TEMPO, ME LEVA, por Frutuoso Chaves

Desembarque de Cabral, de Oscar Pereira da Silva (Wikipedia)

Recife, quase término dos anos de 1950. No pátio do Mercado Público de Coqueiral, domingo de feira livre, tiro do bolso uma nota de cinco cruzeiros novinha, estalando, a fim de pagar por uma vitamina de banana, muito bem achocolatada, no balcão da lanchonete preferida.

Não me incomodará a descrença de alguns nessa história. Sintam-se desculpados, até porque meus três filhos, quando pequenos, nunca acreditaram que a qualquer menino, em qualquer tempo, fosse de bom grado o mínimo desembolso com aquilo que detestavam. Sempre acharam que vitamina em lanchonete fosse invenção minha para fazê-los tomar o que tinham em casa, gratuitamente, antes de irem à escola.

Mas é verdade. Meninos como eu, naqueles dias, pagavam pela mistura de banana, leite gelado e Toddy. É que o espetáculo daquelas paletas girando e triturando tudo já compensava o gasto. Liquidificador, minha gente, ainda era coisa inexistente na maior parte dos lares. Gastávamos, então, com aquilo e com um bolinho de saia, o acompanhamento invariável.

O troco recebido dava para comprar o gibi do Fantasma e ir à matinê do Cine São José contra os propósitos da Tia Marinha disposta a fazer de mim um estudante de Teologia e, quem sabe, um pastor adventista. “Deixa o menino”… É a voz do querido Tio Tito, que agora me chega aos ouvidos.

O dinheiro ora vinha dele, ora atravessava o Agreste da Paraíba e a Zona da Mata de Pernambuco no lombo de um dos trens da Rede Ferroviária do Nordeste, dentro do malote dos Correios. Neste último caso, teria sido despachado em envelope com uma cartinha desde a Padaria de Seu Juca, meu pai, em Pilar, pelas mãos zelosas da minha mãe.

Quantas lembranças me desperta a cédula de Cr$ 5,00 (assim que se escrevia) com a figura no verso do Barão do Rio Branco há pouco por mim encontrada na internet para desassossego da alma. A todos nós, em fase de crescimento, o reverso parecia muito mais interessante, pois continha a reprodução de “A Conquista do Amazonas”, o quadro que Antonio Parreiras compôs, em 1907, com umas indiazinhas tão nuas quanto as de Victor Meirelles, na tela da Primeira Missa.

Aquilo nos encantava como encantados decerto ficaram os conquistadores do Pará e, muitos anos antes deles, os marinheiros de Cabral. Podem duvidar da história da vitamina. Mas não perdoarei os que desconfiarem de Pero Vaz de Caminha.

O cronista do descobrimento, assim tido por muitos, contou a história daquele achamento e daqueles corpos belos de adãos e evas. Mas não contou a qualquer um e, sim, a Dom Manuel I, o rei. Este, sem pestanejar, dispensou os censores e a censura. Fosse Frei Coimbra se queixar ao Papa.

O que escreveu Caminha? Lá vai: “Ali andavam entre eles (os nativos) três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam”.

Também: “Uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura. E certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”.

São trechos da bela e singular certidão de nascimento disto que hoje conhecemos por Brasil. E são, agora mesmo, para este septuagenário, traços de um painel impresso pela saudade, sem roteiro nem ordem, numa nota de Cr$ 5,00. A juventude, o pátio de Coqueiral, cenas da colonização, os gibis, o cinema, tudo isso acondicionado na exígua superfície de uma cédula extinta. Quase esquecia: assim, também, as vitaminas das manhãs de domingo num balcão de lanchonete.

É BOM ESCLARECER
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