ALCUNHA IMPLACÁVEL, por Babyne Gouvêa

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Imagem meramente ilustrativa (Foto: br.freepik.com)

Ele saía todos os domingos, bem cedo, para assistir à missa na capela próxima à sua casa. Nos primeiros sinais do amanhecer, ele se levantava para se vestir num ritmo lento, os seus muitos anos não permitiam movimentos céleres. Tinha o hábito de chegar cedo à capela para assegurar um banco na primeira fila que lhe permitia uma melhor visão do sacerdote.

Não fazia a primeira refeição do dia porque comungava, e a religião católica exigia um jejum de três horas antes de praticar esse rito. Vestia sempre um terno de linho branco com uma flor na lapela, sapatos pretos, chapéu de feltro e uma bengala que lhe dava apoio ao andar.

A caminhada, embora curta para qualquer pedestre, para ele ganhava proporções quilométricas, pela lerdeza de sua locomoção. Com a coordenação motora comprometida, costumava arrastar os sapatos fazendo um ruído bem característico de sola gasta, atraindo a atenção da meninada que no horário de sua passagem já se encontrava fora da cama.

Estava estabelecida a zombaria a ele dirigida. Sem nenhuma noção de respeito aos mais velhos, a criançada apelava para a criatividade em nomes depreciativos jogados na direção do idoso, pois no passado havia sido padeiro e percorria as ruas do bairro empurrando o carrinho e anunciando as suas especialidades:

– PÃO DE BICO! PÃO SUIÇO! PÃO DOCE!

Com o tempo e a impaciência da velhice, anunciava todos de uma só vez:

– PÃO DE BICO, SUIÇO E DOCE!

A soma dos dois últimos pães soava assim, para a molecada, que gritava escondida:

– PÃO DE BICO SUICIDOU-SE!

Isso lhe irritava profundamente! Não suportava a galhofa, e muitas vezes não respondia com educação. Mas, para a sua irritação, o apelido pegou.

Agora já aposentado, ele não dava sinais de reação, seguia o seu itinerário de forma inabalável, muitas vezes procurando equilíbrio na mureta em torno da capela.

Dando sinais ofegantes, ele chegava ao destino dominical, sentava puxando primeiro uma perna da calça e depois a segunda perna, para acomodar de forma confortável o volume do seu corpo. Tirava do bolso da calça o lenço de cambraia branca com as suas iniciais e levava ao rosto e ao pescoço para enxugar o excesso de transpiração que o percurso lhe causava.

Começava a cerimônia eucarística e o seu semblante era de êxtase, tamanho o contentamento de ter conseguido chegar a tempo e de ter conseguido superar as tentativas infantis de lhe atrasar o roteiro. Encerrada a missa, ele fazia o trajeto de volta sob um sol causticante, obrigando-o a fazer diversas paradas para secar com o seu lencinho a sudorese excessiva escorrendo por todo o corpo.

No retorno à casa, fazendo o mesmo circuito, mais uma vez se tornava alvo do escárnio infantil, até que, depois de muitos domingos consecutivos, ao ouvir um certo cognome sendo ecoado em bom som – PÃO DE BICOOO – ele resolveu reagir – É A TUA MÃE!

Recolheu-se, então, em casa. Para sempre.

  • Babyne Gouvêa é biblioteconomista
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