De médico e de louco, todos temos um pouco!
Cresci ouvindo esse ditado popular. Concordo com ele. Tanto que resolvi pô-lo em prática, sendo um pouco de cada coisa. Mas tenho as minhas reticências…
Na pequenina Misericórdia (hoje, a pujante Itaporanga), lá pros anos 1950, 1960, existia um senhor, Zé de Tachinha, que se destacou pela inteligência e brilhantismo intelectual. E também pelo que então nós chamávamos de neura. Pois neuras não lhe faltavam.
Abro um parêntese para explicar que a neura de outrora é o que modernamente recebe a sigla de TOC: transtorno obsessivo compulsivo, entre outros distúrbios psiquiátricos. É um distúrbio de grau variado, desde pequenos incômodos quando vemos alguma coisa assimétrica, desarrumada ou fora do lugar, até atitudes perturbadoras, onde desenvolvemos um pensamento fixo, quando nada nos faz mudar de ideia.
A obsessão de fechar as torneiras, as portas, apagar a luz, dificuldades para sair de casa por dúvidas sequenciadas, por exemplo, podem ser indícios de TOC. Contar compulsivamente tudo o que vê ou faz. Horror de se sujar, de se infectar. A rotina rígida, a obsessão pela arrumação. Tudo isso pode ser sinal de TOC.
Pois bem, Zé de Tachinha era um dos ilustres representantes de uma classe social muito comum nas pequenas cidades: ‘Ô Doido da Cidade’. Embora Misericórdia fosse rica em representantes dessa categoria social. Mas Tachinha era realmente brilhante! Sabia de cor e salteado todas as capitais do mundo, os presidentes dos países. Discorria sobre egiptologia e cultura helênica.
Ele tinha várias neuras. Uma delas: ao caminhar pela cidade, ele sempre seguia rigorosamente o mesmo trajeto. Tinha que dar exatamente o mesmo número de passos; se não, repetia. E só subia uma calçada com o mesmo pé, não trocava. Certa noite, Nonato Pinto de propósito sentou-se no ponto exato em que Zé de Tachinha subia na calçada da praça. Pois ele ficou a noite toda do outro lado da rua esperando que Nonato saísse, para só assim continuar o seu caminho.
Zé de Tachinha sempre começava uma conversa bem aprumada, muito equilibrada. Mas de repente desviava para conversas sem nexo. Certa vez, estava fazendo comentários lúcidos sobre a situação política da cidade. Súbito, disse que havia sido noivo da filha do rei Faruk, do Egito.
Lá em Misericórdia, às épocas da nossa infância e adolescência, havia muitos personagens, como dizer, de pouco juízo (ou, como diria a Dra. Marluce, portadores de uma síndrome mais ou menos frequente: agenesia de juízo). Lembro-me bem de Lídia, Zezinho Doido e Açoite.
Lídia era sempre apaixonada por figuras da cidade. Estava sempre alimentando uma quimera, pedindo para alguém escrever para ela uma carta para algum amor platônico, pois era analfabeta.
Zezinho Doido tinha a sua neura: só entrava numa casa deslizando ao longo da parede, para que ninguém o contornasse. Se alguém, propositalmente ou não, o interrompia, não seria capaz de contorná-lo. E ninguém poderia circundá-lo. Ele acompanhava a pessoa girando frontalmente. Coisas de doidos…
Açoite era notável, uma pessoa muito inteligente. E nômade: conseguia ser doido das cidades de Patos, Piancó e Conceição, além de Misericórdia, uma temporada em cada cidade. Porém doido em todas.
Ele armava uma rede no terraço da Prefeitura, de frente para a Praça João Pessoa, e dava balanços altíssimos, com descidas vertiginosas, impressionando todo mundo. E assobiava girando uma pedra discoide presa a um barbante, cada vez mais próxima à boca em forma de apito. Muitas vezes feria o lábio. Ele dizia que era melhor ser doido em Patos do que prefeito de Piancó! Outra frase célebre de Açoite: “Na Paraíba, pra ser doido tem que ter juízo”.
Não só de doidos vivia Misericórdia. Também era rica em tipos esquisitos. Ou engraçados. Lá morou durante muitos anos Seu Fernão Paes Leme. Trabalhava para o IBGE, acho. Era um homem muito inteligente, muito culto. E não tinha neuras. Era espiritualista, tendo fundado o Primeiro Centro Espírita da cidade.
Certa noite, estava conversando com Nonato Pinto, na Praça João Pessoa, defronte à casa do meu avô, Josué Pedrosa. Falando sobre o tema da conversa, em determinado momento Fernão disse a Nonato: “Nonato, eu tenho esse livro lá no Centro Espírita. Vamos até lá, buscá-lo”. E seguiram os dois conversando avenida Getúlio Vargas acima, até chegarem ao Centro.
A porta da casa dava direto para a calçada. Fernão abriu, escancarou a porta, dizendo para dentro: “Boa noite! Boa noite!”. E foi entrando e chamando Nonato, que foi ficando todo arrepiado enquanto entrava. Fernão disse, então, “Nonato, agradeça os aplausos!”, e acendeu a luz.
Nonato viu que só tinha cadeiras vazias. Desceu a Getúlio Vargas voando!
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Como vocês podem ver, eram muito divertidas as nossas férias!
- José Mário Espínola é Médico e Cronista
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3 Respostas para NÃO ME TOCs (I), por José Mário Espínola
Acho magistral a forma de como o Dr José Mário lida com as palavras e a sua combinação. A respeito de Açoite diz: “passava temporada em todas as cidades, mas, conseguia ser doido em todas.” Genial!
Zé Mário não tinha conhecimento deste seu gôsto por “causos”da nossa querida Misericórdia. Parabéns e com certeza leremos outros. Um fraterno abraço.
Você e Ariano Suassuna teem algo em comum.
Ele com Taperoá e você com Misericórdia .
Parabéns pelo belo texto.