Em todo alvorecer é assim. Mal o Sol cuida de tanger uns restos de noite e já ocorrem os primeiros assovios. Uns sopros curtos e indecisos entre bocejos, quero crer. Quem desse modo anuncia a própria existência ainda não o faz totalmente desperto.
Não o vejo nesses momentos, mas imagino que se espreguiça, estica o pescoço e as pernas ao limite dos tendões. Céu mais claro, os gorjeios se elevam e se afirmam. Logo, dá para vê-lo no galho mais alto da algaroba.
A árvore escapou do corte total pelo grupo contratado para o acabamento do prédio que soma 28 andares, a poucos passos da minha varanda. A poda, apesar de severa, limitou-se às galhadas mais próximas dessa construção.
Todos os dias, com sono de passarinho, eu tenho ganho do Sol. Ergo-me mais cedo, o que me permite acompanhar os primeiros movimentos da avezinha.
Penso que ela se acostumou a isso e que disso gosta. E a impressão também me faz supor que seu primeiro canto, não mais um solfejo e já com todas as sílabas, é a mim dedicado. Afinal, trocamos olhares e estamos de pé, sozinhos, nuns ticos de sereno, quando o mundo ainda parece dormir.
Dei para me preocupar com a sorte desse vizinho. Já notei que é o único morador da algaroba. Os outros pássaros que nela trinam assim o fazem, dia já quente, em passagens rápidas. Descansam as asas e em poucos segundos retomam o voo do qual não se sabe o propósito nem o destino. Não há sentido na pressa que então demonstram, pois apenas vagueiam com invenções de roteiro, como penso ter ouvido de alguém. Nenhum deles veste o preto e o amarelo do residente.
Mais tarde, a caminho da padaria, conforta-me a esperança de que alguns bem-te-vis da Praça Sílvio Porto, a dois quarteirões da nossa rua, o tratem com o respeito e os cuidados dispensados, naturalmente, entre as criaturas que se aceitam e se gostam.
Ao retornar com um biscoito a ser esfarelado num cantinho da calçada, atino, porém, que estes não são tempos naturais. E a preocupação me volta.
São sentimentos confusos os que então me assaltam. Penso bem e, por fim, decido que não é um pária este ser com quem tenho acordado para os afazeres e obrigações de cada novo dia. Para meu conforto espiritual, eu me convenço de que nada o afasta do convívio com os seus. Belo, garboso, com asas que o levam a mergulhos e rasantes assombrosos, ele deve ter, de fato, quem o queira por perto e com quem se aninhar.
A solidão, em certas horas, talvez seja uma opção pessoal, uma fuga deliberada para o sossego noturno, uma providência necessária ao repouso da alma.
São tempos difíceis para bichos e gente estes que atravessamos. O que temos visto e ouvido, cotidianamente, beira os limites da barbárie. Facções se armam, inimizades se ampliam e elos se rompem, não raramente, entre nascidos no mesmo ninho.
O ódio floresce, absurdamente, com o discurso único da honradez, da ética e da decência. Aos pássaros, como a muitos de nós, deve estranhar o fato de que isso não sirva ao congraçamento, mas à desarmonia. Deus não há de caber por igual em todos esses nichos, assim considero e assim deve também acreditar meu bem-te-vi. Talvez seja por isso que dormimos pouco.
O grupo da Praça não corre para os meus farelos. Nem o passarinho da minha estimação, se entre eles estiver. É possível que não gostem de biscoito, ou, no seu caso, não queira revelar a amizade que edificamos, respeitosamente, com as devidas reservas. Ele, do seu galho. Eu, da minha varanda.
As rolinhas, sim, me chegam quase ao alcance da mão e adoram aquilo que lhes jogo. Fugidias e assustadas nos sítios e roças, estas últimas, imprudentemente, perderam o medo dos humanos, quando nas ruas. Urbanizaram-se, contrariando a natureza.
Uma coisa eu asseguro. Apesar do aparente descaso com que sou tratado em praça pública, não há desentendimentos entre mim e meu amigo. Não, isso não. Somos imunes à intriga. Eu o favoreço com minha atenção e meu carinho e ele não me sonega os gorjeios matinais.
Bem te vi, te vejo e verei, amiguinho. Que teus dias sejam sempre calmos e fartos. Que as larvas e besouros te encham o papo. É o desejo sincero deste que, mais do que nunca, anda a engolir sapos.
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