Para começo de conversa, um conselho de amigo. Não tente reproduzir em casa o tempero das ruas. Creia-me, não conseguirá. Digo mais: você nem chegará ao pão na chapa de boteco, aquele das seis da manhã com café pingado, se o preparo acontecer no santo recesso do lar.
Desista. Certos condimentos somente alcançam a plenitude quando feitos de mistérios e riscos, ingredientes geralmente faltosos às panelas domésticas em cozinhas assépticas como salas cirúrgicas.
Um velho amigo definiu à perfeição o sarapatel que lhe ia à boca numa barraca de higiene duvidosa, antes do nascer do sol: “Tem o sabor da emoção”. Com as licenças da juventude, ele havia saído morto de fome daquilo que a minha e a avó de vocês, entre a esconjuração e o sinal da cruz, tratariam por casa de tolerância.
Por falar nisso, aquele sobrado da rua de comércio então vibrante à luz solar, mas um templo noturno da boemia, ganhou seu respeito quando a proprietária insatisfeita com o calote institucionalizado afixou o cartaz na parede: “Proibido o ingresso de cachorro, menor de idade, jornalista e político”.
Como tantas ruas antigas, aqui e lá fora, aquela, de fato, tinha duas caras e duas almas, umas para o sol e outras para a lua. Os de passadas gerações, provadores de seus quitutes, bem o sabem.
Agora, responda, antes que percamos o rumo da conversa: o frango assado em casa tem o mesmo sabor do galeto das esquinas? Duvi-dê-odó, com o perdão dessa outra expressão das avós. E o cachorro-quente doméstico? E o pernil caseiro compara-se ao fatiado num pão francês chapado e oferecido pela garçonete depois da meia-noite e de uns cinco chopes?
Pois é, minhas e meus camaradas. Faltam aos pratos domésticos o molho e o segredo dos bares, lanchonetes e tendas do comércio ambulante. Coxinhas, pastéis, bolinhos de bacalhau, casquinhas de caranguejo, batata frita, ovos cozidos (até eles) têm o santuário das ruas. Sei de muita gente para a qual nem a hotelaria de cinco estrelas consegue reproduzir a contento os pratos e aperitivos típicos das barracas e botequins de pequena grandeza com chapa e fogão ocultos, misteriosos, mal percebidos.
A convocação para reforçar a equipe da Sucursal d’O Globo, no Recife, antes e depois da visita de João Paulo II, obrigou-me a viver de restaurante por duas semanas. Ao cabo da primeira eu já não mais suportava o que me vinha à mesa, apesar do bom e amplo serviço a la carte do então conceituado Pedro I. Fui salvo pelo colega Inaldo Sampaio que me apresentou ao Chambaril de Dona Maria, uma palhoça em terreno baldio próximo da Faculdade de Direito aonde se chegava por um buraco enorme aberto no muro. A superlotação do lugar bem falava daquela mão de fada.
Tempo depois, ao visitar duas antigas vizinhas da minha mãe, moças viajadas com experiências de Ásia e Europa, fui surpreendido com suas boas referências àquele prato. Desculpadas a pose e a afetação que não conseguiam conter quando no trato dessas viagens, espantaram-me ao dar ao ossobuco pernambucano o tempero de um restaurante da Lombardia. Pronto, foi o que me faltava para perceber que as palhoças também podem ter o apego dos esnobes.
Ah, o caldo de camarão da recifense Rua do Riachuelo… Não mais do que um balcãozinho de fórmica embaixo do lance de escada no térreo de um sobrado aos pedaços. No caixa, a mulher com sete meses de barriga. No fogão de uma só boca, às voltas com o caldeirão, o marido recém-demitido em razão do fechamento do Banco do Estado de Pernambuco por obra e graça de Miguel Arraes.
A raiva e o propósito do tiro no governador já haviam sido substituídos pela satisfação daquele moço com a fila enorme na calçada. Funcionava assim: você entrava, comprava dela uma ficha, buscava a cachaça contida em um filtro de barro tendo à mão um copinho de plástico feito para café e, finalmente, o caldo servido por ele em semelhante copo, divinamente saboroso. De quebra, a azeitona num palito e, graciosamente, também, uma fatia de limão. O toque ácido seria o símbolo da superação e da resistência. Afinal, o casal fizera uma limonada do fruto que colhera da sorte madrasta.
Acho que assim tem sido com muitos dos que hoje vivem de pães assados, sarapatéis, caldinhos e petiscos diversos. A vida severina que deles subtraiu o estudo, o bom emprego e a boa sina não impediu que de melhor forma se houvessem com seus fogões e chapas, muitas delas lavadas não se sabe com quais cuidados nem com que frequência. Os sabores incomparáveis que nos oferecem talvez advenham disso: do suor, do esforço e do propósito de servir, no mais das vezes, aos perdidos nas noites.
Seria uma irresponsabilidade afirmar que todos não primam pela limpeza nem pelo bom acondicionamento daquilo que fritam, assam ou aferventam. Ninguém, em seu bom senso, é capaz de tamanho disparate. Há deles muito bem asseados, do mesmo modo como há restaurante bem estabelecido na mira ocasional da Vigilância Sanitária. Quem disso não sabe?
Mas o jovem que um dia eu fui ainda teima, eventualmente, em dar ouvidos à avaliação de um velho companheiro de batente para quem a melhor feijoada seria aquela com ambulância à porta. Eventualmente, repito, pois de uns tempos para cá me tem falado mais alto o septuagenário que agora foge das intoxicações como o diabo da cruz. Ainda bem.
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Uma resposta para O SABOR DO PERIGO, por Frutuoso Chaves
Este texto é ótimo. Lembro de já ter sido publicado por aqui, mas gostei de reler.