AVÓS SÃO FEITAS DE AÇÚCAR, por Frutuoso Chaves

Imagem: Manaus Sorriso/Facebook

Duas avós num mesmo trecho de calçada. Quantos meninos tiveram essa boa sorte? Quantos desfrutaram do carinho simultâneo daquelas que embalaram com o mesmo desvelo as próprias crias e os rebentos que estas trouxeram ao mundo?

Tive tal ventura ao alcance de poucos passos. Cinco casas interpunham-se entre a da Vó Amélia, mãe da minha mãe, e a da Vó Sole, como resumíamos a doce Soledade, de quem meu pai nasceu. De uma, os melhores suspiros da minha vida, crocantes, com cheiro e gosto de limão. E com um mel que escorria do miolo ao derreterem na boca. Da outra, os pirulitos de maracujá tão deliciosos que a mera lembrança aplaca os males da idade que hoje tenho. Retirar da memória aquelas balas parecidas com guarda-chuvas fechados já suaviza meus contratempos.

As avós, sem dúvida, são feitas de açúcar. Pelo menos, a que tivemos eu, meus irmãos e primos a poucos metros uma da outra na Juripiranga da nossa infância. Eu recebia cada cota de doces e afagos com a impressão de ser o neto favorito, de merecer a preferência daqueles corações grandes o suficiente, todavia, para nosso indistinto abrigo. Percebi, com o tempo, que aquelas duas nos tomavam nos braços de igual modo enquanto alimentávamos, cada um por si, a ilusão da exclusividade.

Os pirulitos da Dona Sole tinham clientela muito mais vasta. Não serviam apenas para adoçar a existência dos filhos e filhas daqueles e daquelas que dera à luz. Também ganhavam as ruas em tábuas com mais de cem furinhos para a venda por meninotes escolhidos a dedo. Ora elevados acima da cabeça por cabos tão compridos quando os das vassouras, ora conduzidos à altura do umbigo por força de uma alça atada ao pescoço dos vendedores, esses tabuleiros percorriam a cidade com paradas em pátios de escola, na porta do cineminha e em volta do mercado público. Retornavam quase sempre vazios à cozinha de onde haviam saído com um pirulito em cada furo.

Mais do que os ganhos resultantes dessas vendas, Vó Sole se alegrava com o pagamento àqueles meninos. Sabia que o dinheirinho por eles então obtido ajudava no sustento das casas pobres. E resistia aos apelos do marido, dono de padaria, e dos seis filhos (duas mulheres e quatro homens) para interromper a trabalheira. “Paro não. Não sou de ficar sem fazer nada”. Quantas vezes não ouvimos dela essa resposta.

Foi-se muito cedo, com pouco mais de 60 anos de idade. E arrebatou o meu avô Frutuoso (de quem herdei o nome), quatro anos depois, no dia em que ele se casaria pela segunda vez. Exatamente assim: a noiva se pôs em vão no altar à espera de um noivo subtraído pela morte súbita. Teria minha avó paterna, então, quem sabe, esse único defeito. O que era seu era seu. Ela e o marido compartilham o mesmo túmulo na vizinha Camutanga, Pernambuco, de onde vieram ao mundo.

Viúva desde a juventude, Vó Amélia teve em tempo de vida o que não teve em bens materiais. Deixou-nos perto dos cem anos. Aos herdeiros restaram a saudade e a casa onde morava, produto do esforço do nosso avô Noel. Tratávamos o casal por Papai Noel e Mamãe Amélia. Surpreendi-me ao notar, ainda muito novo, que os presentes natalinos nada tinham a ver com a magrez e a calvície desse avô de tão pouca convivência. Deixou-nos quando a maior parte dos netos mal havia largado a fralda.

Dona Amélia não comercializava os suspiros apenas feitos para os de casa e as crianças vizinhas que, igualmente, a tomavam por avó sem que disso gostássemos. Nada é tão ciumento quanto coração de menino. Ela também não vendia as peneiras, os chapéus e as esteiras de palha, o artesanato que a entretinha e terminava nas casas de um filho e três filhas durante visitas feitas, ou recebidas. Viveu sozinha até perto dos 80 anos, quando passou a ter a companhia da mais velha.

Fui o mais presente dos seus netos. Fiz-lhe visitas quinzenais por anos a fio ao cabo de viagens desde João Pessoa até Juripiranga. E só não aborreci uma de suas vizinhas com a frequência dos meus telefonemas porque esta última também dela cuidava como se filha fosse.

Vó Amélia cometia desses milagres: conquistava o coração de quem dela se aproximasse. Não foi diferente com a moça advinda do Rio Grande do Norte com quem me casei para dar-lhe três bisnetos. Conheceu dois deles, embora precariamente. Acamada e já quase sem visão, recorreu ao tato: passou as mãos leves nos rostos das duas crianças, percorreu com os dedos cada testa, cada par de olhos e cada nariz para concluir: “Eles são lindos”.

Eu e Miriam tentamos trazê-la para nossa companhia quando ainda morava sozinha. Não conseguimos. Mas logo nos tranquilizamos ao vê-la acompanhada da primeira filha, na Juripiranga de onde pouco saiu para viagens sempre curtas a João Pessoa, ou Recife, lugares por onde a família se espalhou.

“Que cheiro bom tem essa casa”, minha mulher comentou quando pela primeira vez ali pôs os pés. “Tem o cheiro da dona. Cheiro de suspiro no forno”, respondi. E todos rimos. Eu com o coração de criança, Miriam com seu encantamento e ela, minha avó materna, com seus olhos de um azul profundo e seu jeito bom de fada.

Quanta falta Dona Sole e Dona Amélia fazem aos avós que nos tornamos. Conto hoje ao meu neto, que tem medo de alma, o que certa vez ouvi da mãe da minha mãe: “Quando alguém que nos ama morre, vira nosso anjo da guarda”. Que assim seja.

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