O BÚZIO, por Frutuoso Chaves

Imagem: público.pt/Getty Images

Não entendo como um ser vivente possa dispor de tal moradia. Nem vejo serventia melhor para um bicho desses, senão aquela posta em prática por moradores ribeirinhos durante as cheias do Rio Paraíba. A Natureza, porém, sabe das coisas melhor do que eu, evidentemente.

Li que o búzio, um molusco marinho de grande ocorrência nos mares dos trópicos, é um sujeitinho voraz. Come, principalmente, ouriços e estrelas do mar. E tem um veneno dos diabos. Certos navegantes o chamavam “búzio cigarro”, alusão ao tempo exato de uma boa tragada antes da morte daquele que nele pisasse, ou por ele fosse picado durante as capturas.

Será verdade? Sinto-me inclinado a duvidar disso porque a internet também me oferece receitas de búzios. Uma delas recomenda o preparo da carne com sal, limão, pimenta, alho e óleo. Antes da fritura, passa-se o bicho em ovo batido e farinha de rosca. Título do prato: búzio empanado.

Seja como for, ainda não consigo perceber numa concha dessas – que tem a dureza de um osso – a morada de um animal capaz de nascer, crescer e procriar. Culpa das memórias de menino e do tempo em que o búzio servia mesmo é para avisar moradores de beira de rio sobre a ocorrência de enchentes. Não o bicho em si, é claro, mas o som que dele podia emitir quem fosse capaz de soprá-lo com a maestria do velho Guel, amigo do meu pai. A coisa soava grave, soturna e tristemente, como o apito de um navio, ao se afastar do cais. E o som tornava-se ainda mais pungente nas madrugadas. Era como se o mundo todo estivesse em processo de despedida.

Quem ouvisse aquele som punha-se de pé e corria para a beira d’água. As famílias ribeirinhas apressavam-se em transferir os animais domésticos para locais mais seguros e em arrancar batata, macaxeira ou inhame, então cultivados na areia, antes que o rio levasse tudo.

Enquanto isso, alguém “tocava” o búzio para o aviso dos moradores de trechos subsequentes, rio abaixo, por onde a cabeça da cheia logo passaria. Era a isso que se prestava o búzio: ao desejo da autoproteção. A criança que eu fui, naquele tempo, fazia do Velho Guel e de seus assemelhados gente bem próxima de um anjo da guarda.

Certa vez, já adulto, eu estava num dos plantões do jornal “O Norte”, em João Pessoa, quando me pediram para redigir um texto publicitário de duas páginas sobre a expansão da telefonia paraibana. Ficou combinado que eu daria formato de reportagem ao material e, desse modo, viajei até Pilar, onde uma torre de metal já se erguia a uns 30 ou 40 metros.

Pela primeira vez, a cidadezinha tinha algo maior do que a torre da Igreja. Umas poucas horas na observação do movimento do posto telefônico novinho em folha e a boa sorte ajudaram-me a compor o texto. Pude observar, além de contatos entre mães e filhos (estes últimos amargando o êxodo nos guetos e favelas do Rio e São Paulo), o aviso telefônico da abertura de uma das comportas de Boqueirão para a segurança da barragem. Entendi, de pronto, que a telefonia havia sepultado a era dos búzios. Aviso de cheia, a partir de então, viria por telefone. Coisas do progresso.

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