Li em algum lugar que o nosso passado é do tamanho das nossas memórias.
Isso me marcou. Sempre que posso, fecho os olhos e tento lembrar de tudo que vivi, desde que nasci até hoje. Normalmente, meu catálogo de lembranças costuma se esgotar antes de completar uma hora de “exercício” e sempre me prometo que na próxima tentativa conseguirei fazer os meus 50 anos, vividos dia após dia, caberem ao menos no tamanho de um dia inteiro.
Vinha assim de tentativa em tentativa até que, numa dessas coincidências da vida, Sofia começou a estagiar num escritório localizado na rua da casa de Vovó Naninha. Há dias procurava a casa quando levava e trazia Sofia do estágio, mas meu olhar não conseguia ultrapassar a altura dos muros que tanto cresceram nas últimas décadas. A outrora residencial rua Chica Moura está quase irreconhecível.
Eis que, num dia feliz, pude achar a casa da minha infância de portões abertos, transformada num restaurante de comida a quilo (foto). Não hesitei. Entrei, subi a pequena rampa vermelha, olhei para o lado à procura do roseiral do jardim da frente. Nada. Atravessei o terraço onde brincava com meus primos e de relance, encostada na grade dos fundos, me vi numa rede, brincando de balançar.
Saí da rede, arrastei uma almofada, a joguei no chão e virei as pernas para cima, encostando-as na parede. Era o meu jeito de “fazer a estrela” nunca finalizada na ginástica rítmica da escola. Prossegui, e me vi dentro da sala. Imagino a cena para os que estavam fora de mim: eu ali parada aos 50 anos, em pé e com a boca aberta, tendo os olhos marejados de água, fixando-me em cada detalhe do ambiente.
O ladrilho hidráulico verde, marrom e vermelho ainda toma conta de todo o piso. No lugar das mesas do restaurante, eu via o sofá, a mesa de canto com o lindo abajur em forma de busto de mulher, o móvel da TV de tubo encostado no canto lateral e, na tela, o Scooby-Doo passeando displicentemente numa caverna com o Salsicha.
Eu ali sentada na frente da TV almoçando para ir à escola, com o uniforme de vestido colorido por cima da camisa branca, estojo de madeira e livros encapados com um cheiro único. Na lancheira, suco de laranja na garrafa térmica e biscoito com goiabada. Nessa mesma sala, um boneco Pinóquio andava sozinho e no chão havia uma radiola azul de criança.
Na segunda sala, o buffet do restaurante com os clientes se servindo estavam desfocados, mas eu via perfeitamente a estante escura na parede dos fundos, um cantinho do telefone quase sempre com cadeado e a mesa oval de jantar. Do lado esquerdo, as portas dos três quartos estavam fechadas, mas mesmo assim eu entrei no quarto da frente, o principal, o mais gostoso, onde vovó nos colocava para dormir com os lençóis mais cheirosos deste mundo, não sem antes passar um paninho molhado em nossos pés e nos brindar com um copo de chocolate batido.
O segundo quarto, com sua penteadeira e um talco rosa super chique fazendo parelha com o perfume da Avon no frasco de vidro grosso em alto relevo. Do lado oposto, os basculantes de onde, segundo contavam, o já falecido vovô Plácido apreciava em segredo as serenatas oferecidas às suas filhas pelos pretendentes.
O terceiro quarto, mais escuro, com aquele armário imenso onde estavam guardadas as roupas do vovô e, pasmem, um retrato dele deitado no caixão. Por ali eu me vi passar correndo, com as pernas bambas de tanto medo, pulando o aparelho de banho de luz que deixava o ambiente todo vermelho enquanto aquecia as costas de alguém.
Mais na frente, por trás do buffet do restaurante, digo, da estante escura, vi o corredor que dá para a cozinha. O atual freezer branco dava lugar, em mim, ao móvel baixo que servia de dispensa, e o mais importante, abrigava o pote redondo lilás de biscoito que a gente tanto amava.
Bem naquele corredor, do lado direito, a porta do banheiro. E que banheiro enorme! A banheira branca continua lá, cheia de troços dentro, mas não importa porque para mim era dia de alegria: vovó havia me permitido tomar banho naquela piscina! Olhando para a pia, acho que vi um copo de água com uma dentadura dentro.
Um pouco adiante, a cozinha, a geladeira, o fogão com o bule de leite cheio de nata, o cheiro de pão assado com manteiga, o café esfriando no pires para ser tomado de biquinho, a mesa no terraço dos fundos, o cheiro de creolina na tampa da fossa, a lavanderia, o quintal, o muro da imensa casa vizinha, de Seu Cartaxo, o quartinho dos fundos e os becos laterais sem fim onde os netos tanto brincavam, hoje do tamanho de nada.
Saí do restaurante, recuperei o fôlego no carro que estava estacionado na porta da casa da frente, a de Seu Antônio, e voltei a entrar na casa de vovó para explicar ao dono o que me fez parar e permanecer estática no meio do salão do seu restaurante. Devidamente compreendida, segui, agradecida.
Isso foi na terça-feira passada, mas há uma semana meu catálogo vem sendo abastecido de lembranças em série! Elas estão brotando sem parar na minha mente! Hoje, por exemplo, lembrei que pedi a Vovó Naninha para nunca aparecer “em alma” para mim e também para dar esse mesmo recado a todos os meus conhecidos que ela porventura encontrasse do “lado de lá”.
Quanta inocência a minha, Vovó! Naquele tempo eu achava que existia isso de morar do “lado de lá” e de precisar vir ao “lado de cá” para conversar, mas hoje eu sei que quem a gente ama mora eternamente dentro do nosso coração!
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