Num desses passeios costumeiros pelas trilhas da Internet pus as vistas em resenha antiga do livro “Narrativas Orais no Bairro Vermelho”, uma coletânea de ditos populares organizada pela historiadora Ana Rosa Dias Borges. E ali descobri a origem da expressão “As pregas de Quelé”. Com edição aprovada em edital do MEC e, portanto, com o selo da Funarte, a obra trata, em meio a outros temas, de um dos bairros mais antigos do Crato, município cearense.
Seu Quelé, homem negro, pintor de parede e servente de pedreiro, trajava, fora do trabalho, roupa de linho branco engomada a capricho e com a qual tinha cuidados extremos. Cuidava, por todos os meios, de não amassar aqueles vincos, o que era inevitável dada a necessidade de sentar e levantar, ato imperioso a qualquer ser humano.
Na minha e, certamente, em todas as infâncias desta nação chamada Nordeste, tinham as pregas de Quelé aquelas e aqueles metidos a besta, gente de nariz empinado, afetada, com ar de nobreza. Quem não conheceu tipos assim? E quem não os conhece, hoje em dia, porquanto o deslumbramento e a afetação desse gênero atravessam os séculos?
Seu Quelé e suas pregas advêm de princípios de 1950, informação que me trouxe a resenha do livro surgido da coleta de causos, expressões e ditos por jovens moradores do bairro cratense, a mão de obra inicial de que se valeu Ana Rosa.
Até essa leitura, eu e minha estupidez atribuíamos outro significado ao dito popular. Quelé, nome cuja terminação não permite identificação de gênero, poderia ser homem ou mulher. Mas, em ambos os casos, teriam, ele e ela, certas pregas em comum. Não me ocorria, porém, o que, porventura, com elas houvesse acontecido. Coisa boa, certamente, não era.
Pobre do Seu Quelé. Evidentemente, não merecia o deboche. E disso não seria vítima se a vizinhança, esta sim, não supusesse que o trabalho braçal e a pobreza exigem pouca higiene, mãos sujas e vestes rotas. O defeito estava, sem qualquer dúvida, naqueles que dele se acercavam. Nos despeitados com seus bons modos e seu linho branco.
Assim, peço-lhe perdão por todas as vezes em que vi suas pregas nos presunçosos nossos de cada dia, alguns com postos badalados na literatura, outros na administração pública e outros mais na política.
Também me desculpo com aquela moça a quem, por algum tempo, atribuí o ar indevido de superioridade, a deseducação expressa em respostas sempre monossilábicas, a indisposição para encarar nos olhos o interlocutor, a recusa sumária a qualquer convite. Contaram-me que ela já somava três consultórios psiquiátricos, a fim de se livrar da timidez aguda e renitente.
E, afinal, quem sou eu para julgar alguém? Pareço, no mal sentido, as pregas de Quelé.
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