AFLIÇÃO NA SERRA

(Foto: imagem copiada de canaldapeca.com.br)

Junho de 1987. Candidato a presidente da API (Associação Paraibana de Imprensa), no final da tarde de um sábado retornava de Cajazeiras para João Pessoa guiando uma Kombi que me fora cedida por Bené Alves para transporte das minhas comitivas de campanha.

Não voltou comigo o grupo que levei pro Sertão. Tive que vir sozinho para atender a uma urgência familiar. Colegas que me acompanhavam ficaram em Cajazeiras para fruir a noite. Noite que me chegou no céu e no asfalto pouco depois de atravessar a cidade de Pombal.

Tinha pela frente justamente o trecho que mais temia. Medo agravado pelo fato de ‘voltar batendo’. Na época, de Pombal a São Bentinho pelavam-me os 16 km mais despovoados da BR 230 na Paraíba. Nada aconteceu, todavia. Suspirei de alívio quando, adiante, vi as luzes de Condado, a próxima cidade na sequência da volta.

Segui confiante e otimista até a Serra de Santa Luzia, que seria o próximo trecho mais crítico, digamos, para o solitário aqui. Solidão aparente. Vez em quando, olhava pelo retrovisor interno e me batia a sensação de ter ou ver alguém sentado, cochilando, no banco traseiro da Kombi.

Subindo.

Deu ruim na última curva antes de ganhar a chã que conduz a Junco do Seridó. O pneu dianteiro do lado do carona estourou, empurrando-me para o precipício de fundura certamente maior que o batente alto do acostamento estreito, cheio de mato e pedra, daquele pedaço de pista.

Disse pedra? Ainda bem. Uma de porte razoável parou a indomável Kombi para alguém pouco afeito a esse tipo de veículo e acidentes do tipo. Salvação complicada, no entanto. O pneu murcho ficou escorado exatamente na pedra, inviabilizando uso do pequeno macaco disponível.

Depois de descer do carro e constatar a aflitiva situação em que me encontrava, comecei a me apavorar. Até ali, na subida da serra não passara por mim qualquer alma motorizada. Se alguém aparecesse, então, seria para assaltar e até matar, jamais para socorrer.

Apareceu.

Um caminhão parou uns cinco metros atrás. Sem apagar os faróis, o caminhoneiro apeou e veio até onde eu estava. “Eita, difícil, hem?”, diagnosticou aquele homem corpulento após se agachar ao lado do pneu esbagaçado para ver e tentar, talvez, alguma providência.

Pense no ufa! que dei por dentro. Tom de voz e jeito do cidadão tranquilizaram-me no ato. “Tem como me ajudar? Dá nem pra usar o macaco da Kombi. Não vai conseguir subir o tanto que precisa pra tirar a roda”, expliquei. Ele: “Vamos ter que descorar dessa pedra. Pera…”.

João José era o nome do meu salvador, que se apresentou sem que eu perguntasse por sua graça e foi buscar uma corda que amarrou nem sei onde na traseira da Kombi, puxada de volta ao leito da BR rangendo toda a carroceria por força de uma ré curta e ligeira do caminhão. 

“Tem estepe, né?”. Tinha. Meia vida, mas tinha. João José desprezou o macaquinho da Kombi. Usou o dele, um hidráulico, tipo jacaré. Oxe! Mole, mole. Mole até a chave de roda rodar sobre as quinas da última porca sem conseguir afrouxá-la. Só tinha uma maneira…

“Veja aí se encontra alguma moeda ou ruela pequena pra gente fazer um calço”, orientou João José. “Na minha caixa de ferramentas só tem grande”, esclareceu. Bati os bolsos. Nada. Vasculhei o porta-luvas. Nada. Passei a mão pelo assoalho do carro. Nada.

Desesperançado, desolado, já estava para dizer “Amigo, vamos deixar essa Kombi aqui e me dê uma carona até Soledade, que lá eu me viro”. Seria a opção por alternativa que o próprio João José desaconselhara segundos atrás: “Se deixar aqui, passa o ‘dono’ e leva”.

Caí em mim. Não teria como pagar tamanho prejuízo. E Bené? Seria o maior prejudicado, sem dúvida. “Meu Deus, o que faço?”, apelei, no exato instante em que vi um rosário amarrado ao espelho colado ao para-brisa dianteiro. E, pendente num cordão de continhas, uma medalha de Nossa Senhora!

Pronto.

Arranquei a santinha de um puxão e entreguei-a a João José, que tateou a medalha entre o polegar e o indicador e a colocou sob foco de lanterna que lhe iluminava o manejo. “Só tinha ela?”, perguntou. Ao meu ‘sim’, ordenou: “Vamos rezar pra Nossa Senhora de Fátima!”. Obedeci. 

Pneu trocado e calibrado (“pra direção não ficar bamba), tentei pagar o socorro. João José recusou firme o que me restava na carteira. Despedi-me dele e do imenso aperreio sob previdente recomendação de dormir em Campina Grande, onde deveria recompor a rodagem da Kombi.

“Se seguir sem reserva, arrisca não chegar em João Pessoa”, advertiu João José. Não hesitei. Na primeira pousada que encontrei em Campina… Cedo da manhã do dia seguinte, após o café da manhã, fui atrás de borracharia que vendesse um bom seminovo ou recauchutado.

Comprei.

Concluí a viagem, enfim. Mas, antes de entregar a Kombi, resolvi dar-lhe um trato no lava a jato. Tava precisada, realmente. “Eita, mas e o rosário da santinha? O que vou dizer a Bené?”. Decidi contar a verdade e prometer a ele um novinho em folha, com a mesma Nossa Senhora.

Carro lavado e enxaguado, paguei o serviço, entrei no carro e liguei. Antes de engatar a primeira, porém, vi um lavador correndo na minha direção, fazendo gesto de quem me pedia para aguardar. Aguardei. “Olha só o que achei debaixo do tapete, quando fui aspirar”, mostrou, ao chegar.

Sobre a mão espalmada do rapaz, um terço com pingente. Ele deve ter percebido minha cara de surpresa ou choque diante do achado, mas não o arrepio que me deu por todo o corpo quando pôs o rosário em minha mão e informou:

– Também sou devoto de Nossa Senhora de Fátima!

É BOM ESCLARECER
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3 Respostas para AFLIÇÃO NA SERRA

  1. Liberalino escreveu:

    Voce se tornou um devoto da milagrosa SANTA?

  2. Genesio Sousa Neto escreveu:

    Rubão, sempre Rubão. Impecável. Parabéns!