Voltou de surpresa. Parou à beira da estrada no lugar, exatamente, de onde podia de melhor modo observar a cidadezinha espichada no fundo do vale. O rio magro como boi em pasto seco refletia em uns ticos d’água os raios do sol que então quase já se punha.
Visto assim de longe, tudo lhe parecia como antes. A torre da igreja tinha a mesma cor desbotada e as duas linhas de coqueiros ainda emolduravam aquela trilha que tantas vezes o conduzira aos afagos da primeira namorada.
E lá estava ela, a casa esverdeada com pátio de cajus, mangas e umbus, no mesmo sítio que, de um ponto também elevado, se mostrava por inteiro a quem reparasse o outro lado do vale.
Enfim, lá estavam ele, suas emoções, o rio que em tempos de cheia banhava os quintais, as fachadas e telhados de ruas tão conhecidas e, do lado oposto ao seu, no topo daquela colina, o coqueiral e a varanda onde sonhou com o término dos estudos, o primeiro emprego, o altar e a filharada. Tudo, num mesmo quadro, na moldura, agora, do seu coração em brasas.
Enxugou umas poucas lágrimas, recompôs-se, voltou ao carro e desceu em busca da casa paterna onde entraria sem aviso e de onde havia saído, também, de supetão, oito anos atrás. Fizera a viagem desde o Recife por carro alugado em razão do pacote contratado com a agência situada perto do seu endereço, no Canadá, o destino da fuga de oito anos.
Tão longe de casa, trabalhou como um condenado. Ali chegara sem eira nem beira e ali resolvera ficar, depois de comunicar este propósito ao participante da sua expedição turística de quem se fizera mais próximo. Anos seguidos de amargura até a regularização dos papéis e a instalação da pequena empresa por ele criada para o fabrico de bancos de jardins.
Resistiu ao desencanto, à saudade e venceu. Não deixou de pensar, enquanto atravessava o rio pela velha ponte, na inveja que seu êxito causaria às famílias mais abastadas do lugar de suas origens.
Foi Guilherme, um dos amigos de infância, o primeiro a reconhecê-lo, mal estacionou para uma água de coco, antes de cruzar o portão de casa, duas ruas depois. O primeiro e os outros abraços tiveram força e calor à altura das grandes saudades. Demorou-se na pequena lanchonete mais do que deveria e a notícia do seu retorno, endinheirado, chegou aos ouvidos paternos antes dele.
O aborrecimento logo cedeu vez ao alívio. Pensando bem, a surpresa talvez matasse pai e mãe, ambos em idade na qual sempre será prudente se evitar grandes choques. Além disso, o que mais agoniava aqueles dois e, não menos, a irmã cujos filhos ainda não conhecia, era sua demora na lanchonete. Achara pouco o sumiço de oito anos? Já em casa, teve a impressão de que não sobreviveria a tanto chamego do seu pessoal e da vizinhança que dele também se acercava.
Presentes para todo mundo, avisos aos que, porventura, ainda não soubessem do seu regresso e, então, a recomendação a Tereza, dona do salãozinho de festas, para um jantar a capricho, a que não faltassem boa música, bufê bem farto e muita bebida. Ninguém, jamais, em tempo algum, tanto quanto ele, impressionaria aquela cidadezinha. Pelo menos, era este o propósito.
Hora da festa, circulou por todo o ambiente, de mesa em mesa, apertando mãos, ou distribuindo beijos e abraços entre as pessoas mais íntimas. Em nenhum momento, deixou de temer que notassem seu coração aos pinotes, seu olhar na busca ansiosa de quem tanto queria rever.
Já desanimava quando a viu ao fundo, acompanhada dos pais e outros parentes. Risonho, aproximou-se do pequeno grupo. Como a cidade, ela pouco havia mudado. Ali estavam, finalmente, diante de si aqueles cabelos castanhos, a mesma boca e os mesmíssimos olhos. Quantas vezes aquela imagem não lhe aqueceu o peito nas noites canadenses feitas de gelo e de ausências.
Enquanto se erguia para o abraço há tanto esperado, ela apresentou o marido. Sua vista escureceu, o sangue gelou e ele, a fazer das tripas coração, disfarçou o choque o quanto pôde.
Demorou-se na terra natal pouquíssimo tempo. Um avião logo o teve de volta a suas noites geladas. Mas a festa foi motivo da conversa de um povo inteiro por dias e dias. Isso e a história de que alguém o vira, no banheiro, a chorar como um desgraçado.
Antes que eu me esqueça, algumas más línguas também passaram a comentar que a velha empregada da moça cansou de vê-la aos prantos na casinha verde dos pais, templo de tantas memórias.
O REGRESSO, por Frutuoso Chaves
PERIGO E DESCONFORTO, por Sofia Pimentel
Há uma distinção entre estar verdadeiramente em perigo e meramente sentir-se desconfortável, uma distinção que parece ter escapado à consciência das mulheres atualmente. Essa dicotomia é evidenciada na interação entre os participantes Alane e Juninho no Big Brother Brasil 2024. Em meio a uma festa no programa, o motoboy Juninho manifestou interesse sexual pela bailarina Alane. No entanto, Alane expressou desconforto com a abordagem de Juninho e compartilhou o incidente com outros participantes do reality show, posteriormente acusando-o de assédio publicamente.
A partir desse episódio, fica evidente a necessidade de questionar as implicações sociais e políticas da narrativa pública sobre o assédio sexual, que vai alem dos limites do reality show, e ecoa em questões sociais mais amplas, especialmente em meio aos movimentos #MeToo e à pós-revolução sexual. Devemos nos perguntar: até que ponto estamos construindo uma cultura de denúncia saudável e sustentável para as vítimas, em vez de simplesmente amplificar a narrativa do vitimismo? Afinal, o movimento #MeToo, que começou como uma voz contra o assédio, e agora corre o risco de transformar o mero desconforto em uma espécie de passaporte para a vitimização, obscurecendo assim a força de reais vítimas de assédio e agressões sexuais.
O incidente entre Juninho e Alane revela uma faceta crucial do que constitui assédio, destacando a interação entre flertes e comportamento inadequado em ambientes públicos nos dias de hoje. Nesse cenário, surge a necessidade de uma análise sobre a prática contemporânea de expor publicamente acusações sem comprovações – uma dinâmica na qual, confesso, já estive envolvida no passado (tendo sido, de fato, vítima de assédio na minha infância).
Em meio a eventos aparentemente desconexos, surge uma reflexão sobre a interseção entre o #MeToo, a revolução sexual e o Big Brother Brasil 2024. Uma conexão inesperada pode ser vista no destino de Harvey Weinstein, o produtor de cinema em Hollywood condenado por estupro e agressão sexual, após suas vítimas terem compartilhado suas histórias publicamente. Enquanto nos encontrávamos trancados em casa, evitando o contágio da pandemia, as notícias sobre Weinstein e suas vítimas ecoavam nos telejornais, intercaladas com relatos sobre o avanço implacável do vírus. Nesse momento de reclusão, começamos a nos espelhar no #MeToo, um movimento fortemente influenciado por instituições estadunidenses que rapidamente se tornou global.
Diante desse cenário, surge o Big Brother Brasil 2024 como um microcosmo que reflete de forma surpreendente as complexidades do discurso amoroso contemporâneo. O incidente entre Alane e Juninho ecoa as controvérsias pós-Revolução Sexual, onde a busca por empoderamento se mistura perigosamente com a tentação de abraçar uma narrativa já vista antes — “Vamos, galera, mulheres!” A edição número 20 do Big Brother Brasil, que se destacou como um marco para o empoderamento feminino.
Para compreender o atual cenário de regulação excessiva das interações e investidas sexuais, é imprescindível contextualizá-lo no período pós-revolução sexual. O que outrora era celebrado como um símbolo de liberdade, agora parece estagnar em uma apatia contemplativa. A revolução sexual teve impactos diversos, refletindo as particularidades culturais, políticas e sociais de cada sociedade. Nos Estados Unidos, foi impulsionada por movimentos contraculturais, como o movimento hippie, enquanto na Europa, especialmente na França, destacou-se pela liberalização dos costumes e ênfase na expressão individual, como nos protestos estudantis de 1968 em Paris. No Brasil, ocorreu em meio à ditadura militar, influenciada pelo cenário Tropicalista e musical da época.
Em A História da Sexualidade, Foucault argumenta que, após a Revolução Sexual, a sociedade moderna não se tornou mais liberada sexualmente, mas sim mais reguladora e disciplinadora dos comportamentos sexuais. Em vez disso, ele observa que houve uma intensificação do controle sobre os comportamentos sexuais, com a sociedade moderna exercendo uma vigilância mais cuidadosa e uma disciplina mais rigorosa sobre a sexualidade. Foucault sugere que, por trás da aparente liberação sexual, existe uma rede complexa de poder e controle que regula e normaliza os desejos e práticas sexuais, moldando assim a maneira como a sexualidade é vivenciada e compreendida.
A análise desses fenômenos encontra respaldo em obras como “Theory of the Young-Girl”, do escritor francês Tiqqun, que revelam a mercantilização da intimidade e exploram o surgimento de um “Império”. Esse império, por meio de métodos sutis e medidas preventivas, promove a internalização do controle, passando do policiamento geral para um policiamento individual. A invisibilidade da moral e a onipresença desse novo policiamento tornam o movimento castrador indetectável, disseminando restrições na vida cotidiana de maneira sutil. Isso sugere uma mudança do controle social para o autocontrole individual. O movimento #MeToo exemplifica essa dinâmica. A teoria de Tiqqun examina como a cultura contemporânea, impulsionada pelo consumismo e pela constante exposição midiática, transforma as relações interpessoais em transações comerciais, tornando a intimidade comodificada.
Na mesma linha, a autora e crítica cultural Laura Kipnis, em um ensaio para o jornal The Guardian, analisa a carta anti-#MeToo (endossada por Catherine Deneuve) Kipnis destaca não apenas a subestimação da relevância política do movimento, mas também a legítima preocupação com o impacto potencialmente devastador de acusações infundadas. Ao explorar as nuances do backlash contra o movimento, fala-se também sobre o temor subjacente à regulação excessiva das interações sexuais, especialmente nas fronteiras delicadas do flerte e do humor. Nesse contexto, a defesa da autonomia corporal emerge como uma âncora fundamental para a liberdade feminina, resistindo aos séculos de dominação patriarcal.
Diante da interseção complexa entre o movimento #MeToo, a revolução sexual, e o contexto do BBB 24, torna urgente uma reavaliação dos métodos de denúncia e exposição de casos de assédio. Embora o #MeToo tenha erguido questões de indiscutível importância, inadvertidamente atualmente o movimento transmutou o empoderamento feminino em uma espécie de troféu vitimista, transitando de mão em mão em um jogo cujas regras se perdem na neblina, criando um cenário onde a distinção entre danos reais e simples desconfortos emocionais se dissipa em crimes.
Por fim, ao analisar a pós-revolução sexual e sua relação com a contemporaneidade, torna-se evidente uma intensificação do controle sobre a sexualidade, contradizendo a suposta liberação sexual. Como consequência, a situação entre os participantes do BBB 24, também influenciada pelo movimento #MeToo dos Estados Unidos, ressalta a urgência de uma compreensão mais equilibrada sobre sexualidade e consentimento em uma era em que a sociedade parece preferir evitar diálogos diretos, pois há uma crescente tendência de expressar descontentamento por meio de aparições públicas ou gestos heroicos em locais de visibilidade, de forma que a exposição pública se tornou um dos valores sociais mais importantes, onde o desconforto é explorado como oportunidade. No entanto, minha própria experiência me levou a concluir que somente por meio de diálogos mais profundos, honestos e conscientes podemos construir relacionamentos verdadeiramente saudáveis e, consequentemente, uma sociedade mais justa, coesa e equilibrada.