OS BRUTOS NÃO AMAM, por Frutuoso Chaves

Imagem: Wikimedia Commons/Jornal da USP (fotomontagem de capas de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, por Glauco Umbelino)

Não afirmo que tudo se tenha passado tal e qual. Mas uma coisa eu asseguro: foi assim mesmo, como agora reconto, a história por mim ouvida de um velho amigo no entardecer de Manaíra quando a Lua se erguia do mar no melhor dos seus brilhos.

Nossa conversa servia à análise dos bloqueios de estradas e ao mapeamento dos resultados das urnas. Ele observava, surpreso, os quase 22,8 milhões de votos conferidos pelo Sudeste, no segundo turno, ao Presidente eleito. Em números absolutos, foi cifra maior do que os 22,5 milhões obtidos por Lula no Nordeste, onde o desequilíbrio apenas se deu em termos proporcionais: 69 contra 31 por cento. Mesmo assim, a pior performance do PT na Região desde 2002.

Santa Catarina veio à tona pela preferência invertida: 69,27 a 30,73 em favor do outro. Mas também entrou na conversa em vista da paixão de uma família com sobrenome alemão pelo clima, pelo sotaque, pelos costumes, cheiros e tons nordestinos. Num cenário de divisão absurda e ódio injustificável, espantava-nos o fato de que gente endinheirada de lá provinda pudesse nutrir sentimentos tão bons, tão fortes e tão gratos pela nossa terra e pelo nosso povo.

Começa, agora, então, na essência e com as licenciosidades da crônica, a história por mim ouvida. O casal catarinense de meia idade e sua segunda filha haviam desembarcado, há pouco, em João Pessoa pela quinta vez. Aqui permaneceriam por quatro ou cinco dias em busca da água morna, festas, frutos e quitutes de Tambaú. O pai esperava, ainda, retomar o bate-papo noturno com o jangadeiro de quem se fizera amigo quando da primeira visita à cidade. Colhia, em cada ocasião, histórias do mar, truques para vencer o vento, informes sobre ocorrências de cardumes e sobre o comércio local de peixes. Sempre recompensava o interlocutor com experiências da pesca recreativa em águas profundas e mais frias com barco moderno, luxo a que se pode dar quem tenha amor pelo esporte e saldo bancário igual ao seu. E ambos, prazerosamente, compartilhavam conhecimentos desses dois mundos.

A mãe dispunha-se a buscar autores locais e a encher as malas com objetos do artesanato mais genuíno, panos diversos e roupas confeccionadas com o algodão que, na Paraíba, ao invés de levar tintura, ganha suas cores da Natureza. A graduação em Sociologia, enquanto isso, animava a garota ao estudo dos nossos hábitos e das nossas expressões culturais e artísticas. Ela mal esperava o momento de chegar à fazenda da irmã mais velha, no coração da zona seca, onde seu aprendizado e seu encantamento se completariam.

Meu amigo inteirou-se disso em razão da vizinhança ocasional com aquela família ocupante de apartamento junto ao seu. Conhecia o dono, o paraibano que conquistara o coração da primeira filha. Soube, por este último, que o sogro, a sogra e as duas crias de início não nutriam sentimento diferente daquele que os sulistas expressam contra os nordestinos, notadamente, quando perdem eleições.

Um fato inesperado, ocorrido há quase uma década, mudaria tudo. O moço rumava para o restaurante costumeiro, em Florianópolis, onde concluía o Mestrado em Carcinicultura, providência útil a seu propósito de criar e exportar camarões, quando percebeu o ataque de dois sujeitos a um terceiro que, já caído, recebia chutes. Os gritos por socorro da jovem ao lado o levaram a intervir na briga. Nada pretendia além de acalmar os ânimos até ele próprio ser agredido. Depois de uns bons tabefes, pôs os dois valentões para correr. Teve, depois disso, a companhia para o jantar do casal (primo e prima) por ele socorrido. Ganhou carona até a casa dos parentes que o hospedavam e o convite para conhecer a família da moça com quem casou em pouco tempo.

O Nordeste entrou, assim, com todas as honras e glórias, do mar ao sertão, no coração daquele pessoal. O apartamento em Tambaú, bairro cujo padrão e crescimento a todos surpreendia, passava a abrigar, ocasionalmente, os sogros, a cunhada e eventuais agregados. Assim, também, a casa da fazenda, lugar da predileção daquele projeto de socióloga.

Umas tantas leituras ampliaram o envolvimento da moça com temas díspares que por aqui incluíam a indústria, o consumo, a tecnologia, a modernização, as toadas, a literatura, o folclore e a vaquejada. Sabia do gibão, guarda-peito, perneira e de como o Islam, com escala na Península Ibérica, chegou ao Nordeste nos primeiros momentos da colonização para influências na comida, na arquitetura e na música. Que o dissesse a tríada sertaneja feita de pífano, rabeca e viola. Assim, também, a inscrição nos chapéus dos cangaceiros de símbolos encontrados no Castelo de Alhambra, palácio e fortaleza árabe, a oitava maravilha do mundo. E de como o Azan, o chamado islâmico à oração, deu seus tons guturais ao aboio, o canto de trabalho com o qual o vaqueiro acalma e conduz o gado. Sorvia ela, quase em êxtase, cada um desses conhecimentos.

“Para amar é preciso conhecer. A ignorância não ama, exista onde existir”, observou meu amigo no momento da nossa despedida. Saiu ele em direção ao Shopping Center onde encontraria a mulher e os netos enquanto eu me pus, pensativo e pesaroso, no rumo de casa.

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