CASSAÇÕES NA UNIVERSIDADE, por Rubens Pinto Lyra

Passeata dos Cem Mil: maior protesto contra a ditadura (Foto: Evandro Teixeira/O Globo, em 26.6.1968, Rio de Janeiro)

A incompreensão do presente decorre, necessariamente, da ignorância do passado (Marc Bloch em Apologie pour l’histoire).

Existe um núcleo duro do bolsonarismo para quem não faz sentido argumentar. Os seus integrantes rejeitam, a priori, qualquer argumentação crítica em relação ao governo Bolsonaro, independentemente de sua consistência ou fragilidade.

O dito acima foi ilustrado pelo comportamento de uma senhora que encontrei na Livraria Leitura, dizendo-se católica e eleitora de Bolsonaro. Para ela, o Papa Francisco, segundo reiterou, não passa de um “comunista”. Exemplo de crassa ignorância, expressa em arraigado maniqueísmo.

Muitos dos que votaram no capitão reformado, porém, não nutrem pelo ex-militar fidelidade incondicional. Nele votaram para Presidente por achar que, a despeito de sua retórica agressiva – e, acreditavam, meramente eleitoreira – era o único, dentre os demais postulantes ao cargo, capaz de combater a corrupção e de enfrentar os desafios da segurança pública.

Boa parte está decepcionada com o “mito”, faltando-lhe, contudo, clareza para compreender a imprescindibilidade da democracia e, simetricamente, o grave retrocesso que representaria a volta da ditadura. Além do mais, muitos deles só conhecem a ponta do iceberg da repressão desencadeada a partir de 1964.

Não foram apenas políticos e integrantes da oposição clandestina que foram objeto da sanha punitiva do regime militar. Poucos sabem, por exemplo, que milhares de militares, somente por não terem concordado com o golpe, foram expulsos das Forças Armadas, compulsoriamente reformados e muitos deles até mesmo torturados.

Daí o interesse em trazer à baila aspectos repressivos do regime que vicejaram no âmbito da sociedade, pouco alardeados, mas que produziram conseqüências graves para as suas vitimas. Estas foram punidas, sem qualquer direito de defesa, tão somente por se reunirem pacificamente e exercitarem a liberdade de expressão criticando o regime militar – direitos humanos fundamentais, dos quais fizeram uso precisamente para garantir sua vigência.

Com efeito, o poder discricionário sem limites, próprio das ditaduras, atribuído aos chefes das Forças Armadas, foi exercido, no Brasil, com toda brutalidade, especialmente a partir da decretação, em dezembro de 1968, do Ato Institucional nº 5.

CASSAÇÕES E SUAS CONSEQUENCIAS

 

Tem gente que só compreende a brasa quando ela entranha nas profundezas da carne (Chico Buarque em Fazenda Modelo)

 

Um dos aspectos menos conhecidos das punições baseadas em atos institucionais foram as “cassações” de estudantes. Quer dizer, o cancelamento das suas matrículas, com a consequente privação do direito dos alunos estudarem durante um determinado período de seu curso.

Posso dizer que analiso essa questão ex cathedra haja vista que fui cassado por duas vezes quando cursava Direito na UFPB, “dose dupla” que poucos estudantes, no Brasil, experimentaram.

Não tenho conhecimento de algum estudo que tenha abordado, mais detalhadamente, esse tema. A questão central dessas punições reside no fato de que elas não têm, a não ser formalmente, cada uma, apenas a duração de um ano, nem elas se limitaram ao direito de estudar.

Esse entendimento se aplica, em toda sua plenitude, à minha segunda cassação, perpetrada com base no AI-5, por ter participado, na condição de Delegado da Faculdade de Direito da UFPB ao XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), de que resultou a maior prisão coletiva do Brasil.

Na verdade, na prática essa cassação durou dez anos, somente cessando os seus efeitos com a revogação, em janeiro de 1979, do AI-5. Nesse período fiquei privado, entre outros direitos, o de ir e vir. Somente consegui viajar para a França, em outubro de 1970, e lá permanecer, por cinco anos, por ter ludibriado os serviços de informação, tendo sido expedido, com base em um endereço falso, o meu passaporte no Recife.

Isso foi possível porque à época não existia Polícia Federal e não havia integração entre os Departamentos de Ordem Social e Política (DOPS) dos Estados, encarregados da vigilância e repressão aos oponentes da ditadura. Tive sorte. No dia seguinte à minha viagem, o Exército foi procurar-me em minha residência. Mas, a essa altura, Inês era morta, já me encontrava na Europa.

Outra consequência deletéria da minha cassação (supostamente só de um ano, e exclusivamente restrita à frequência, em 1969, no curso de Direito) foi a impossibilidade, durante os já referidos dez anos, de ingressar no serviço público.

Aqui na Paraíba, no período de 1976 a 1978, o saudoso Linaldo Cavalcanti, então Reitor da UFPB, tentou três vezes contratar-me, em virtude de, à época, ser um dos raros portadores, no Nordeste, do título de Doutor em Direito. Em vão, pois só poderia fazê-lo com o nihil obstat da Divisão de Segurança da Universidade, onde constavam, na minha ficha, “registros negativos”.

Outras universidades que procurei, como a UFRN e a Universidade de Brasília, manifestaram o desejo de contratar-me. Os tais “registros negativos” as impediram de fazê-lo, todavia.

A RETRATAÇÃO DA UFPB

 

Em tempos de horror, escolhemos monstros para nos proteger (Mia Couto, citando excerto de carta de Álvaro Andrea)

 

Somente com a revogação do AI-5, em 1979, dez anos após ter sido cassado pela segunda vez, em 1969, pude ser contratado por uma universidade pública, a UFPB.

Mesmo a minha contratação para a Universidade Regional do Nordeste (atual Universidade Estadual da Paraíba – URNE), onde “passei uma chuva”, durante três anos e meio (março de 1976 a julho de 1979), enquanto aguardava ser contratado pela UFPB, só foi obtida driblando o seu Setor de Segurança, que tomou conhecimento tardiamente de meu contrato.

Frise-se que isso ocorreu mesmo a URNE não sendo estatal e, portanto, não fazendo parte do serviço público!

Em publicação do ano de 1999, intitulada ‘A retratação da UFPB’, essa instituição reconhece que os estudantes e professores que foram excluídas da vida acadêmica “tiveram suas vidas profissionais e pessoais tremendamente prejudicadas ou simplesmente cruelmente exterminadas”.

No dia 27 de agosto desse mesmo ano, o Conselho Universitário da UFPB, em sessão solene, revogou, mediante a Resolução nº 16/199, “todos os atos punitivos da Reitoria aplicados a alunos e ex-alunos da UFPB, atos esses fundados em legislação de exceção”, conferindo àquela Resolução efeito de “Retratação Institucional”.

A reflexão sobre a extensão dos malefícios da ditadura ganha mais importância quando as nuvens se adensam no horizonte, essencialmente devido ao comportamento golpista do Messias Bolsonaro, que pretende ter sido guindado à Presidência para salvar o país dos corruptos e de uma imaginária “ameaça vermelha”.

O suposto salvador da Pátria vem testando, com cada vez mais ousadia, o grau de resistência e a capacidade das instituições sobreviverem às suas estocadas. Chegou ao ponto, inadmissível para qualquer chefe de Estado, numa democracia, de endossar manifestações que pregam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Mesmo os políticos liberais, que manifestaram até recentemente atitude leniente em face do processo golpista em curso, mostram-se mais decididos, convocando inclusive, a exemplo de FHC, uma ampla aliança dos democratas para barrar as ameaças golpistas.

Resta, contudo, o essencial: cimentar a aliança proposta e tomar iniciativas urgentes, no que se refere à mobilização da sociedade, em defesa do legado democrático herdado da Constituição de 1988. Antes que seja tarde.

Ditadura nunca mais!

  • • Rubens Pinto Lyra é Doutor em Ciência Política e Professor Emérito da UFPB
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