Eu gostaria de ter nascido muito antes do momento em que vim ao mundo. Deveria ter vivido a fase adulta durante os anos de 1940 ou 1950, por aí assim, nem muito além nem muito aquém. É dessa época que mais gosto.
Mas longe de mim o propósito de contraditar os desígnios divinos (para os que neles creiam) nem as leis da natureza (para o ateu e o à toa). Aceito meus dias e a eles me adapto, até porque me trouxeram a família que tenho e os amigos que fiz.
Contudo, não deixo de sentir que nasci no ano errado. Daquela temporada na Terra, assim desejada, eu, evidentemente, dispensaria as suas tragédias, a começar pela Segunda Grande Guerra.E aproveitaria, plenamente, os prazeres que por lapso de ocasião a vida me negou.
Como teria sido maravilhoso guiar um Ford 1948, cor preta, com o rádio a me trazer ao coração a melodia e os versos de “Misty”. Mais tarde, eu cantaria ao ouvido daquela menina de pulôver azulado e saia plissada, com a voz de Billy Eckstine: “I get misty just holding your hand”.
Isso, sem o menor desprezo aos ritmos e aos hábitos tropicais. Tudo me aconteceria abaixo da linha do Equador, pois não troco por nada nossos dias ensolarados nem os costumes que por aqui permitem aos recém-conhecidos afagos e apegos de longa data para espanto do resto do mundo. Sobretudo, do mundo onde os invernos esfriam ruas, campos e modos. E onde há censura a um povo que se cumprimenta com abraços e beijos tão logo se conhece.
Gostaria daquele Ford e dos cantores de então com repertórios aos quais não faltassem os daqui. “Marina, você se pintou”, reclamaria Dick Farney, no Cassino da Urca, para onde me levasse um avião da Panair. Ele e Lúcio Alves em busca, ao mesmo tempo, de Tereza da Praia.
Acho que ando no tempo errado porque sinto saudade daquilo que nunca pude adquirir, no momento certo, com dinheiro meu. Vejo pela internet aqueles reclames (era este o nome dado às antigas propagandas) e quase lacrimejo. A frigidaire amarelinha de bordas suaves, arredondadas, menor do que uma dona de casa, sempre me foi um sonho de consumo. Quando tive idade e grana suficientes para comprá-la, dela não mais havia.
Muitas dessas coisas existiram na minha infância e na fase da vida em que as meninas afinam a cintura e os garotos engrossam a voz. Posso dizer, desse modo, que sou do tempo do petisqueiro, do porta-chapéu usado por meu pai e do Cashmere Bouquet na penteadeira da minha mãe. Ali, também, o pó de arroz, o Extrato Royal Briar e a brilhantina Palmolive ou Glostora, estas últimas, também, dos meus usos, a fim de que o penteado me caísse como a James Dean, ou a Elvis, em “Louco por Garotas”.
Tenho estrada, meus companheiros. Vi meu pai com resfriado a aspirar Benzedrina, em cujo anúncio vinha o conselho; “Trate de usar pouco o lenço”.
Tomei meu primeiro porre, aos 10 anos, com Biotônico Fontoura, quando o jingle do rádio proclamava: “Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal”. E quando outro anúncio radiofônico, igualmente cantado, indicava as Pílulas de Vida do Dr. Ross por fazerem bem ao fígado de todos nós.
Por aí, assim, li sem entender o aviso do fabricante da Aspirina: “Se sua mãe estivesse com dor de cabeça naquele dia, você não existiria”. Um achado publicitário até para os dias de hoje.
Vários desses objetos e produtos atravessaram os anos como muitos de nós os atravessamos. O meu e os seus netos tomam Toddy, bebem Coca-Cola e exigem das mães a compra do Leite Moça para os brigadeiros, aqueles docinhos pegajosos, achocolatados.
Não sei se essas coisas têm para eles os sabores e os encantos que já tiveram para o menino que um dia eu fui. Talvez, sim. Não custa imaginar que todas as crianças, seja no tempo que for, pressintam da mesma forma suas vivências. E que as repassarão aos próprios netos com o sentimento que hoje me aperta o peito.
Velhice é fogo. Tenho saudade de tudo. Neste exato momento, sinto falta até da Emulsão de Scott, aquele remedinho dos diabos feito com o óleo de fígado de bacalhau. Por falar nisso, eu soube que ainda existe.
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