A TOALHA XADREZ, por Frutuoso Chaves

Imagem copiada de site comercial sem identificação de autoria

Havia duas ou três de linho branco com bordados manuais e espaçozinhos vazados a ponto de permitirem a visão do tampo da mesa em seu melhor verniz. Eram as meninas dos olhos de dona Vininha. Mas eu gostava mesmo era daquela com desenho de xadrez, em vermelho e branco. Tinha essa última, sem dúvida, as cores e o clima das festas de dezembro.

Mais do que isso, tinha as frequências dos fins de semana e, portanto, o valor das grandes afeições. Eu e minhas saudades hoje fazemos dela um signo de honra à família reunida em torno da mesa farta. Pai, mãe, irmãos, primos e amigos eventuais à espera daquilo surgido das panelas caseiras, ou do forno da padaria, ali perto, para o conforto das barrigas e dos espíritos.

O septuagenário que hoje sou não consegue lembrar da sala de jantar que teve na infância sem a cristaleira com três gavetas e três portas, a pequena geladeira ao lado, a velha máquina de costura do lado oposto e a janela aberta para o quintal, bem defronte à pequena cisterna. Nesse quadro nunca faltam a mesa comprida e a toalha xadrez onde apoiei os cotovelos de menino.

Com a palavra a psicanálise. Por que diabo essa obsessão por uma toalha de mesa? Antes que a resposta especializada me chegue, tento eu mesmo encontrar a explicação. Talvez isso decorra do encanto com piqueniques nas fitas de romance produzidas com água e açúcar por Hollywood. É possível que advenha daquelas cenas de cinema sob um carvalho frondoso em dias de primavera, posto que aos amantes não cabe, de melhor modo, outra estação.

O galã e a mocinha descem das bicicletas, retiram do bagageiro a cesta com frutas, bolos, queijos e sucos e, então, debaixo daquela sombra, antes de planos futuros e juras de amor, estendem a toalha da minha mãe. É bem possível que isso tenha impresso aquela trama de fios vermelhos e brancos nas lembranças que até hoje cultivo.

Mas também me ocorre a possibilidade de que essas memórias persistam em razão daquelas propagandas dos anos de 1950 até meados dos 60. Nelas, a frigidaire de cantos arredondados, a batedeira de bolo, o liquidificador com copo de vidro, sonhos de consumo daquelas donas de casa, em muito preenchem o cenário das salas de antigamente com mesas de toalha xadrez. Pode vir de tudo isso esse meu envolvimento. E da vida mais fácil e próspera com as coisas nos eixos, com gente por todos os lados bem vestida, risonha e feliz.

O design de eletrodomésticos, móveis e carros daqueles tempos nunca deixou de me encantar. Para mim, nada se compara aos traços de uma geladeira antiga, arredondada, amarelinha, menor do que sua dona. E o que dizer de um Studebaker, zerinho, modelo 1950?

Por serem parte da minha e de tantas outras juventudes, não acho que desvio o rumo da conversa ao observar que ainda me ficaram na cabeça – sem que hoje minhas cautelas e sensatez os tolerem – os velhos reclames no rádio, revistas e jornais de papel e tinta.

Exibiam-se em quase todos eles os maridos pontuais e provedores, as mulheres gratas e servis e a criançada com papéis preestabelecidos: o que é de menino é de menino e o que é de menina é de menina. O trenzinho, a bola, a arminha (politicamente correta), a boneca, a casinha de madeira e as minicozinhas tinham, assim, endereços definitivos.

A propósito, lembro de uma velha propaganda de café em que uma esposa de bruços no colo do marido tomava palmadas no bumbum por haver comprado a marca errada. “Você sabe qual é a hora de servir uma boa feijoada? Qualquer hora”, sentenciava outra propaganda empenhada, neste caso, em convencer as donas de casa do poder da conservação de alimentos na geladeira recém-lançada no mercado. Vá eu hoje dizer à Patroa que o trabalho mais duro torna mais bela a mulher, ou fazê-la aceitar que o mundo é dos homens por mais que me caia bem a gravata nova.

A toalha xadrez, coitada, estava em muitas daquelas peças. Elas me reforçam a percepção da fatia dominante de machos na produção e direção da publicidade desde seus primórdios. Aos que disso duvidam, sugiro a leitura de pesquisas sobre a participação feminina nas agências do ramo. Uma delas me diz que as mulheres agora compõem metade do quadro geral de funcionários. Na área de criação, porém, não vão muito além de 25%. Mas até que podem cantar vitória, pois ali tinham atuação próxima do zero, anos atrás.

Devagar em alguns setores e com maior pressa em outros, o tempo, felizmente, modifica usos e hábitos. A divisão de tarefas, dentro e fora do lar, tem refeito a relação macho/fêmea. Há as que hoje ainda reclamam dos afazeres domésticos depois de um dia exaustivo no escritório, no consultório, ou na loja. Contudo, os atuais maridos, em número crescente, já podem fazer o mesmo diante da pia.

Então, me ocorre a ideia: vou promover reunião, aqui em casa, com as mulheres da família (noras e sobrinhas) para um bate-papo sobre os reclames do rádio, da tevê, das revistas e jornais de antigamente. E, é claro, sobre a eternização das toalhas em padrão xadrez que ainda vejo a três por quatro, sem o mesmo encantamento, nas salas de jantar onde piso.

Noto, sem que me matem a saudade, que elas persistem onde se cubram mesas em todas as direções da Rosa dos Ventos, de Moscou a Nova York, de Piripiri a São José da Lagoa Tapada. Assim mesmo, no mundo inteiro. Eu compro a pizza. Quem lava os pratos?

VOU FAZER SIM, por Frutuoso Chaves

Raspadinha (Imagem YouTube)

Vi na internet e juro como vou fazer. É assim: ponha gelo no liquidificador e o triture o quanto possa. Despeje-o num copo e jogue por cima a essência preferida. Li que isso fica bom com um desses envelopes de refresco em pó. É preciso que o xarope seja muito forte e doce, pois vai encharcar o gelo e ser por ele diluído.

Repito: vou fazer, sim. Até porque, de uns tempos para cá, tenho perseguido as cores, cheiros e sabores da minha infância, coisas de cuja falta me ressinto, mais e mais, a cada amanhecer. Será sempre assim com quem envelhece? O avanço dos anos nos idiotizam a ponto de buscar sopros do passado, como quem busca o rejuvenescimento?

Sei lá. Mas sei que posso muito bem experimentar futilidades como a raspadinha. Basta mandar ao diabo que os leve os riscos das doenças típicas da idade, a diabetes entre elas. Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Não é, Fernando Pessoa?

Ah, a raspadinha… Ninguém, para mim, a fez tão bem quanto o Compadre Ramos. Não que eu, um menino de nove ou dez anos, tivesse idade suficiente para o compadrio naquele Pilar da segunda metade de 1950. O tratamento por mim dispensado àquele senhor de voz e gestos calmos advinha dos tratos de meus pais que lhe apadrinharam a filha caçula. Eu e meus irmãos incorporávamos os “compadres” e as “comadres” na relação com os adultos por supor que isso fizesse parte dos nomes com que teriam ido à pia batismal, porquanto eram assim referidos por Seu Juca e Dona Vininha.

O carrinho com barras de gelo, raspador de metal e garrafas de conteúdo amarelo, roxo ou vermelho vivo instalava-se bem em frente à nossa Padaria. Moeda disposta por minha mãe ao que bem desejasse, lá ia eu para os sabores de framboesa, cereja, morango e frutas outras originárias de terras distantes, porém armazenadas, ali, em pequenos frascos, na minha calçada, ao bel prazer de gente grande e pequena. “Isso é tinta. Faz mal”, reclamava Dona Vininha, mal percebendo a inutilidade do conselho.

Ninguém, evidentemente, me tiraria da cabeça a confiança cega em que estava mesmo a provar delícias comuns à vida de famílias da Europa ou Estados Unidos, conforme eu podia depreender dos personagens que me traziam a leitura de alguns gibis e os filmes do cineminha de Seu Zé Ribeiro. O fato é que eu sorvia aquilo com o prazer de quem desfruta das grandes e raras oportunidades.

Vou fazer, sim. Quem sabe, mesmo por um breve momento, venha a ter o espírito em festa.

ENTRE O AMOR E O ÓDIO, por Frutuoso Chaves

Procissão de Nossa Senhora das Neves. Foto publicada no Facebook por Daniel Silva Fernandes. Sem data, sem autoria

Para o bem, ou para o mal, nada nem ninguém detém a unanimidade das opiniões. Sempre haverá quem queira e não queira, quem goste e não goste. É assim, sem escapatória, com tudo aquilo nos envolve, emociona e acalenta. Lembra daquela pessoinha por quem você se apaixonou aos 15 anos, aquele docinho de coco? Pois bem, revire a memória e você encontrará quem a tinha por xaroposa e sem graça. O poema que sua alma declama, a canção das canções, o perfume indispensável? Não se iluda: muitos não perderão um segundo com isso.

Este 5 de agosto, fim da programação de mais um aniversário de João Pessoa e da celebração à Santa a quem a cidade tomou para a bênção e proteção, remete-me aos antigos bazares, pavilhões, parques e novenas da Festa das Neves, coisas entre o amor e o ódio, evento que muita gente abominou e ainda abomina, no que pese o encantamento de sucessivas gerações.

Pessoalmente, gostei muito de tudo aquilo que vi, pela primeira vez, em princípios de 1960, no pátio da Catedral, ao longo da General Osório e circunvizinhanças. Até porque os brinquedos, o vai e vem das pessoas e o culto religioso a cargo, um por noite, de nomes do comércio, da indústria ou de órgãos classistas, lembravam-me das festas do interior, quando em menor escala as ruas da minha cidade se embandeiravam, disparavam girândolas, acordavam com bandas e dobrados e adormeciam com retretas.

Décadas antes de mim, o saudoso Mário Moacyr Porto, homem com passagens admiráveis pelo mundo jurídico, acadêmico e empresarial, tomava-se de amores pela Festa das Neves. Disse-me ele em entrevista para a extinta “A Carta”, a revista do não menos saudoso Josélio Gondim:

“Quando eu tinha 15 anos e morava em João Pessoa, as mulheres, as casadas e as mais jovens, desfilavam muito elegantes, todas com chapéus, na antiga Rua Nova (a General Osório de hoje). Era tempo da Festa e dos jornais de estudantes”.

Ele, que já fora reitor da UFPB, desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba e dirigente da Mineradora Tomás Salustino, no Rio Grande do Norte, falava-me, na ocasião, com a alma de adolescente. E me contava, assim, da primeira desilusão amorosa. Desprezado pela moça que o enfeitiçava, foi até o poeta Américo Falcão, então diretor da Biblioteca Pública, em busca da vingança. Queria uns versos a serem publicados como se fossem seus. Algo que começasse assim: “Não estou ligando importância a quem não gosta de mim”.

“Veja só a minha desonestidade intelectual”, comentou comigo, às gargalhadas. O despeito em sua manifestação mais ridícula, como definiu a própria reação, não impediu que fosse atendido pelo poeta. E foi isto o que o jornalzinho trouxe para o público da festa: “Um trovador que padece/disse numa trova dolente:/a gente nunca esquece de quem se esquece da gente./Não creio em tal e ofereço/esta verdade sem fim:/o mais depressa me esqueço/de quem se esquece de mim”.

Mas é preciso dizer que os jornaizinhos de festa não atendiam, unicamente, a propósitos tão cândidos. Também podiam servir ao deboche de figuras públicas. O mesmo Mário narrou este episódio: “Havia um delegado pequenino que não largava um charuto enorme, razão da zombaria popular. Lá vem um charuto fumando o doutor Péricles, dizia-se”. E o jornal de estudantes publicou: “O dr. Péricles de Melo/bacharel Jeca Tatu/quando é tu escreve vós/e quando é voz escreve tu”.

O homem assim insultado foi até a Gráfica de “A União”, que imprimia o jornalzinho, em busca do autor da desfeita. Abelardo Pessoa, sobrinho do presidente João Pessoa, levou a culpa sem merecê-la. Mas a importância do nome fez o homem sossegar e dar o caso por encerrado.

Surpreendi-me quando, ainda muito novo, comecei a ler acerca da insatisfação de motoristas, moradores, donos de lojas e escritórios com locomoção e negócios prejudicados pelo bloqueio de ruas onde instalavam-se, por dias a fio, os pavilhões, bazares e brinquedos da Festa das Neves longe da unanimidade, até ela, como logo percebi.

A percepção seria reforçada com a leitura, tempo depois, de “Reminiscências de viagens e permanência no Brasil”. Mas, nesse caso, o missionário americano Daniel Parish Kidder, autor desse livro, detestou a cidade quase inteira. O “quase” fica por conta de uma exceção: a paisagem descortinada da chácara do habitante de origem inglesa do qual o atual bairro do Roger tomou o nome.

Kidder chegou a recomendar o uso de mosteiros e conventos católicos aqui existentes como espaços de melhor proveito para o povo. Que servissem a escolas, por exemplo. A insuficiência de estradas e o fabrico e consumo de cachaça, evidentemente, não escapariam de suas críticas por volta de 1840, quando aqui esteve. O moço falava, na época, de uma cidade com cerca de 2 mil casas e 9 mil habitantes.

Desembarcado das asas da Sociedade Bíblica Americana, o homem que vendeu Bíblias em muitas partes do Brasil e, assim, teve papel destacado nos primórdios do protestantismo brasileiro, não pouparia, é claro, a Festa das Neves cuja versão, em muito hoje modificada, agora se finda.

Escreveu Kidder: “Terminada a novena, todo o povo acorria ao campo para apreciar os fogos de artifício que se queimavam desde as nove horas até depois da meia-noite. Os que tivemos ocasião de ver eram muito mal feitos. Não obstante, o povo se pasmava e aplaudia freneticamente. Se se tratasse de divertimento para africanos ignorantes, seriam mais compreensíveis essas funções. Mas como parte de festejos religiosos celebrados em dia santificado e com a presença entusiástica de padres, monges e do povo, temos que confessar, francamente, que nos chocaram bastante e teria sido melhor que não os tivéssemos presenciado”.

Pois é, há quem goste e não goste, quem queira e não queira. Eu e você, com tudo aquilo que fazemos ou desejamos, sempre desagradaremos a alguém. E que assim seja. Perguntemos sobre a necessidade da concordância absoluta àquele jornalista e dramaturgo pernambucano para quem toda unanimidade é burra. Também, a quem escreveu, muito apropriadamente, que a unanimidade somente existiria com a fé dos cegos e o silêncio dos críticos.

UM EXEMPLO CHAMADO WELLINGTON FARIAS, por Francisco Barreto

Jornalista Wellington Farias (Foto: Polêmica Paraíba)

Num dia qualquer no Jardim das Laranjeiras, flagrei num momento de descanso um jovem trabalhador que suspirava acordes no seu violão. Perguntei: “Dedilhando Bach?”. Ele respondeu: “É o Ponteio da Bachiana Número Sete de Villa Lobos”. E arrematou: “Primeiro Movimento”. Disse-me de um jeito como quem provavelmente reconhecia a minha surpresa. Continuou a tocar, dominando as cordas do violão com visível maestria, muito distante daquela condição de trabalhador braçal. Fiquei perplexo.

Este episódio me levou direto a contemplar a delicadeza e o elevado espirito de Wellington Farias, Leto, autor desta façanha incomparável. Fora ele o competente Mestre daquele garoto e de muitos outros jovens adolescentes da cidade de Serraria. Fiquei admirado, compreendi o que poucos sabiam: a enorme e desconhecida grandeza do Mestre Leto como um gentil e sensível artista esculpindo na alma e no coração de jovens pobres o cultivo da erudição musical de um Heitor Villa-Lobos.

Levar humildes jovens do roço da terra a dedilhar peças musicais nobres enveredando pelo violão clássico e conseguir deles o domínio do instrumento musical é uma tarefa de um ser superior. Os ensinamentos de Wellington Farias demandavam certamente um abnegado esforço e paciência contínua ao lapidar os jovens para que evoluíssem para uma base musical, do “rés do chão” a leitores ágeis do ouvido à partituras musicais.

Durante anos, Leto foi um formidável e dedicado Mestre, destinando incontáveis noites ao aprendizado de corações e mentes para longe da escuridão. Fez isto de moto próprio e nunca contou com apoios públicos ou privados nessa franciscana missão. Conseguiu o impossível. Criou um grupo concertista de jovens violonistas oriundos de população pobre e rural. Iluminou Serraria tão hostil à cultura e à educação. Que magistral exemplo de uma nobre consciência com a sua incógnita escola de música!

Welington Farias não foi apenas um Mestre musicista que se distinguiu durante anos um leitor empedernido de todos os gêneros de literatura e mais tornou-se um jornalista com refinado e preciso estilo critico ao se debruçar sobre pautas sociais, políticas e culturais na imprensa escrita, radiofônica e mais recentemente no universo virtual.

Leto tem um caráter respeitável aliado a uma humildade franciscana. Profissional jornalista louvado pelos seus contemporâneos que sempre lhe destinaram distinguidas reverências pela simplicidade e a coragem com que enfrentou todos os embates de modo destemido. Sempre no front das missões jornalísticas nunca hesitou fazer de peito aberto entrevistas com distinguidos ícones da política brasileira e local, do mundo cultural e artístico.

Com fervor e espírito arrebatado, encarou seu papel na imprensa derramando as suas emoções e opiniões com a verdade e a coragem de um pequeno grande homem. Com a sua arguta e buliçosa inteligência, no rastro de sua consciência de seus limites culturais e intelectuais de um menino de interior, sempre se submeteu a exitosas conquistas, e por consequência, do alto de sua humildade e destemor é respeitado por seu desempenho como homem de imprensa.

Seus limites interioranos todos foram superados quando demonstrou que a prática é o critério da verdade e isto lhe credita enorme respeito. Welington foi enormemente penalizado pela geografia de sua origem, mas seguiu ao pé da letra o ensinamento de Goethe. Soube se limitar para crescer. Ademais, sempre teve postura ética e moral, não deixando se seduzir pelas embriagantes e ilusórias luzes e benesses do poder. Comportamento raro no meio profissional em que milita.

Pobre e obscura Serraria, que nunca lhe destinou a menor das honrarias ao seu ilustre e (di)Leto filho. Parafraseando Bertolt Brecht, diria: “Há homens que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Leto é um desses. Pobres e medíocres são os serrarienses que nunca o distinguiram. Sempre teve uma desmedida paixão pela sua imerecida terra.

Hoje, vivo e audaz, encara com rara coragem enfrenta o duro desafio que a vida lhe impõe. Ao lado de sua preciosa família e de seus amigos, com os pés e as mãos numa luta sem tréguas se mantem incólume fisicamente sem renunciar a sua já e amplamente reconhecida coragem e vontade férrea de louvar a vida. Ele é exemplo formidável de ser humano que encanta a todos que o estimam e o conhecem.

Bravo, amigo Leto!

O BODE CHEIROSO, por Frutuoso Chaves

O Bode, já famoso, em pose para O Cruzeiro

Conheci o Bode Cheiroso quando eu mal havia chegado ao Recife, pelas mãos da Tia Mariinha, para os estudos primários na Escola Adventista. Primeiro, pelo fedor com que ele já se anunciava aos espíritos desprevenidos à distância de centenas de metros.

Chegávamos, a pé, eu e a Prima Cleide, ao pátio da Estação de Trem de Coqueiral, quando o mau cheiro me veio às ventas com o efeito de um tabefe. Minha companheira de escola e caminhada tapou o nariz, olhou-me com uma cara engraçada e, antes que eu dissesse “não fui eu”, gritou para mim: “Corre que lá vem o Bode!”. Saiu na frente enquanto eu a perseguia.

Três ou quatro dias depois, o mesmo cheiro dos infernos, desta vez, porém, à saída da aula, sem que nenhum de nós atinássemos para a direção de onde provinha, espalhado que estava por todo canto. Os alunos da Professora Lúcia, às gargalhadas, repetiam o aviso: “Lá vem Cheiroso!”.

E assim foi até o dia em que eu, desasnado o suficiente para ir à Escola sozinho, decidi aguardar na esquina a passagem do bicho. Não há exagero na afirmativa de que a aparência lhe fazia justiça à catinga. Grande, peludo e sujo, percorria o bairro inteiro sem que ninguém o molestasse.

As histórias a seu respeito me chegaram aos poucos. Disseram-me que Cheiroso roubava bananas no Mercado Público antes que os vendedores tivessem tempo de recolhê-las e que ganhava comida em bares, padarias e lanchonetes de comerciantes esperançosos de que dali saísse o mais rapidamente possível.

No início dos anos de 1960, de volta à Paraíba, eu soube que Cheiroso obtivera a maior votação para a Câmara dos Vereadores de Jaboatão dos Guararapes, na Área Metropolitana do Recife. E que, desde então, os vendedores de banana, por deboche, anotavam na caderneta de fiados aquilo que o bicho consumia e remetiam a conta ao Erário Municipal. Eram assuntos dos quais me dava notícia a Rádio Jornal do Commercio, aquela que falava para o Mundo.

Debochado, o povaréu também comentava que o Bode fora o único político a escapar das cassações promovidas pelo Golpe Militar de 64, em Jaboatão dos Guararapes, cidade que a verve popular apelidava de “Moscouzinho”. Poucos souberam do dono do Bode Cheiroso, um policial militar, nem, muito menos, a idade com que morreu.

Por falar nisso, teve uma morte trágica. Foi atropelado pelo trem da madrugada, em princípios de 1970. Houve quem propusesse cadeia para o maquinista, luto oficial por três dias, bandeiras a meio mastro e ponto facultativo no dia do enterro.

Ah, sim. O bicho também foi homenageado com um coco composto e gravado por Alventino Cavalcante. Eis o refrão: “Olha, como é que pode/ me diga, doutor/ o diabo do bode ser vereador”.

De uns tempos para cá, eu passei a lembrar, com certa frequência, do Bode Cheiroso. Talvez, porque, às vezes, um tanto invejoso, deseje sua vida sem dono, despesas nem amarras. Se eu pudesse assim viver, me permitiria uma única concessão: a do banho.