visitam Bananeiras. Reclamado por comerciantes ali instalados, o Beco ganharia cobertura transparente, jardins suspensos, iluminação, sonorização única e em volume agradável, além dos sanitários ali faltosos. Mas sei de calçadas livres em Remígio, com trilhas táteis para os cegos. Também, de alguns projetos de casas populares em Solânea e Casserengue. Cada Prefeitura recebeu, ao menos, dez desses modelos para oferta aos interessados. Houve redistribuição? Ah, se as periferias brasileiras contivessem essas casinhas. Bonitas, bem-divididas e bem-dimensionadas custam tanto quanto as “casas de cabeça de pedreiro”, no dizer do criador do Decide.

Surpreso, acabo de ser informado de que esse Programa pariu um filho no Rio de Janeiro. Um rebento ingrato, sem reconhecimento ao pai a quem não faz a menor referência e de quem possui as mesmas feições, os mesmos propósitos, veste-se igualzinho e anda como tal. Ali, foi à pia com o nome de “Na Régua”. A mãe é a mesma: a Lei 11.888/2008. Seguramente, recebeu a sanção de um nordestino carente de letras e dedos.

Li seus princípios e diretrizes: dignidade humana, direito à moradia adequada, direito à cidade e priorização das famílias em vulnerabilidade. Ali, quem toma pela mão essa criança é a Secretaria Estadual de Infraestrutura e Obras. E assim o faz com a ajuda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. De resto, é tudo do mesmo jeito. Tanto na nossa terra, a velha e sofrida Paraíba, quanto no Rio.

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O INGÊNUO LENHADOR, por Jesus Soares da Fonseca

Itaporanga (Foto: Wikipedia)

O alto sertão nordestino sempre foi castigado por uma das piores intempéries da natureza, a seca. Com o evento, as paragens ficam desoladas, a temperatura, durante o dia, quase insuportável. Tem-se a impressão que o dia é mais longo. Há, até, um dito meio sarcástico e gozador criado pelo próprio sertanejo de que: se o dono da Mercedes Benz quisesse ficar mais rico, era bastante montar uma fábrica de carro, ali, no semiárido nordestino, pois como o dia é comprido, daria para fazer mais carro que em qualquer outro lugar!

Ao meio dia, a evaporação que limita a umidade do ar, já bastante seco, é tanta, que ao olhar para o horizonte tem-se a impressão visual que a terra está a tremer. É o mormaço quente, como diz o sertanejo. Mesmo assim, no meio desta desolação, surgem cidades, vilas e povoados com seus habitantes sempre à espera das chuvas salvadoras que acontecem, geralmente, entre longos períodos de estiagem.

Itaporanga é uma dessas cidades, encravada no alto sertão paraibano, a sofrer o castigo das secas. Nossa estória remonta aos anos cinquenta, do século XX, quando o desenvolvimento passeava muito longe daquelas bandas.

Localizada à margem esquerda do Rio Piancó, cujas águas só se fazem presentes em seu leito em períodos chuvosos, a cidade abrigava pouco mais de dois mil e quinhentos habitantes em suas dezoito ruas, maioria com pouca ou quase nenhuma estrutura urbana. A energia era precária, advinda de um gerador com a única finalidade de não deixar a cidade às escuras quando a lua não se fazia presente. Em função disto, a população, sequer, tinha ouvido falar em eletros domésticos e muito menos no seu uso. Os poucos refrigeradores ou geladeiras existentes possuíam um pequeno motor movido a querosene, que gerava o gás refrigerador do aparelho.

Os fogões eram a lenha e aí surgia aquela gente que abastecia a cidade com o produto, conhecida, na região, como “butadores” de lenha. Eram homens que, geralmente, morando em sítios na circunvizinhança da cidade, passavam quatro dias da semana colhendo a madeira necessária ao consumo.

Entretanto, nem toda árvore servia para este consumo. As preferidas eram angico e aroeira, consideradas lenha de fácil combustão, encontradas em grande quantidade em função de sua resistência às intempéries naturais do sertão. Naturalmente, havia outros tipos de madeira menos apreciada, entre elas uma conhecida como “catinga de porco”, pomo das constantes discussões entre o abastecido e o abastecedor, uma vez que a madeira a muito custo desempenhava seu papel lá dentro do fogão, era de péssima combustão.

No sítio, a madeira colhida era posta no terreiro da casa, onde era rachada para ser levada à cidade. Uma ache tinha em torno de um metro de comprimento, conhecida pela população como “laxa de lenha”. Tomava-se o tronco da árvore, cortava-o em toras, mais ou menos em torno de um metro de comprimento e as abria pelo meio, em duas ou três “laxas”, dependendo da grossura do tronco. Após o serviço, era hora de conduzir a lenha para a venda.

O jumento, conhecido como jegue, era o meio de transporte da preciosa lenha. Em cangalhas preparadas para o uso, colocavam-se quinze aches de cada lado do “jegue”, formando a carga que iria abastecer determinada casa na cidade.

Partindo dos sítios, lá iam eles com suas tropas de jumento em direção à rua, conduzindo o combustível tão necessário à existência da Comuna. Sem rancor, sem ódio, no descarrego da lenha, começavam as discussões, as teimas, naquele linguajar peculiar do sertanejo, onde a gramática andava a quilômetros de distância.

– Seu Luis, o sinhô mi perdoi, mas esta lenha não é da boa, não!
– Dona Zefa, a sinhora ta inganada! A lenha é ispiciá e eu só trabaio pensando nas freguesa!
– Como ispiciá, se aqui tem laxa de catinga de porco! Pra catinga de porco pegá fogo a gente tem que gastá duas ou mais garrafa de gás (querosene) e além disso a cumida sai fedendo a gás!
– Dona zefa eu vou repeti, a sinhora ta inganada, essa laxa de lenha é de angico, é pruquê a lenha ta verde, esta semana foi um pouco nuiblado e a lenha não inxugou direito!
– Seu Luis, o sinhô é um home de veigonha, faz mais de mês qui o céu de Deus é azuzin, azuzin, aonde o sinhô foi incrontá as nuvem?
– Não sinhora, lá pra nois fez sombra sim, sinhora. Lá teve dia qui não era tam azuzim, o céu, como a sinhora diz! Mas vamo fazê o siguinte! A sinhora acende o fogo com a aroeira, lenha boa, a sinhora sabe disso, quando o tição pegá fogo, a sinhora mete a madeira aqui, a qui tá mais verde, ta certo?
– Tá bom, seu Luis – resignava-se a mulher. – quanto devo?
– Dez mi reis!
– O sinhô ficô maluco? Todo mundo ta vendendo por oito mi reis a caiga e o sinhô vem mi cobrá os oio da cara?
– Eita mulerzinha xorona! Dona Zefa, minha lenha é da boa! Os outo pode vendê inté pru menos, mais eu agaranto que num tem trinta pau de lenha cuma a minha, num dá nem pru mês!
– mais a lenha do sinhô ta misturada, o sinhô num pode negá isso!
– Dona Zefa, minha lenha é boa eu já ispliquei isso, aquilo ali é lenha verde, eu já falei. Pronto, pra num perdê o freguei, a sinhora basta mi dá nove mi reis, pru meno num dá!
– Olhe Seu Luis, eu só vou pagá os nove pruquê o sinhô é um home pontuau, num deixa agente na mão, mais de outa veiz o sinhô num traga lenha misturada qui eu num aceito, não!

Assim, a vida cotidiana do bravo sertanejo prosseguia por aquelas paragens castigadas pelo tempo, contudo, o bom humor imperava ali, ninguém se maldizia nem entregava os pontos, a luta era ferrenha contra o quase eterno verão.

Com a ignorância reinante, os políticos tiravam proveito da situação e o progresso circulava a muitas léguas de distância, Quando muito, construíam uma Casa de porte médio na periferia da cidade com quatro compartimentos, chamando-a de Escola, onde a meninada aprendia o bê-á-bá através de uma professora mal remunerada e de pouca cultura. O ensino mais adiantado residia num Grupo Escolar mantido pelo Estado, freqüentado pelos filhos de famílias um pouco mais abastadas, como compradores de algodão, negociantes, etc, pois, o Estado arcava, apenas, com o salário dos professores, o fardamento e material escolar era por conta dos Pais.

Nossa estória acontece e tem como enredo um dos muitos fatos ocorridos na Comunidade, razão porque se faz necessário o conhecimento dos costumes desta gente, naquela época. Ademais, sempre é bom relembrar para as gerações de nossos dias, alguns costumes, como os expostos, que em função do atraso daquela época, mostram-nos como a gente do povo era obrigada a se tornar rica em criatividade.

Dentro deste contexto, apareço com outra figura que foi de suma importância, assim como o botador de lenha ou lenhador, para o desenvolvimento de muitas destas cidades que pululam pelo interior de nosso País, as “butadeiras d’água”, como eram conhecidas.

A cidade, como a grande maioria das comunas que se espalhavam pelo interior do País, naquela época não possuía o Serviço de Saneamento d’Água, fornecedor do líquido precioso tão necessário, não só como consumo humano, mas sobretudo, à saúde. Como a água é um líquido necessário à sobrevivência dos seres vivos, o homem, de uma forma ou de outra, sempre haverá de encontrá-la.

Em Itaporanga não era diferente. O leito seco do Rio Piancó era o seu manancial. Durante as ocasionais e raras cheias que ocorriam no Piancó, as águas, como uma bênção dos Céus, acumulavam-se sob sua superfície, formando grandes lençóis freáticos, fontes das inúmeras cacimbas existentes por ali.

O Sertanejo, em sua busca perene pela sobrevivência, além de ser um forte, como disse Euclides da Cunha, também, é criativo. Para usufruir do líquido subterrâneo e dos espaços porosos que se formam nas areias do rio seco, fazia-se um caixão retangular em sua profundidade de, aproximadamente, metro e meio de fundura, de base quadrática com oitenta centímetros de lado ou, mais precisamente, três metros e vinte centímetros de perímetro, e é óbvio, oco em suas bases.

Na ausência das pás modernas feitas para escavação, era utilizado um enorme caneco dentado de alumínio, fruto também de sua criação, com trinta centímetros de diâmetro, com enorme cabo de madeira enfiado, quase que em sua base, em diagonal, para facilitar o manejo. Colocava-se, então, o caixão no leito seco do rio com ligeira pressão para baixo e, com o caneco, ia-se retirando a areia do seu interior gradativamente, que, em virtude da pressão exercida para baixo, afundava-se, até atingir o lençol freático que se achava a pouco mais de um metro da superfície.

O líquido precioso, como um milagre, tìmidamente, dava o ar de sua graça, surgia graciosamente preenchendo a área da caixa, à proporção que esta penetrava no areal do rio, até ficar quase a altura de sua superfície. Estava pronta a cacimba que se espalharia em grande quantidade naquela área delimitada do rio, própria para aquela finalidade.

Surge, então, a figura dos “butadores” e das “butadeiras” d’água, heróicos anônimos que, incansavelmente e involuntariamente, de uma forma ou de outra, fizeram a sobrevivência do Sertão, coadjuvantes do futuro progresso da Região.

Para completar o palco onde se desenrolará o nosso enredo, outro costume daquela gente sertaneja não poderia deixar de ser exposto. Atemos a ele, pois!

O zelo e o respeito aos mortos, certamente faziam ou fazem parte do povo do sertão, como herança não só da contribuição africana, sobretudo, da cultura indígena. Como o seguimento Católico predominava, quase, em cem por cento a fé da população, na cidade havia duas igrejas, a Matriz, onde eram realizados os diversos cultos, batizados, casamentos, novenas, missas dominicais, e a do Rosário, relíquia de sua fundação, que se prestava, apenas, a uma finalidade, receber em seu interior aquele que cumprira sua missão terrena.

Todo morto, ao se iniciar a condução do féretro a sua derradeira morada, inevitavelmente, teria que passar por aquela Casa de Deus. No interior do recinto, os participantes do enterro rezavam um padre-nosso, uma ave-maria e uma salve-rainha em intenção da alma do falecido e, só então, seguiam em direção ao cemitério.

Nesta ocasião, um sino situado na torre da igreja, plangentemente soava, como que, em despedida ao que se ia para sempre. A pessoa encarregada do toque fúnebre era um senhor que recebia alguma pecúnia para exercício de tal mister, o que fazia com denodo, virando o sino, em determinados momentos, fazendo-o girar em suas bases de sustentação situadas lateralmente em uma das quatro janelas do campanário, aquela virada para o cemitério.

Era um espetáculo triste, mas ao mesmo tempo, deslumbrante, quando o badalo, impulsionado pela rotação do sino, tocava seu interior, fazendo ecoar um som nostálgico e melancólico, era o sinal dobrado, como se dizia, para aquele tipo de toque. “Seu” Zezim Pacato era este homem! Mais adiante, iremos encontrá-lo na nossa estória.

Quinca Cordinha era um daqueles lenhadores. Era um indivíduo alto, esguio, um pouco magro para sua altura, setenta quilos para um metro e noventa e cinco de altura, com o caminhar típico sertanejo, de passadas largas e céleres, como exigia sua profissão, pois a vagareza era proibida naturalmente para aqueles que achavam, ali, seu ganha-pão. Com uma tropa de dez jegues, juntamente com seu filho Pedro, fazia semanalmente a entrega da lenha nas casas da cidade.

As botadeiras d’água, cada qual com sua rodilha na cabeça, artefato, não só de proteção ao peso da lata de vinte litros, como para seu equilíbrio, faziam seu périplo diário, do rio à cidade e vice versa, numa algazarra infernal, dando conta da vida da cidade inteira, fofoqueiras, muito mais pelos “ossos” do ofício.

Foi num dia desses vai-e-vem de fofocas que surgiu uma estória que viria abalar a Comunidade. Quinca Cordinha morrera! O boato logo tomou conta de toda população. Como era uma sexta feira, suas freguesas, além de constrangidas pelo passamento daquele homem bom e trabalhador, como era conhecido, também estavam preocupadas com a falta da lenha que, certamente, iria acontecer.

Como não poderia deixar de ser, a notícia chegou aos ouvidos de Zezim Pacato que, de pronto, pensando muito mais no possível dinheiro que iria ganhar do que no falecimento de seu conterrâneo, partiu como um raio em direção a Igreja do Rosário para, ali, executar os primeiros dobres funerários.

Vez por outra, ele parava de tocar o sino e verificava, através de uma janela da torre, a estrada que saia por detrás dos muros da última rua da cidade, em relação ao rio, se o enterro já se aproximava. O relógio da Matriz badalou duas horas da tarde! Zezim Pacato correu para a janela a espiar, novamente, então avistou Pedro Cordinha tangendo seus cinco jegues repletos de lenha.

Um tanto quanto intrigado com o que via, indagou: – Ô Pedro cadê teu pai? Ato contínuo, ouviu a resposta: – Vem aí atrás! Zezim Pacato voltou correndo para o sino e dobrou o sinal com todo ímpeto que podia, para informar à comuna inteira que o cortejo fúnebre do inditoso lenhador já entrava na cidade.

De repente, entre os sons barulhentos do dobre ele pensou ter ouvido vozes e correu para a janela do campanário. Ficou estupefato com o que via, lá do alto da torre da Igreja, Quinca Cordinha, gritando a plenos pulmões para a tropa de jumento: – “Xô jegue! Anda pretinho! Dipressa roxim!” – Meio abobalhado e sem acreditar no que via, gritou alto e bom som de onde se encontrava: – Ôxente, home de Deus tu num tinha murrido? Me diz pur amô de Deus, Quinca, fala home, mi isplica tu ta vivo mermo? Lá de baixo, então, Quinca Cordinha com toda ingenuidade que lhe era peculiar e muito sério, respondeu: Tu é besta Zezim, tu acha qui se eu morresse eu ia ti negá! E tocou a manada para frente, deixando Zezim Pacato, não só decepcionado, como furioso pela grana que não receberia.

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CONFLITO DE GÊNERO, por Frutuoso Chaves

Imagem meramente ilustrativa copiada do Diário Digital

Quase morreu de susto. Desviou os olhos da leitura que lhe prendia, até então, todas as atenções para se deparar com aquilo: aquele molambo de gente, aquele ser aniquilado, aquela alma penada.

Interrompeu o que lia ao ouvir uns passos arrastados. Quem poderia ser? E de que modo lhe invadira a casa, àquela hora? O ponteiro mais curto e o dos minutos assinalavam, um sobre o outro, meia noite no relógio de parede.

Foi então que percebeu o descuido: esquecera de pedir a cópia da chave a quem teve ao lado e, mais do que isso, à mesa e na cama, durante 15 anos. “Que estupidez”, lastimou-se.

Não puseram crias no mundo, fato que, naquele instante, significava um mal a menos. O fim de um amor e o início de uma agonia não devem, afinal de contas, ter partilha, a não ser a dois, entre agentes do mesmo erro.

Sentiu ânsias de vômito diante daquela cena, daquele pranto sem controle, daquele desespero sem consolo. Anteriormente, sentia dó. E adiava o propósito da separação.

Agora, não. Era nojo o que sentia. Percebeu que não seria a força incontrolável de um bem querer o que então impedia o término do relacionamento doentio e sem sentido. Até porque os conflitos sempre aconteceram a dois, com insultos mutuamente ampliados e agravados, dia após dia.

Nunca esteve só nas intermináveis brigas. Assim, não podia compreender aquele choro, aquela resistência de ferro ao afastamento pronto e definitivo.

Foi então que atinou que já esteve, anos atrás, em semelhante posição. Lutava, à sua vez, pelo amor não devidamente correspondido.

Agarrava-se, na ocasião, ao propósito de não trair a promessa feita ao pé do altar: a da união na pobreza e na riqueza, até a separação pela morte.

Trair tamanho compromisso lhe parecia um pecado maior do que o da traição carnal, o cometido em cama alheia. Sim, bem que soube disso. E, é claro, nunca esqueceu do que, por seu turno, também fizera.

Percebeu que a resistência que já foi sua e a daquele farrapo humano que agora lhe violava a casa e o sossego tinham a mesma substância. Resultavam da inadmissão ao fracasso de um projeto de vida, o mais íntimo e pessoal que alguém possa ter.

Seja como for, era chegado o fim. A vizinhança também percebeu isso quando o som de dois tiros varou aquele início de madrugada.

(Mais do que um conto, uma brincadeira endereçada ao amigo Silvio Osias, quando tratávamos, tempo atrás, da linguagem neutra em gênero, coisa pela qual a meninada começava a tomar gosto. Afinal, quem foi para a cadeia, o marido ou a mulher?).

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